Pesquisa - Pesquisador/a Visceral - Emergência e Genealogia das Categorias

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Autoria: Rodrigo Torquato[1].

"Pesquisa - Pesquisador/a Visceral - Emergência e Genealogia das Categorias" é o resultado de dez anos de Pesquisas. Pretende-se, aqui, condensar um conjunto de problematizações, que permitiram construir duas Categorias teórico-metodológicas de análises: Pesquisa e Pesquisador/a Visceral. O objetivo é estabelecer uma compreensão possível, acerca da complexidade de pesquisar COM as Favelas e Quebradas, levando em consideração a minha experiência de professor, em escolas públicas, e de ex-morador-praticante-observador, por 38 anos, da favela da Rocinha-RJ.

Percursos[editar | editar código-fonte]

A concepção aqui defendida firma-se na ideia de que uma categoria-conceito não se origina exclusivamente do intelecto de um sujeito sem estabelecer conexão com sua imersão no mundo. Dito de outra forma, uma categoria-conceito, tal como nos ensinou Marx, emerge das interações sociais, ou seja, é uma relação social. Assim, é possível apresentar a gênese e as relações sociais que possibilitaram a emergência das categorias “Pesquisa-Pesquisador Visceral”.

Ao iniciar a minha pesquisa para o doutorado em Educação, na UFF, tinha o intuito de compreender melhor e discutir as questões políticas, sociais e culturais que sempre fizeram parte das minhas circunstâncias existenciais, já que sou “Cria” da Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Os referenciais teórico-metodológicos com os quais mantinha diálogo ia desde Marx até as pesquisas com os cotidianos das escolas que atendiam os/as estudantes das Classes Populares (Regina Leite Garcia/ GRUPALFA-UFF).

Aos poucos, fui traçando rotas metodológicas, tentando achar caminhos que melhor ajudassem a transformar as minhas vivências, na favela e nas escolas públicas onde lecionava (nos municípios de Niterói e Duque de Caxias), em reflexão crítico-política que consubstanciasse as bases científicas da Tese.

Constatações e dilemas[editar | editar código-fonte]

A primeira constatação foi a de que as teorias nas quais me baseava não eram suficientes para abarcar as situações que eram vivenciadas nas Favelas ou em Quebradas (categoria muito utilizada em São Paulo). Por conta disso, tais situações foram transformadas em problemáticas, que possibilitavam compreender melhor as questões daqueles cotidianos. Ou seja, os conhecimentos oriundos das vivências nas favelas e nas escolas públicas representavam a força motriz que norteava a minha base teórica, configurando-se como teorias em movimento.

Algumas situações levaram-me a indagações que permitiram não só traçar as rotas de estudos e de análises para a Tese, mas, sobretudo, construir a categoria-conceito de PESQUISA-PESQUISADOR VISCERAL. Entre as muitas indagações que emergiram, algumas foram fundamentais: Existem enredamentos das sociabilidades violentas da favela no cotidiano das escolas pesquisadas? Tais sociabilidades têm impactado o cotidiano e/ou os currículos das escolas? Que tipos de impactos? Seriam impactos (como algo que vem de fora) ou enredamentos, entrelaçamentos, amálgamas?

O grande enigma era estabelecer uma compreensão analítica possível entre as estruturas-estruturantes das ações e das interações sociais. A questão fundamental era tentar compreender as relações sociais que se passavam nas escolas investigadas a partir da minha experiência de 38 anos como morador-praticante-observador das relações cotidianas na favela da Rocinha-RJ, visto que se tratava de contextos situados em lugares distantes e diferentes.

Tal dilema foi resolvido a partir do Exame de Qualificação do meu Doutoramento, com a extraordinária contribuição da Profª Ana Clara Torres Ribeiro (LASTRO-UFRJ), que elucidou o problema empírico-metodológico da pesquisa.

 

Segundo ela, estávamos diante de uma pesquisa que era a afirmação de uma nova forma de refletir/intervir na experiência social, com seus rebatimentos na reflexão da metodologia de pesquisa. Para além da pesquisa-ação, da pesquisa-intervenção, o que tínhamos ali era uma pesquisa visceral. Nesse novo tipo de pesquisa, ressaltava ainda, o pesquisador comprometido com a reflexão/exposição da pesquisa visceral pode permitir a reflexão do ser humano e as suas circunstâncias. Ou seja, um dos nortes da presente escrita de pesquisa permite a reflexão das configurações históricas das identidades sociais e os processos de identificação. Por outro lado, a reflexão de suas circunstâncias permite a introdução das dimensões da opressão, do contexto, do lugar, do espaço-temporalidade da ação. (SILVA, 2012)[2]

A pesquisa e o/a pesquisador/a visceral           [editar | editar código-fonte]

O que a reflexão acima permite afirmar é que não é possível construir uma Ciência Social sem considerar a Pesquisa e o/a Pesquisador/a Visceral como alguém que desenvolve a sua pesquisa encarnando a escrita na experiência das suas circunstâncias existenciais. Isso justifica a valorização das suas vivências como conexão entre os contextos em que está inserido, de forma a eleger as entranhas das suas experiências e relações sociais-humanas-culturais como ponto de partida da pesquisa.

Assim, ao valorizar e transformar as experiências dos/as pesquisadores/as oriundos dos contextos de Favelas e Quebradas, onde o capitalismo se revela mais desumano e cruel, as Pesquisas Viscerais possibilitam críticas inovadoras. No entanto, os/as Pesquisadores/as Viscerais, ao problematizarem a própria condição existencial, nesses contextos, são muitas vezes criminalizados e estigmatizados. Suas críticas trazem consequências factuais para si, tais como, ver o seu patrimônio na favela ser confiscado, sob jugo de grupos armados não estatais, com expulsão compulsória do morro. Ameaçados de perderem a própria vida, juntamente com a sua família, precisam abandonar tudo o que construíram na Favela. Isso é a essência da ideia de expor as próprias vísceras.

Além disso, o conhecimento trazido pelo/a Pesquisador/a Visceral muitas vezes  é considerado pelos grandes Centro Acadêmicos como mero senso comum, sem valor científico, pois não foi enquadrado na “terceira pessoa”, conforme os ditames das normas academicistas, que constroem conhecimentos “desencarnados”, distantes da realidade social brasileira.

Desse modo, os/as Pesquisadores/as Viscerais, ao narrarem os contextos nos quais estão inseridos, são obrigados a expor as próprias vísceras, isto é, as suas NARRATIVAS VISCERAIS, criam uma vulnerabilidade para si, pois, após narrar, são obrigados a conviver com as consequências que a sua narrativa vai gerar.

As vísceras existenciais do/da Pesquisador/a se materializa numa relação social em que a reflexão crítica acerca da sua vivência com a história local cria os nexos necessários para a conexão dos contextos com a produção de conhecimento científico, o que configura a Pesquisa Visceral. Ou seja, o/a Pesquisador/a Visceral é um sujeito do conhecimento comprometido politicamente que, ao se valorizar na pesquisa, enquanto sujeito, cria nexos entre contextos históricos diferentes, que amalgamam a sua biografia às histórias locais.

O/aPesquisador/a Visceral estuda aquilo que expõe as próprias vísceras, tentando compreender as Favelas e as Quebradas das suas experiências, percebendo que está dentro e fora, ao mesmo tempo, daquilo que pesquisa. Não há como esse/a pesquisador/a se distanciar dos marcos históricos e identitários que o/a constroem.

Estamos diante de uma situação nova e inovadora para as pesquisas sociais, que não pode ser castrada, pois o/a Pesquisador/a Visceral, que está emergindo das Classes Populares às universidades, por meio das lutas sociais, tais como as políticas de Cotas Raciais, é crucial para o desenvolvimento das Ciências Sociais e as consequências positivas que daí emergirão. É absolutamente necessário valorizar esse tipo de Pesquisa, pois é aí que se criam os nexos empíricos lógicos e suficientes para a coerência de uma Ciência Social conectada com a realidade do seu país. O/A pesquisador/a visceral tem nas suas vísceras as várias experiências que o/a ligam aos múltiplos contextos da sua pesquisa.

É importante frisar que tal pesquisa não pretende elaborar uma “meta-metodologia” que inclua todos os níveis e dimensões de relação e interação social com os contextos das Favelas e Quebradas. Não se trata de sugerir, ingenuamente, que só um de “dentro” da Favela é capaz de alcançar uma realidade mais concreta ou uma “verdade” dos fatos mais pura, acerca das lógicas que se tecem nas Favelas e Quebradas.

O que se quer é problematizar a eficácia da relação que se estabelece entre pesquisador e “objeto”, como uma relação de interioridade-exterioridade, em que a cada instante em que somos surpreendidos na pesquisa, nos tornamos outro/a pesquisador/a, diferente do que éramos antes da surpresa, pois não somente o que está sendo pesquisado se torna outra coisa, diferente daquilo que enxergávamos anteriormente, como também o/a própria Pesquisado/a Visceral se transforma ao tomar consciência daquilo que passa no seu contexto, visto por outra lente.

            É assim que se torna relevante a história de vida do/a Pesquisador com as Favelas e Quebradas. A Narrativa Visceral permite posicionar os interlocutores e situar o/a pesquisador/a, e não estou falando aqui de lugar de fala, mas de posicionamento político-crítico e revolucionário, pois os/as interlocutores/as poderão dialogar com os sentidos que se relacionam com a experiência de vida de quem sobrevive em circunstâncias limites, tais como o/a trabalhador/a morador de Favelas e Quebradas.

Diante do que foi exposto, é possível afirmar que o que está em jogo nas Pesquisas Viscerais não é uma discussão simplista sobre uma disputa entre paradigmas acadêmicos, de razão cartesiana (cujas pesquisas fundam-se na hipervalorização de dados matematizáveis, universais), e as singularidades ou idiossincrasias dos/das pesquisadores/as Viscerais. É, sim, a valorização das experiências desses sujeitos no processo de construção de conhecimento científico. Ou seja, trata-se da chegada e não da partida de seus contextos.

Para não concluir...[editar | editar código-fonte]

Expor as próprias vísceras dialoga com uma concepção presente no Candomblé, na Umbanda e, naturalmente, nas Favelas e Quebradas, que é a ideia de ‘corpo fechado’. Abrir o corpo do/a Pesquisador/a Visceral, distante do objeto, nos permite não tomar o singular como uma particularidade estrita, mas sim, nos perceber habitados por singulares que nos atravessam e ampliam as nossas possibilidades de pesquisar. Assim, as vísceras são aberturas, ou seja, zonas de possibilidades e de indiscernibilidade que nos equalizam nas situações de opressão.

Dito de outra forma, é a condição de opressão que rompe as distâncias ou proximidades fabricadas por discursos metodológicos, desencarnados de um corpo que sofre factualmente as consequências do capitalismo e permite a emergência de novos sentidos nas aberturas dos corpos/corpus fechados. “Aos viscerais é possível ler o que está em jogo, ou seja, riscos e tensões naquilo que vemos como situações cotidianas. São pesquisas viscerais, na carne que se faz verbo e do verbo que se faz navalha.”(SILVA, 2014, p. 38)[3]

Referências[editar | editar código-fonte]

  1. Professor da UFF/IEAR.
  2. SILVA, R. T. Escola-Favela e Favela-Escola: 'esse menino não tem jeito!' – Petrópolis, RJ: De Petrus et Alii: Rio de Janeiro: FAPERJ, 2012.
  3. SILVA, R. T.; ALVES, L. P.; COLLET, H. Alfavela: Pesquisas Viscerais em Educação. – Lisboa/Portugal: Chiado, 2014.