Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria “bandido” (Resenha)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Autoria: André Luiz Soares

Referência[editar | editar código-fonte]

MISSE, Michel. “Crime, sujeito e sujeição criminal: Aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria bandido”. Lua Nova, n. 79, pp. 15-38, 2010.

Breve contextualização[editar | editar código-fonte]

Michel Misse é professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também parte do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da mesma instituição. O autor é um dos pioneiros no estudo da violência no Brasil, suas pesquisas iniciam-se na década de 1970, e o desenvolvimento de sua carreira e de suas pesquisas confundem-se com a consolidação desse campo de estudos nas ciências sociais do país. Misse foi orientado por Luiz Antônio Machado da Silva (1941-2020), no antigo IUPERJ. A relação teórica entre os dois, com concordâncias e divergências, guiou o debate sobre violência e criminalidade na sociologia brasileira. Junto com Machado da Silva (2004) e Maria Stela Porto (2006), Misse (1999) é um dos autores que contribuem para pensar a violência como uma representação social. Assim, para esse conjunto de autores, em vez de um substantivo, a violência é um adjetivo para ações assim classificadas (Werneck, 2012). Em 1999, Michel Misse fundou o Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU) e, em 2008, junto com Alexandre Werneck, a Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social. 

Principais argumentos[editar | editar código-fonte]

À princípio, Misse (2010) reflete sobre a emergência do sujeito e a forma como a sociologia o discute. O sujeito, através da subjugação e da agência, estaria relacionado com a estrutura. Ao mesmo tempo, poderia estar associado com o poder advindo dela (de cima para baixo) e seria moldado à contrapelo dessa estrutura, de forma reflexiva, como potência. O autor, no entanto, aponta que normalmente, quando pensamos na emergência de um sujeito social, o fazemos para notar aqueles revolucionários, que propõem novos valores. Raramente, nos atentaríamos para os sujeitos egoístas que também emergem de experiências de subjugação, mas que, ao contrário do revolucionário, também subjulga e assujeita os Outros à mercê de uma ação voltada para si ou para seu grupo, sendo esta ação egoísta, cínica e/ou cética. Enfim, por produzir subordinação, esse sujeito egoísta também produz outros sujeitos. Em relação à sociologia, o autor critica a relegação do processo de subjetivação a outras disciplinas e seu tratamento sociológico tangencial a partir de conceitos como self, identidade social, ator social papéis e status sociais. Segundo Misse (2010), contribuindo ativamente para discussão ao redor da teoria dos rótulos, o sujeito é visto como uma “essência” do self, mas não é encontrado quando sua busca é aprofundada nesse conceito.

Assim, Misse (2010), volta-se para a análise de uma série de processos de subjetivação que possibilitam a emergência de um sujeito egoísta, no Brasil, conhecido como “bandido”, um “sujeito criminal produzido pela interpelação da polícia, da moralidade pública e das leis penais” (17). Esse sujeito é alvo das reações morais mais contundentes e demandas de punição das mais severas. Haveria uma sintonia entre um tipo de atividade criminal, praticada por esses sujeitos e relacionada com signos de um perigo difuso que geram medo de se conviver em sociedade, e “tipos sociais” demarcados pela pobreza, cor e estilo de vida, previamente selecionados pela suspeição, ou seja, acusados de antemão. Por não serem criminosos comuns, a expectativa social é de incapacitação definitiva (morte) ou reconversão moral capaz de adequar à sociedade que acusa os sujeitos conhecidos como “marginais”, “violentos” e “bandidos”.

Essa posição social desprivilegiada dos “bandidos”, poderia ser analisada a partir da “acumulação social da violência” (Misse, 1999; 2008a). Tal conceito estende à violência um caráter de representação social, passível de ser sedimentada historicamente. Haveria, assim, a causação circular acumulativa de uma série de fatores sociais que se alimentam mutuamente. Nesse sentido, tanto desvantagens são concentradas para uma parcela da população quanto estratégias aquisitivas são partilhadas por agentes criminais e agentes responsáveis pela repressão desses primeiros. Esses processos, somados a um outro de “sujeição criminal”, são parte constituinte da legitimação social mais ampla das expectativas de vida e morte desses sujeitos, e de associar a eles uma espécie de “cultura”.

A “sujeição criminal” seria responsável por uma mudança qualitativa na acusação social. Em vez do alvo da acusação ser a ação, ela passa a se direcionar ao sujeito. A noção de “acumulação social da violência” (Misse, 1999; 2008a) demonstra como em diferentes épocas, focando empiricamente no Rio de Janeiro, seria comum atitudes que permitiriam associar o crime com a essência de seu autor, legitimando, desse modo, o castigo ou a eliminação física desse sujeito criminal que carregaria em seu ser, em sua “essência”, a maldade. O processo social constituinte da “sujeição criminal” muda de dimensão quando a dinâmica criminal se altera com a chegada do varejo de drogas ilícitas, principalmente a cocaína. Ocorre uma territorialização da “sujeição criminal” quando o espaço da favela passa a ser mais um problema de segurança pública do que uma questão de infraestrutura urbana, devido a atuação do varejo da droga nesses lugares (Machado da Silva, 2008; 2010; Machado da Silva; Menezes, 2019). Segundo Misse (2010), não existiria uma relação direta entre a atuação desse mercado ilícito e a violência, mas sim em relação aos conflitos decorrentes de sua configuração, principalmente, a necessidade de defesa do território, seja da polícia ou de outros grupos criminosos rivais. A territorialização estende a expectativa social da “sujeição criminal” à crianças e adolescentes, que passam a serem acusados e selecionados previamente, isto é, um processo de criminação dos sujeitos e não de suas ações. No âmbito da “acumulação social da violência”, essa expectativa significa, à princípio, a latência de se tornarem “bandidos” e, em última instância, de serem mortos com um amplo respaldo da sociedade, mesmo que “ainda” não tenham cumprido a profecia, em consequência, a transformando em uma profecia autorrealizável. A “sujeição criminal” seria, assim, a um só tempo, um processo de subjetivação e o resultado desse processo representado socialmente. Enfim, “[n]o limite da sujeição criminal, o sujeito criminoso é aquele que pode ser morto” (Misse, 2010: 21).

Com a intenção de demarcar que a “sujeição criminal” não é rótulo arbitrário, Misse (2010) discute brevemente os processos sociais responsáveis pela construção social do crime (Misse, 2008b), dando particular ênfase para o fato de que isso evidencia um tipo de incriminação do sujeito, que não é um simples encaixe desse agente nos parâmetros legais legitimados, mas um complexo de interpretações capaz de mobilizar também os poderes envolvidos nas definições de situação. Nesse sentido, o autor faz uma composição entre as dimensões estrutural e interacionista, levando em consideração uma sociedade com profunda desigualdade como a brasileira (Misse, 2010; Werneck, 2014). De acordo com Werneck (2014), a noção de “sujeição criminal” é uma forma de atentar para o conteúdo de sentido do atributo desacreditador, de modo que é possível notar como o adjetivo é reificado e torna-se um substantivo, algo que a teoria dos rótulos não conseguia capturar, ou seja, o conceito é uma contribuição original para a discussão sobre a construção da identidade social a partir da caracterização como criminoso, neste caso, “bandido”. Para Misse (2010), a “sujeição criminal” é “um processo social que condensa determinadas práticas com seus agentes sob uma classificação social relativamente estável, recorrente e, enquanto tal, legítima” (24). Então, apesar de ter uma estrutura social de referência, somente ocorre “sujeição criminal” se, no evento em que for definida situacionalmente, ela fizer sentido para os envolvidos, inclusive o acusado.

O conceito da “sujeição criminal”, desse modo, tem como objetivo determinar três dimensões incorporadas na representação social do “bandido” e de todos aqueles que se encaixariam em seu tipo social: a trajetória criminável; a “experiência social” específica; e a subjetividade relacionada com sua autoidentidade. Assim, a “sujeição criminal”, em uma determinada categoria social de indivíduos, é produto de um processo social responsável por constituir subjetividades, identidades e subculturas, que necessariamente implica em: agentes acusados e incriminados com base em representações sociais; expectativa de que esses agentes tenham uma trajetória criminal contínua; autorrepresentação no agente ou representações em seu núcleo próximo de convívio, que ora justifiquem suas escolhas, ora atestem sua singularidade ou a impossibilidade de justificação. Sem uma dessas dimensões, não há “sujeição criminal”, mas não quer dizer que não haja incriminação, já que nem todas as práticas criminais produzem esse tipo de sujeição.

Em seu artigo, Misse (2010) diz que o mais importante não é nem a entrada nem a justificação da carreira criminal, mas sua reiteração, tornando o crime passível de ser incorporado em uma identidade social negativa e acomodado em um tipo social. Isso ajuda a diferir uma simples incriminação da “sujeição criminal”, esta última necessita da primeira, mas o contrário não é verdade. Na “sujeição criminal” há um foco no sujeito, na sua maldade, irrecuperabilidade, no seu nexo subjetivo com a própria transgressão. Nesse caso, para mudar sua condição de “bandido”, normalmente, ocorre algo similar à uma depossessão, que implica alterar o âmago do seu ser, ou até uma conversão religiosa. Na incriminação, o alvo da acusação é a ação classificada como transgressora, não o sujeito que a cometeu. No caso da “sujeição criminal”, sendo esse sujeito consciente, ele tem, na maioria dos casos, noção de que ao estar realizando um curso de ação específico, ele pode ser caracterizado dentro de uma classificação social incriminadora, impondo a si uma autoavaliação do quanto ele está ou não subjetivamente ligado com esse curso de ação e como interpreta essa situação. Para Misse (2010), o interesse e a capacidade do agente em fazer a relação entre tal curso de ação e a essência de seu ser, interpretando sua condição perante essa associação, configura a principal dimensão da “sujeição criminal” no processo de subjetivação. As tensões entre acusadores e acusados permitem evidenciar distintas possibilidades em que os poderes de definição de situação são mobilizados, seja para neutralizar, assimilar, incorporar ou agravar a “sujeição criminal”.

Por fim, Misse (2010) aborda a questão da representação social da “sujeição criminal”, isto é, sua capacidade de formalizar uma subcultura e generalizar alguns de seus códigos e símbolos, mesmo se tratando de processos individualizados e distintos entre os tipos de sujeitos que formam tal sujeição. Por conta disso, trata das especificidades de um sujeito-limite, como é o sujeito criminal, na sua relação com a sociedade. Para o autor, esses sujeitos não estão totalmente fora da sociedade, apesar de, em muitas circunstâncias, a comunicação entre quem partilha dessa subcultura e quem está fora dela, seja complexa. Uma forma de aproximação seria justamente a emulação de uma linguagem antes restrita ao submundo da sujeição criminal para camadas mais abrangentes da sociedade. Inclusive para os consumidores dos mercados ilícitos das drogas. Enfim, segundo Misse (2010), “o processo social que constrói a sujeição criminal cria também os próprios dispositivos de sua reprodução ampliada” (36).

Apreciação crítica[editar | editar código-fonte]

O conceito de “sujeição criminal”, dentro do arcabouço teórico-analítico da “acumulação social da violência” (Misse, 1999; 2008a), que também pressupõe as “mercadorias políticas” (Misse, 1999; 2014), permanece atual e frutífero para interpretação da dinâmica criminal brasileira e latino-americana. Em dado momento, o autor “preocupa-se” que a generalização de códigos e símbolos da “sujeição criminal” e de sua subcultura implicasse um enfraquecimento dela, uma restrição a um núcleo duro. Talvez, fosse também interessante atentar, como o próprio autor faz, ao fato de que essa ampliação da representação social dos sujeitos criminais demonstre sua solidez, sua continuidade, sua influência no tecido social, assim como, suas metamorfoses e rupturas. Nesse caso, seria relevante, em estudos futuros, pensar como a “sujeição criminal” é representada socialmente e efetivada no cotidiano, assim como Werneck e Talone (2019) fizeram com o conceito da “sociabilidade violenta” de Machado da Silva (2004), o interpretando como um ideal-tipo. A ideia, assim, seria notar como a noção de “sujeição criminal” está sendo reapropriada na “gramática da violência” (Machado da Silva, 2010).

Outras referências[editar | editar código-fonte]

MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. Sociabilidade violenta: por uma interpretação da criminalidade contemporânea no brasil urbano. Sociedade e Estado, [S.L.], v. 19, n. 1, p. 53-84, jun. 2004.

______ (Org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

______. “Violência urbana”, segurança pública e favelas: o caso do rio de janeiro atual. Caderno Crh, [S.L.], v. 23, n. 59, p. 283-300, ago. 2010.

______; MENEZES, Palloma. (Des)continuidades na experiência de ‘vida sob cerco’ e na ‘sociabilidade violenta’. Novos Estudos. CEBRAP, v. 38, p. 529-551, 2019.

MISSE, Michel. “Introdução”; “Violência, crime, corrupção: conceitos exíguos, objeto pleno”; “A acumulação social da violência”; “Metamorfoses do fantasma”. In: Malandros, marginais e vagabundos: a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese de doutorado: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), 1999.

______. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, Porto Alegre, vol. 8, no 3, pp. 371-385, 2008a.

______. “Sobre a construção social do crime no Brasil”. In: ______. (Org.) Acusados e acusadores: estudos sobre ofensas, acusações e incriminações. Rio de Janeiro: Revan, 2008b.

______. “Mercadorias políticas” in: Renato Sérgio de Lima; José Luiz Ratton; Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. (Orgs). Crime Polícia e Justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, p.198-203, 2014.

______. Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, [S.L.], n. 79, p. 15-38, 2010.

PORTO, Maria Stela Grossi. Crenças, valores e representações sociais da violência. Sociologias, [S.L.], n. 16, p. 250-273, dez. 2006.

TEIXEIRA, Cesar. A construção social do ex-bandido: um estudo sobre sujeição criminal e petencostalismo. Rio de Janeiro: 7Letras, 184p, 2011.

WERNECK, Alexandre. “A contribuição de uma abordagem pragmatista da moral para a sociologia do conflito”. In: Conflitos de (grande) interesse: Estudos sobre crimes, violências e outras disputas conflituosas. Rio de Janeiro, Garamond, p. 337-354, 2012.

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______; TALONE, Vittorio. A ‘sociabilidade violenta’como interpretante efetivador de ações de força: Uma sugestão de encaminhamento pragmático para a hipótese de Machado da Silva. Dilemas-Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 12, n. 1, p. 24-61, 2019.