A relação entre os gastos com segurança pública e o índice de violência intencional no Brasil

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 14h57min de 11 de setembro de 2021 por Thaís Cruz (discussão | contribs)

Autora: Thaís Cruz

Resumo

Este breve trabalho tem por objetivo identificar a relação entre as taxas de homicídios com os gastos com segurança pública nos estados brasileiros. Em linhas gerais, o que está sendo examinado é se um maior investimento em segurança contribui com a redução da taxa de mortes violentas. Para isso, foi preciso analisar os dados sobre as despesas e taxas de homicídios de cada unidade federativa, além disso, avaliar o coeficiente de correlação entre as duas variáveis. Utilizou-se também uma abordagem qualitativa evidenciando as causas contextuais. Os dados foram obtidos a partir do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, referente aos anos de 2015 a 2018. Os resultados indicam, ao contrário do esperado, que uma maior despesa pública com segurança não implica necessariamente na redução da violência.

Palavras-chave: gasto público, segurança pública, mortes violentas intencionais.

Introdução

Ao longo dos anos, especialmente nas últimas duas décadas, o Brasil tem acumulado números expressivos em quase todos os patamares da segurança pública. Por um lado, taxas de mortes cada vez mais altas e, por outro, despesas extremamente altas com segurança. Analisando os dados do Anuário de Segurança Pública, entre 1995 e 2018 houve um aumento de 116% nos gastos públicos com segurança e de 76,4% no número de homicídios. De 2011 a 2018, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 458.978 pessoas perderam suas vidas devido a violência intencional no Brasil. Vale ressaltar que em 2017, atingiu-se o ápice de Mortes Violentas Intencionais (MVI), com 30,9 mortes para cada 100 mil habitantes. Em paralelo, o financiamento de políticas de segurança em 2018 chegou a R$91 bilhões, com a média per capita de R$409,66.

Esperar-se-ia uma explicação de que os gastos aumentaram em virtude do aumento dos homicídios, numa tentativa de reduzi-lo ou controlá-lo. Contudo, não parece ser essa a realidade atual. Vale ressaltar que esse cenário tem ganhado importante destaque, principalmente após as Eleições de 2014 e de 2018. Isso porque o campo da segurança pública é um tema de bastante comoção popular, o qual gera grandes debates e discursos carregados de ostensividade. Esses discursos acabam fomentando o investimento cada vez maior de aparatos repressivos da polícia, os quais, supostamente, se tornaram uma espécie de resolução imediata de conflitos com a promessa de que a violência e a criminalidade chegariam ao fim. David Garland (1999) aponta que respostas punitivas transmitem uma ilusão de que se está fazendo algo, independente disso funcionar ou não. Desse modo, parece ser possível observar que se trata de uma exibição clara de serviço, pois cumpre uma espécie de efeito simbólico de contenção de certos indivíduos e de eleitorado.

"Como efeito, reafirma-se a profunda e deletéria tendência de não avançarmos na pauta de modernização da área no Brasil. Acredita-se que todos os problemas acabaram e, sem nenhuma ação nacional identificada, vemos emergir vozes e grupos sociais que apostam neste ou naquele governo como os responsáveis pelas conquistas. O drama é que esta aposta é meramente narrativa e frágil, cujos ganhos são pontuais e limitados"(Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2019: 12).

Para superar esse quadro é preciso consolidar informações, monitorar e refletir sobre os dados que atravessam a questão de segurança pública. Assim, poderá ser traduzido em maior compreensão e diagnósticos para boas políticas públicas. Trata-se de um estudo do tipo exploratório, no qual se analisou a relação entre gastos com segurança e a violência nos estados brasileiros. Foram selecionadas as seguintes categorias para a análise: as unidades federativas, região, ano, gastos com segurança pública per capita, número absoluto de Mortes Violentas Intencionais (MVI) e taxa de MVI por 100 mil habitantes. Cabe ressaltar que a categoria MVI refere-se à soma das vítimas de homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de ações policiais em serviço e fora. Os dados analisados são disponibilizados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em página eletrônica oficial, numa base anual para todos os estados. Optou-se, ainda, por considerar o período de 2015 a 2018 para uma análise da evolução temporal. O presente trabalho está estruturado da seguinte forma: após esta introdução, apresenta-se as análises e as discussões e, por fim, seguem-se as considerações finais. Destarte, será possível desmistificar a efetividade das despesas com segurança pública no Brasil.

Análises e discussões

Ao pensar sobre o cenário de segurança pública brasileiro algumas perguntas são frequentes, como: O que fazer para prevenir e/ou controlar a violência? Existe um fator determinante para o aumento ou diminuição da violência? De certa maneira, essas perguntas não possuem respostas cristalinas. Ademais, uma análise desse universo implica um olhar mais atencioso, pois se trata de uma variável multicausal. Diante disso, chama-se a atenção para duas variáveis de interesse nesse trabalho: a taxa de mortes violentas intencionais e os gastos com segurança pública. Assim, cabe examinar se um maior investimento com segurança corresponde a uma redução da violência.

De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2018 os gastos totais no Brasil com segurança foram de R$91,2 bilhões. Essa despesa equivale a 1,34% do Produto Interno Bruto (PIB). É relevante salientar essa informação, pois em termos comparativos, os países europeus possuem um percentual de 1,3% do PIB alocado com segurança pública, contudo a taxa de homicídios é quase 30 vezes menor do que a brasileira (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2015). Ademais, vale apontar que houve um aumento de 3,9% nas despesas em relação ao ano anterior. Esse crescimento se deu de forma diferenciada se analisados os gastos por entes federativos. Verifica-se que a União teve um aumento de 12,4%, enquanto os municípios tiveram um aumento de 8,7% e os estados de 2,3%. Já em relação às despesas per capita, comparando 2015 e 2018, dos vinte e sete estados, dezesseis apresentaram aumento.

Em linhas gerais, é possível perceber uma tendência crescente nos investimentos com segurança. Convém, agora, examinar a distribuição das despesas para cada unidade federativa no ano 2018. Na lista dos dez estados com os maiores gastos encontram-se: Acre, Roraima, Mato Grosso, Tocantins, Rio de Janeiro, Amapá, Goiás, Rondônia, Minas Gerais e Amazonas. Já na lista com os menores custos destaca-se Piauí na liderança, seguido de São Paulo, Maranhão, Rio Grande do Norte e Distrito Federal. Em termos comparativos, a maior despesa é quase o triplo do menor gasto per capita com segurança pública. Outro aspecto observado é que onze estados estão acima da média nacional de despesas, a qual foi de R$409,66.

Atenta-se, agora, para os dados acerca das mortes violentas intencionais, os quais também demonstram certa variação. De 2015 a 2016, dezenove estados tiveram aumentos em suas taxas por 100 mil habitantes. Analisando o período de 2016 a 2017, o número de estados caiu para doze em crescimento. Já de 2017 a 2018, apenas quatro estados seguiram com aumentos, os quais são: Pará, Amapá, Tocantins e Roraima. Em relação aos números absolutos de 2018, houve uma redução de 10,8% em relação ao ano anterior. Ainda que se observe esse movimento de queda nos últimos anos de análise, cabe ressaltar que a série histórica da taxa MVI de 2011 a 2018, disponibilizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revela um aumento do número de mortes violentas por 100 mil habitantes em quatorze estados. Destaca-se dentre esses estados, Acre e Roraima, pois apresentaram os maiores aumentos percentuais de crescimento, de 1.423% e 410%, respectivamente.

Gabriel Feltran (2019), aponta que variações para mais ou para menos de 10 ou 12% nas comparações de ano a ano são comuns devido a algumas circunstâncias, como a mudança nas formas de mensuração dos dados sobre os homicídios, pressões políticas ou ainda uma influência de expansão ou recessão em mercados ilegais. Assim, examinar a série histórica é fundamental para visualizar as tendências mais consistentes, como também, realçar os estados que possuem as maiores oscilações.

Observa-se que os dez primeiros estados com as maiores taxas são pertencentes às regiões norte e nordeste (Roraima, Amapá, Rio Grande do Norte, Pará, Ceará, Sergipe, Acre, Alagoas, Pernambuco e Bahia). Levando em consideração os extremos, tem-se Roraima com a maior taxa, e São Paulo com a menor taxa em 2018. Enquanto o estado paulista dispõe de 9,5 mortes por 100 mil habitantes, o estado roraimense possui uma taxa de 66,6 mortes. Identifica-se que essa a assimetria permanece se analisada a série histórica da taxa de mvi nos quatros anos selecionados. Nota-se que Roraima possui uma maior variação, evidenciando uma evolução crescente, ainda que de 2016 a 2017 tenha tido uma redução de 1,9%. Já em São Paulo, parece seguir uma tendência decrescente no número de mortes por 100 mil habitantes ao longo dos quatro anos de análise.

Sob a hipótese de efetividade dos gastos, esperar-se-ia que quanto maiores os investimentos em segurança pública menores seriam as taxas de mortes violentas intencionais, ou seja, uma correlação negativa (Cerqueira, 2019). Contudo, verifica-se no gráfico de dispersão abaixo que essas duas variáveis não apresentam uma associação forte. Isso porque não apresenta nenhum padrão indicando relação, os pontos estão totalmente dispersos. Para avaliar com maior precisão se há correlação entre as variáveis utilizou-se a função cor no Rstudio. O resultado do coeficiente de correlação foi de 0.0719864 o que significa uma correlação positiva, porém desprezível. Essa correlação quase nula entre as duas variáveis reforça a ideia de baixa efetividade das despesas como potencial determinante da redução da taxa de mortes violentas no Brasil.

            Gráfico 1 - Relação entre Gastos com segurança e a Taxa de MVI por 100 mil habitantes
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     Fonte: Elaboração própria com base nos dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Diante disso, é fundamental compreender algumas razões para essa baixa efetividade e que influenciam tendências de crescimento ou redução das taxas de mortes. De acordo com alguns especialistas o Brasil gasta muito e mal. Isso porque, como aponta Daniel Cerqueira (2019), o investimento não está sendo bem distribuído para as subfunções de segurança pública (policiamento, defesa civil, informação e inteligência, e demais subfunções). Chama-se atenção para os gastos com informação e inteligência, os quais representam apenas 0,6% das despesas totais dos estados, sendo esta subfunção o “coração das polícias modernas” (Cerqueira, 2019). Vale ressaltar que alguns estados nem sequer informaram os gastos com inteligência, o que pode sugerir que não tiveram despesas destinadas a essa subfunção ou foram ínfimos. Verifica-se, por exemplo, que em 2018 o estado do Rio de Janeiro teve um gasto total de R$9.547.928.238,19 e apenas R$1.283,00 foi direcionado a informação e inteligência. Sendo assim, sob uma lógica punitivista, o Brasil investe num modelo tradicional ostensivo de segurança, sucateando as atividades investigativas e de inteligência. O que pode explicar também, por exemplo, a inexistência ou taxas baixas de esclarecimento de crimes no Brasil.

Além das despesas serem direcionadas a um modelo baseado no policiamento ostensivo, pode-se pensar a política pública de segurança em termos de falta. Isso porque, segundo Cerqueira (2019), falta integração, coordenação e responsabilização entre as três entidades federativas; falta saneamento do sistema prisional; falta uma visão estratégica dos governos pautada em diagnósticos locais; falta monitoramento e avaliação das políticas implementadas; falta transparência dos dados disponibilizados pelas instituições policiais e falta responsabilização interna das polícias (para identificar condutas desviantes, brutalidades e uso “carnavalesco de armas”). Essa última falta, não menos importante, parece contribuir de forma positiva com o crescimento da violência.

Isso porque Teresa Caldeira (2000) enuncia que o padrão de comportamento cada vez mais violento das polícias tende a promover um crescimento em todas as formas de criminalidade urbana. Costurado a isso, a impunidade das autoridades que praticam violações fomentam ainda mais esse cenário. A autora ressalta que: “quando os policiais não são responsabilizados e punidos por comportamentos extralegais ou ilegais, a violência e os abusos continuam a crescer” (Caldeira, 2000: 151). Dessa forma, acaba criando um ciclo vicioso da violência, o qual não é meramente uma herança do passado, mas vem sendo mantido por escolhas políticas atuais.

Por fim, cabe apontar a existência de variáveis contextuais que se dão em virtude das particularidades de cada unidade federativa. Como é o caso da redução observada nas taxas de mortes em São Paulo, a qual tem sido analisada por alguns pesquisadores como possível resultado de um fenômeno da racionalização e estabilização do poder da facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC). Isso porque após 2006 com a hegemonia do PCC e as mudanças nas regras do seu estatuto houve queda no número de homicídios dentro e fora das unidades prisionais (Feltran, 2018; Dias, 2009). Sendo assim, a redução dos homicídios longe de estar relacionada a um investimento maior em segurança, está associada, no contexto paulista, com a hegemonia de uma facção. Dessa forma, ainda que buscar hipóteses causais e cruzar dados numéricos seja uma ótima ferramenta analítica para observar a associação de variáveis no cenário de segurança pública, esta não é suficiente para explicar a taxa de mortes violentas nos estados brasileiros.

Considerações finais

Levando em consideração que a violência é um fenômeno multicausal e complexo, este trabalho buscou trazer análises estatísticas sobre a taxa de mortes violentas e as despesas com segurança pública. De modo que os resultados fossem satisfatórios para falsear certos discursos repressivos, os quais não são baseados em uma política pautada em diagnósticos concretos, mas em análises enviesadas e seletivas. Nesse sentido, pretendeu-se com este estudo examinar a relação entre a taxa de Mortes Violentas Intencionais (MVI) por 100 mil habitantes e os gastos per capita com segurança em cada unidade federativa no período de 2015 a 2018.

Os resultados indicaram, ao contrário do esperado, que maiores investimentos em segurança não refletem na redução ou controle da taxa MVI. Em certos estados foi possível identificar uma tendência crescente das duas variáveis. Como exemplo, Roraima e Acre, os quais apresentaram as maiores taxas de mortes e de gastos dentre todos os estados analisados. Em contrapartida, foi observado que o estado de São Paulo, o qual teve o segundo menor gasto, lidera o ranking de menor taxa de mortes por 100 mil habitantes no ano de 2018. Era de se esperar que um maior gasto estivesse relacionado com menores taxas de mortes ou que menores despesas com segurança levariam a um número alto de mortes violentas intencionais. Contudo, os achados sinalizam que essa não é a realidade. Tendo em mente o coeficiente de correlação desprezível entre as variáveis, parece ser possível concluir que há baixa efetividade das despesas com segurança no controle da violência.

Pode-se concluir que: “somos uma sociedade muito violenta e nossas políticas públicas são extremamente ineficientes e obsoletas” (Lima; Bueno, 2015). Para compreender brevemente esse cenário foi preciso enunciar uma análise contextual. Tendo o caso do estado paulista como referência, o qual se consolidou como o menos violento do Brasil (9,5 mortes por 100 mil habitantes), viu-se que essa posição não está diretamente ligada com despesas em segurança, mas sim com a hegemonia e racionalização de uma facção. Sendo assim, os discursos repressivos de combate a violência são rasos e não são efetivos na produção de segurança. Por fim, o enfrentamento desse quadro exige o desenvolvimento de pesquisas tendo em vista os diagnósticos locais, aliada a uma mudança nos direcionamentos dos gastos públicos com segurança visando a modernização das polícias e suas ações.

Referências bibliográficas

CALDEIRA, Teresa (2000). Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Editora 34/Edusp.

CERQUEIRA, Daniel (2019). 13 Razões Porque. In: Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário brasileiro de segurança pública. Ano 13. São Paulo.

DIAS, Camila C. N. (2009), "Consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista e a nova configuração do poder no universo prisional. L’Ordinaire des Amériques, v. 216, pp. 1-10

FELTRAN, Gabriel de Santis (2018), Irmãos: uma história do PCC. Companhia das Letras.

FELTRAN, Gabriel (2019). Homicídios no Brasil: esboço para um modelo de análise. In: Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário brasileiro de segurança pública. Ano 13. São Paulo.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (2015) Anuário brasileiro de segurança pública. Ano 9. São Paulo.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (2019) Anuário brasileiro de segurança pública. Ano 13. São Paulo.

GARLAND, David (1999), “As contradições da sociedade punitiva”: o caso britânico. Revista de Sociologia e Política, n.3, pp. 59-80.

LIMA, Renato Sérgio de; BUENO, Samira (2015). O eterno presente da segurança pública. In: Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário brasileiro de segurança pública. Ano 9. São Paulo.