Lembrar é preciso: preservação e valorização da memória das vítimas da covid-19 no conjunto de favelas da Maré (artigo)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco


Esse artigo faz parte da "Radar COVID-19, Favelas", informativo produzido no âmbito da Sala de Situação Covid-19 nas Favelas do Rio de Janeiro, vinculada ao Observatório COVID-19 da Fiocruz.

Autoria: Patrícia Ramalho.

Sobre[editar | editar código-fonte]

Estruturado com base no monitoramento ativo (vigilância de rumores) de fontes não oficiais – mídias, redes sociais e contato direto com moradores, coletivos, movimentos sociais, instituições e articuladores locais – a publicação busca sistematizar, analisar e disseminar informações sobre a situação de saúde nos territórios selecionados, visando promover a visibilidade das diversas situações de vulnerabilidade e antecipar as iniciativas de enfrentamento da pandemia.

Artigo[editar | editar código-fonte]

“Tomara que não voltemos à normalidade, pois, se voltarmos, é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro.” Ailton Krenak

A morte acontece diariamente e faz parte da existência humana e pode ser determinante na condução de nossas trajetórias. Durante a pandemia da Covid-19, fomos surpreendidos pelo grande número de mortes no mundo. Até o fechamento deste texto, mais de 5 milhões de pessoas morreram em decorrência da Covid-19, em um período de pouco mais de um ano. No Brasil, mais de 616 mil óbitos, de acordo com o Painel Coronavírus e no Conjunto de Favelas da Maré foram 379 perdas, conforme indica o Painel Rio COVID-19, administrado pela Prefeitura.

A pandemia global que se instaurou no ano de 2020 impactou as mais diversas dimensões da vida na sociedade, na política e na economia. Se os efeitos da pandemia extrapolam a área da saúde individual e afetam a sociedade como um todo, no contexto de favelas, estes efeitos são ainda mais complexos, intensificando históricas injustiças territoriais e desigualdades sociais. Rapidamente evidenciou-se o impacto desigual da pandemia, como resultado direto da falta de investimento em saúde pública e das condições precárias de habitação, trabalho, infraestrutura urbana e acesso a saneamento básico em determinados territórios. Estudos mostram que a parcela mais pobre da população, que vive em territórios periféricos, foi desproporcionalmente afetadas por impactos sanitários, socioeconômicos e um elevado número de mortes.

Desde o início das medidas de restrição, moradores e instituições da Maré denunciaram o descaso do poder público sobre uma série de fatores que dificultam o acesso a direitos indispensáveis para o controle da pandemia como: problemas no acesso os serviços de saúde e falta de insumos básicos, precariedade no fornecimento de água, ineficiência no suporte da assistência social para garantia do isolamento das famílias mais vulneráveis, ausência de uma política pública e segurança alimentar, além das ações da política de segurança pública que contrariam as orientações de prevenção ao vírus. A omissão pelas mortes e por políticas públicas foi naturalizada e ignorada por governos negacionistas que, em diversas vezes, zombaram em rede nacional dos casos de mortes em decorrência do vírus.

Chimamanda Adichie (2020, p. 3), em seu livro Notas sobre o luto, salienta que “o luto é uma forma cruel de aprendizado. Você aprende como ele pode ser pouco suave, raivoso. Aprende como os pêsames podem soar rasos. Aprende quanto do luto tem a ver com palavras, com a derrota das palavras e com a busca das palavras”.

Diante deste cenário, a potência do trabalho coletivo foi primordial na Maré. Além de ações relacionadas à prevenção e combate ao vírus e combate à insegurança alimentar, o trabalho que envolve temas sobre luto e memória trouxe a valorização das vítimas e de suas histórias, junto aos seus familiares e amigos, implicando no aspecto coletivo e não apenas individual.

A produção do Memorial Maré destinado para as vítimas de Covid-19 é uma proposta que busca criar um espaço para celebrar a memória das pessoas que faleceram em decorrência do vírus na Maré, com o objetivo de trabalhar o processo de luto com os familiares, valorizando as histórias das vítimas, articulando produção de conhecimento, acolhimento às famílias e intervenção artística.

Ainda sobre o estudo da memória, o historiador Paulo Knauss nos traz que a memória diz respeito a algo que está vivo, que é um trabalho de reconstrução, de presentificar o passado na busca da construção de um futuro e que pode mudar práticas e realidades. “Preservar a memória dos vitimados se define como reparação simbólica. Portanto, a importância de um memorial, enquanto símbolo da vida humana e como ferramenta de justiça social.”

A Maré, por exemplo, tem rica memória que precisa ser contada e preservada, tem memórias de resistências, de lutas coletivas e que não pode ser esquecida, pois a partir dela conseguiremos construir novas narrativas a partir deste território. Dessa forma, entendemos que falar de memória se torna indispensável no momento em que estamos vivendo, diante de tantas mortes invisibilizadas, que viram números. Por isso é tão importante e urgente ações que humanizem a dor e os acontecimentos produzidos pela pandemia, principalmente entre a população mais vulnerável.

Valorizar o humano e contar suas histórias de vida é necessário diante das constantes tentativas de apagamento e do silenciamento de culturas perpetrados pela lógica dos governos de dominação e de opressão.

Ver também[editar | editar código-fonte]