A Vizinha Faladeira e o Bairro do Santo Cristo: História, Cultura e Identidade

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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A Vizinha Faladeira e o Bairro do Santo Cristo: História, Cultura e Identidade

“O espaço resultado da produção, e cuja evolução é consequência das transformações do processo produtivo em seus aspectos materiais ou imateriais, é a expressão mais liberal e mais extensa dessa práxis humana” (SANTOS, 2015, p.12). Essa célebre frase de Milton Santos equaciona as transformações espaciais no bairro do Santo Cristo, condicionando suas transformações aos processos produtivos. Essa região da cidade está integrada a economia brasileira há séculos, sendo um espaço vivo e objeto de disputa econômica e política. Cabe lembrar que o bairro materializa a frase: “o espaço é a acumulação desigual de tempos” de Milton Santos. Logo o geossímbolo a ser discutido faz jus a essa categoria de espaço, pois a “Vizinha Faladeira”, uma das mais antigas e tradicionais escolas de samba do rio de janeiro, faz parte da história contemporânea do bairro, atravessando diversos momentos políticos e econômicos da cidade. Tendo um papel fundamental tanto para identidade da comunidade, quanto para sua organização enquanto território em disputa. Sublinho a importância da agremiação para o morro da providência e do pinto, assim como para o bairro do santo Cristo, pois foi um espaço capaz de congregar energias a um projeto em disputa (TURANO, 2013). Essa região à época era habitada por trabalhadores do porto e comerciantes e o espaço de convívio e lazer se dava em parte no que seria a agremiação da Vizinha Faladeira. Logo, era um ponto de inflexão no espaço, pois articulava moradores, trabalhadores, artistas em contraponto a opressão de mecanismos do Estado. Devemos lembrar que as pautas identitária que carregam a cultura periférica são constantemente marginalizadas e, por vezes, criminalizadas institucionalmente, como vislumbrado por Valadares em: Sua análise, baseada nas estatísticas oficiais, refuta representações vigentes por várias décadas sobre as populações faveladas, como sendo constituídas, basicamente, de malandros e desocupados, quando não de marginais. (VALADARES, p. 25, 2020) Sabemos que a memória e identidade periférica são constantemente marginalizadas, portanto, identificado essa característica do Estado brasileiro, apresentaremos a cultura como um elemento identitário que contribui para organização da comunidade e integra a disputa pelo espaço e o direito à cidade. A Vizinha Faladeira é uma escola tradicional do bairro, fundada oficialmente na década de 1930 e é um dos berços do samba carioca, sendo uma das escolas articuladoras para o primeiro desfile de carnaval da história do rio em 1935. Uma escola regada de plumo e participação popular, fato esse que a afastou da construção das agremiações carnavelescas como conhecemos (TURANO, 2013). Devemos lembrar que o samba, assim como o carnaval, foram práticas reprimidas fortemente pelo estado sob a prerrogativa da vadiagem entre as décadas de 1900 a 1930. Porém foi através da cultura e da arte que a periferia resistiu a esse período até superá-lo, legitimando sua identidade e participando ativamente do circuito cultural da cidade (Almeida, 2011). A legitimação dos desfiles das escolas de samba transforma-se na “manifestação máxima do carnaval carioca, a escola de samba marca o transbordamento da cultura popular no Rio de Janeiro.” (SOIHET, 2008: 155-156). Poderíamos contar uma história romantizada sobre como a legitimação da cultura periférica foi fruto da luta das comunidades, porém sua legitimação vem em paralelo com a disputa por popularidade dos governos à época. Conforme aponta Gabriel Turano e Paula de Almeida, o fim dos anos 1920 foram turbulentos para cidade do Rio de Janeiro, pois o carnaval popular fazia frente ao estado, ao passo que punha as celebrações nas ruas e articulava as comunidades na disputa pela cidade. Nesse sentido, era necessário apaziguar a relação entre a comunidade e o estado em busca de estabilidade, então o carnaval é institucionalizado e passa a ser regulado pelo estado através da União das Escolas de Samba (UES). A nossa Vizinha Faladeira foi agente ativo entre 1920-1940, pois se foi aguerrida a organização carnavalesca dos anos 1930, representando-se “como grupo capaz de responder à busca de uma manifestação carnavalesca “autêntica” e “negra” (TURANO, 2013, p. 68). Torna-se opositora na década seguinte, ao negar o carnaval regulado pelas elites culturais “que buscava encontrar nas manifestações populares a expressão de valores ligados à tradicionalidade, negritude e pureza” (TURANO, 2013, p. 68). Podemos dizer que a escola de samba do bairro do Santo Cristo representa parte importante do imaginário e do identitário dos morros da Providência e do Pinto, pois sua história atravessa diferentes momentos históricos da cidade do Rio de Janeiro. A escola também foi espaço para organização da comunidade na disputa sobre qual cultura periférica e negra se valeria na cidade. Logo a sereia, símbolo da agremiação, representa mais do que uma semana festiva, mas toda a história de uma comunidade na disputa pelo acesso e legitimação da sua cultura. Logo, entendemos a Vizinha Faladeira como um geossímbolo, visto que seu espaço possui significados políticos e culturais que fazem parte da identidade da favela. Compreendemos a agremiação como parte da identidade do bairro do Santo Cristo que está inscrito em seu espaço através da própria agremiação, mas, também, pelos grafites espalhados pelas comunidades. Essa inscrição no espaço conta uma história do samba e favela, fala sobre a organização da comunidade na disputa pela cidade, logo é um geossímbolo para o Santo Cristo, o morro da Providência e do Pinto.

O que são Geossímbolos?

O que são geossímbolos e o que isso tem a ver com as pautas identitárias? Esse verbete apresenta a importância dos símbolos de identificação cultural/ política/ religiosa definidos espacialmente para a identidade das comunidades locais. Para exemplificar esse fenômeno, vamos discutir aspectos do bairro do Santo Cristo, dando ênfase à vivência no morro da providência. O geossímbolo é um termo cunhado com o propósito de elucidar a relação entre um símbolo constituído de valores (sociais, espirituais, econômicos) dentro do espaço. Os geossímbolos são a ligação identitária de determinado grupo com "seus lugares", ou seja, com seu espaço vivido, sendo, portanto, uma forma de apropriação do espaço vivido, construída, na prática, pela implementação de "marcas" culturais, religiosas ou políticas de um grupo em seus espaços. Bonnemaison afirma: "O geossímbolo pode ser um lugar, um itinerário, uma extensão que, por razões religiosas, políticas ou culturais, aos olhos de certas pessoas e grupos étnicos assume uma dimensão simbólica que os fortalece em sua identidade" (BONNEMAISON, 2002, p. 102, apud CORRÊA, 2013).


Referências

DE ALMEIDA, PAULA CRESCIULO. O carnaval de 1935: oficialização e legitimação do samba. 2011 HAESBAERT, Rogério. Regional Global: dilemas da região e da regionalização na geografia contemporânea. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2018 SANTOS, Milton. O espaço geográfico como categoria filosófica. Terra Livre, n. 5, 1988. SOIHET, Rachel. Reflexões sobre o carnaval na historiografia – algumas abordagens. Tempo. Revista do Dept. de História da UFF. 1999, vol.4, n.7, p.169-188 TURANO, Gabriel da Costa; FERREIRA, Felipe. Incômoda vizinhança: a Vizinha Faladeira e a formação das escolas de samba no Rio de Janeiro dos anos 30. Textos escolhidos de cultura e arte populares, v. 10, n. 2, 2013. VALLADARES, Licia. A gênese da favela carioca. A produção anterior às ciências sociais. Revista brasileira de ciências sociais, v. 15, p. 05-34, 2000