Altair Antunes de Moraes (entrevista)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 18h44min de 4 de março de 2022 por Fernandapernasetti (discussão | contribs)
Material de pesquisa do Projeto do Campus Fiocruz da Mata Atlântica em parceria com a Cooperação Social, gentilmente cedido ao Dicionário de Favelas Marielle Franco.

A entrevista faz parte do projeto "Histórias, Memórias e Oralidades da luta social por terra e moradia na região de Jacarepaguá de 1960 a 2016", desenvolvido pelo Programa de Desenvolvimento do Campus Fiocruz- Mata Atlântica, em parceria com a Cooperação Social da Fiocruz. Neste episódio, a conversa é Altair Antunes de Moraes. Ele foi Presidente da Associação de Moradores da Vila Autódromo.

 Entrevista


Transcrição

Eu moro aqui há 20 anos.

Vivi momentos ruins na época da ditadura, nos anos 60. Na época do governo de Carlos Lacerda e Negrão de Lima, que fez na zona sul do Rio uma lavagem social, tirou varias comunidades como o Morro do Catacumba, Ilha das Dragas, Praia do Pinto, Ilha dos Caiçaras - comunidade onde eu morava- eu tinha 14 anos de idade. Chegaram de uma hora pra outra. Disseram que a comunidade tinha que sair. Naquela época existiam uns caminhões da COMLURB, chamados coração de mãe, pareciam com um trem e tinha umas janelinhas de madeira. Assim se deu o processo da Ilha dos Caiçaras.

Eu me peguei na estrada do Joá sem entender pra onde eu estava indo. Falaram que na Cidade de Deus era uma cidade modelo boa para todos.

Aos 14 anos eu me perguntava para onde iria e se seria bom. Ao chegar na Cidade de Deus havia só os conjuntos Gabinal e algumas casas. O mercado, uma Padaria Verde e Rosa, outra padaria na Praça, escolas precárias. Hoje eu escuto muitas coisas no processo de remoção. Quando você está na luta comunitária, você perde a sua identidade e vem a remoção.

Ao cair na Cidade De Deus, cai em lugar nenhum, romperam os laços de amizade e convivência. Muita gente foi para Cordovil e outros locais. E se dividiu tudo. Cresci na Cidade de Deus, casei, tive 3 filhos. E já no governo- que é uma ditadura disfarçada, faz as mesmas coisas que o Lacerda e o Negrão de Lima fizeram, que foi remover - fui surpreendido com a notícia que tinha que sair da minha casa por causa da Linha Amarela.

Como já estava no processo de separação fiquei 2 anos num reassentamento bem próximo e por opção vim para Vila Autódromo. Conheci outra mulher que tinha parente vivendo aqui, eu vim visitar e gostei, lugar calmo, tranquilo, bom de se viver. Eu consegui comprar um terreno. Foi uma troca, eu aterrei o terreno e fiquei com a metade. Construí um barraco de pau a pique- e fui aterrando o terreno. Fui então trabalhar como carpinteiro, na Linha Amarela.

Com este dinheiro, além de aterrar fiquei com o terreno todo numa troca com o antigo dono. Emprestei um chevette para o dono do terreno (ele bateu com o carro e ficou com ele por muito tempo). Eu não tinha coragem de cobrar, mas criei coragem e cobrei. Então o Patrick me disse que ficaria com o carro e eu com o terreno.

E aí começa minha história. Fiquei 2 anos conhecendo a comunidade. Entrei para Associação de Moradores com a finalidade de ter mais voz para discutir com os governos. Participei de uma junta governativa, de outra direção- saí antes do final. Não foi bem o que eu queria, não tinha liberdade como vice. Como vice-presidente não tinha liberdade de ação. Saí. Depois concorri com outra chapa e estou na direção até hoje.

Comecei a trabalhar a permanência da comunidade. Nós temos um processo que tramita há 20 anos, sem decisão da justiça. No meu entendimento não se faz justiça como tem que se fazer. Digo isto porque esta comunidade tem um documento chamado “possessão de uso”- que diz que temos o direito de morar aqui por 30 anos. Governo Brizola. O outro governo nos deu mais prazo, e passou para 99 anos. O governo do Estado. Aí começou uma guerra com o município. O Brizola titulou a terra 92, o Marcelo Alencar também.

Alegações da prefeitura

Primeiro ela disse que nós agredíamos a estética da cidade. A prefeitura deveria fazer aqui a urbanização. E nada foi feito. Outro motivo: que nós poluímos a lagoa. Mas quem conhece Jacarepaguá sabe que não tem saneamento básico para a maioria. Só no governo Garotinho se iniciou a instalação emissário submarino. Mas não são todos os rios ligados a ele. Mas são vários os rios que desembocam na lagoa e jogam esgoto in natura. Isto na disputa da justiça.

Depois em conversas com o prefeito ele dizia ser uma exigência do COE. Era o risco que significávamos. Eu argumentei que não poderíamos oferecer risco de segurança. E pude perceber que ele sempre buscava justificar de qualquer forma a remoção da Vila autódromo.

Desde que eu estive na frente da luta, a razão, nem era dano estético, sua agressão ao meio ambiente ou questão de segurança, mas sim por causa dos interesses de mercado pela especulação imobiliária. Nestas áreas de riscos, ela se desvaloriza se tem pobres vivendo no seu entorno. Temos isso no Pavãozinho- os prédios do entorno próximo foram valorizados com a pacificação. Esse é o objetivo. O valor foi lá pra cima.

Os jogos acontecem em 27 dias. Isto não justifica a remoção. Mas eles vão construir mais prédios nesta área até 2030. É isto que nos impede de continuar vivendo aqui, e isto justifica a remoção. O acordo dos empresários- investindo na infraestrutura dos jogos requer do prefeito a contrapartida- o que vai lhes garantir mais lucro. Andrade Gutierrez, Odebrecht, Carvalho Hoskin- formam o consórcio Rio+. Isto me leva a crer que hoje, na cidade do Rio de Janeiro, a gente tem um governante que esta agindo pior do que o Lacerda e o Negrão de Lima.

Remoção e limpeza

Isto não pode acontecer. Eu tenho a preocupação de saber como este vídeo pode informar a sociedade. A mídia hoje é perversa. Quando tem que falar de uma comunidade carente, sempre coloca como invasor, como se não devesse estar ali, que está agredindo o meio ambiente. Isto não pode acontecer mais nesta cidade. Eu costumo dizer: estou com 59 anos e toda a minha vida foi trabalhando para ver esta cidade crescer. E pra ajudar enriquecer os patrões. E continuamos pobres, acumulam cada vez mais.

Na política tem muita gente que está satisfeita com o governo Lula. Eu fui um dos que votei nos 3 mandatos do Lula. Eu tive uma grande decepção quando votei no Lula. Votei com a esperança que houvesse uma grande mudança neste país, mas o que houve foi uma grande roubalheira e este dinheiro podia estar na saúde, na educação, e não foi: foi para o bolso dos picaretas. Não quero dizer que eu queria ficar rico, mas queria pelo menos não ter que trabalhar em 2 empregos para ter um carro popular. Eu tenho 2 empregos, trabalho de noite e de dia para conseguir. Eu não vivo melhor só porque posso comprar comida, ou comprar uma televisão- porque ela ficou mais barata- eu não entendo isto como melhora de vida. Melhorar de vida, conseguindo um bom emprego, um bom salario, é ter uma vida confortável com minha família, e que não tivesse que trabalhar muito. Não considero um bom governo, foi um pouquinho melhor do que os outros? Foi, mas outros fariam o mesmo para se manter no poder. O meu sentimento na verdade é que eu não culpo tanto os governos, mas sim a nós mesmos. Porque nós sempre colocamos esses caras de volta no mesmo lugar e a gente nunca troca as figurinhas. Quando a gente começa a pensar com consciência tenho certeza que a gente consegue uma grande virada, uma grande mudança no país.

Eu continuo brigando pela comunidade. Eu não aceito remoção em hipótese nenhuma. Em reuniões recentes com o prefeito a gente discute a permanência. Fizemos uma manifestação há bem pouco tempo, uma passeata. A gente conseguiu com os companheiros de militância, bastante apoio, estar bem organizado na defesa da comunidade. Eu espero, sinceramente, que o Judiciário cumpra o seu papel - que é de justiça. Até porque eu nem quero nem falar no título de 99 anos: eu tenho que falar no direito sagrado, inviolável de morar. Ela é uma terra do governo, e, se não fosse, em 5 anos caberia o usucapião, então nem precisaria nem falar na questão da titularização, que já temos 40 anos de permanência, assentada.

Eu acho que temos que viver aqui e vai estar sempre lutando para que isto aconteça. Eu espero que o juizado reconheça nosso direito. Sempre que sou entrevistado por jornais ou alguma TV (é lógico eles nunca divulgam isto) eu costumo dizer que qualquer juíz em inicio de carreira, muito conhecedor dos direitos sociais, qualquer juiz ia entender isto: a gente tem direito a estas terras. E meu desconforto é ter 20 anos um processo sendo empurrado pela barriga- já estamos aqui 40 anos. Por direito estas terras são nossas. Construímos nossas casas com os nossos esforços, nosso dinheiro.

As propostas feitas pelo governo municipal são propostas de apartamentos do programa Minha Casa Minha Vida. E aí volto a falar no governo federal, que não deveria se prestar a este papel. O programa Minha Casa Minha Vida, deveria estar voltado para o déficit habitacional no Rio de Janeiro- e que não são poucos- mas estão entregando recursos para o prefeito remover. E no Morar Carioca, que é tudo uma coisa só.

O início da História

Moro aqui há 20 anos, mas ela existe há 40 anos. Tudo começou com os pescadores. O nome da associação é Associação de Moradores e Pescadores da Vila Autódromo. Pescadores viviam em volta da lagoa, já teve uma colônia de pesca. Na construção do autódromo- os trabalhadores que vieram trabalhar, mas moravam longe, ficaram aqui. De outras obras, Riocentro, metrô. O governo Brizola trouxe moradores para cá também, do Cardoso Fontes, moradores da área da Restinga, que foram removidos.

Assim a comunidade foi se formando. E aí começa a disputa pela terra, ainda na época do Brizola e Cesar Maia. Nossas casas não podem ser negociadas. Cobiça, ganância, interesse do capital e da especulação- o governo não faria remoções. Tem situações que a remoção é boa para o governo- ela remove e atinge 50 mil pessoas, mas vai beneficiar a vida de um milhão ou mais. Mas eu vi a remoção de comunidades próximas por causa da olimpíada, ou a via TransCarioca ou a TransOeste e não tinha nada a ver com a passagem destas vias. Mas estavam do lado de um shopping. Vila Harmonia, por exemplo. Restinga, parte da comunidade, talvez precisasse da frente, mas Vila Harmonia estava distante da pista. É isto que os jovens precisam saber e aprender. Precisamos lutar por nossos direitos. E aí a gente passa a entender qual é o processo que acontece na Cidade do Rio de Janeiro. É a falta de informação e não ter uma mídia que se interesse fazer isto. Então esta questão é pelo envolvimento entre empreiteiros e políticos.

Ameaças

Eu nunca me senti ameaçado, porque conseguimos dar bastante visibilidade à nossa luta. E se alguma coisa me acontecer, alguém vai responder por isto. Eu sempre deixo isso claro nas entrevistas. Eu tenho uma vida uma vida regrada, eu sou um trabalhador, o que eu faço é lutar pelos meus direitos. E se alguma coisa de ruim me acontecer, pode ter certeza que vão investigar que pode ter alguém do governo por trás disto. Eu sempre faço questão de dizer isto nas entrevistas que faço, porque de fato a gente incomoda. A gente é uma pedra no calcanhar do prefeito.

Eu saio de madrugada para trabalhar, tenho preocupação, procuro ter cuidado, mas eu acredito muito, que conseguimos dar bastante visibilidade- tornar nossa luta publica- principalmente eu, Dona Jane. Aqueles que não conseguem se colocar para a sociedade, que não se articulam com outros militantes, não conseguem tornar a luta publica- aí pode ser ameaçado. Pra fazer algo comigo, eles tem que pensar nas consequências, das investigações que vão sofrer.

Saúde e território

Território saudável no meu entendimento é aquele que pode ter saneamento, porque um lugar insalubre é o lugar que não tem nada a ver com saúde. E quando não se tem saneamento, pavimentação, não pode ser espaço saudável. Minha comunidade é muito boa, a gente não tem nenhum caso de tuberculose. Nossa área é muito aberta, nada aqui foi obra do governo. O único serviço publico aqui é a Comlurb, recolhendo o lixo. Pagamos água, luz e telefone. Não temos escola. E não há interesse. Só se interessam por nós na hora do voto, fora isto, nada. É uma comunidade pequena- não do porte da Rocinha, do Alemão- e que vai eleger de uma vez só. E eles investem nestas comunidades. Traz algum resultado pra eles.

A minha ainda tem interesse de remover, por conta do dinheiro. Tudo é prejudicial à saúde.

A luta

[Quero] Levar esta luta para os mais jovens, porque quando eu era jovem eu não me interessava. Eu comecei esta luta já no governo Cesar Maia. Já tinha passado por remoções, já estava calejado de ser removido. Quando veio a desapropriação da Linha Amarela, pro outro lado da Cidade de Deus, o prefeito quis entregar os embriões de duplex sem lage e sem escada. Aí eu comecei a passar no COMOCIDE. Era um núcleo que algumas pessoas trabalhavam por direitos, moradia e tudo que se precisasse na Cidade de Deus. Era formado pela Cleonice, Edson Santos e Pablito. A gente começou a luta ali pela questão dessas lages e escadas. Eu comecei a ter interesse pela luta ali. Por isso que eu tenho vontade de levar estas coisas para os jovens. Se eu tivesse lá atrás, alguém, ou algum professor, que me levasse, como o COMOCIDE na época, conhecer os meus direitos, me politizar, saber que nesta cidade, você só consegue as coisas se você lutar, eu não teria começado tão tarde. Talvez eu não tivesse nem passado pelas situações que eu passei. E foi assim que eu comecei e estou até hoje. Eu tenho uma garotinha que eu adotei quando tinha 1 ano, e que ela participa de todas as reuniões. Ela começou de má vontade, agora vai a todas. Tive uma reunião com o prefeito semana passada- ela estava lá no meio. Eu levo para ela se politizar e aprender a lutar para conseguir algumas coisas nesta cidade, neste país. Se ela esperar apenas, ela vai ser atropelada.

O que te move na luta

Eu busco na luta da Vila Autódromo, o direito à cidade, o direito de poder morar. A minha vida e a permanência na associação de moradores só tem o propósito de fazer com que esta e todas as outras comunidades que querem remover onde estão. As que já foram removidas não tem mais como reverter a situação, mas a gente pode lutar para impedir as outras. É isto que me dá forças me faz continuar, tocar esta luta. A cidade não pode ser partida, a cidade é de todos. Eu não quero acreditar que por causa de 27 dias dos jogos da Olimpíada, se mexa com a história e com a vida das pessoas, por conta disso. Tem que ter espaço e lugar para todos- no mesmo ambiente, no mesmo espaço. Eu não acho que seja justo remover por conta de nada.

Outros Depoimentos

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