Amor é política e tecnologia na luta contra as mudanças climáticas

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Matéria originalmente publicada no site de Notícias RioOnWatch, em 2023. Faz parte da Série Justiça Climática, criada por meio de uma parceria do RioOnWatch com o Núcleo de Estudos Críticos em Linguagem, Educação e Sociedade (NECLES), da Universidade Federal Fluminense, para produzir matérias que serão utilizadas como recursos pedagógicos em escolas públicas de Niterói.

Autoria: Gisele Moura[1] [2]
Mulheres pretas de favela na vanguarda do antirracismo ambiental. Foto do Intercâmbio da Rede Favela Sustentável no CEM (Centro de Integração da Serra da Misericórdia), em 6 de agosto de 2022.
Mulheres pretas de favela na vanguarda do antirracismo ambiental. Foto do Intercâmbio da Rede Favela Sustentável no CEM (Centro de Integração da Serra da Misericórdia), em 6 de agosto de 2022.


Ano após ano, ao longo de mais de uma década dedicada aos estudos do meio ambiente, vi que o que era, há pouco tempo, um assunto do futuro, tem se tornado cada vez mais uma urgência do presente. As mudanças climáticas são uma questão atual e estão na boca do povo. Não tem mais como adiar para amanhã o que já mata e causa prejuízos materiais hoje. Temos que falar sobre isso hoje! Nas mídias, pipocam conteúdos que conceituam, explicam, exemplificam e debatem as questões climáticas. É preciso falar de mudanças climáticas! É preciso falar de eventos climáticos extremos! É preciso falar sobre o racismo ambiental, sobre quem são os povos mais atingidos pela negligência do Estado, pela ausência de políticas e de soluções concretas, para além das discussões técnicas, caras, futuristas e, em geral, fora da realidade.

Eu trago aqui a urgência de quem debate, estuda e alerta, há anos, sobre os riscos e as consequências do modo de vida ocidental. É urgente criarmos soluções! Exigimos políticas, medidas preventivas de socorro, propostas que compreendam as diversas realidades sociais e geográficas do Brasil. É necessário investir em pesquisas para melhor sabermos como lidar com as transformações que o antropoceno ocidental impõe.

O começo do ano chega e, com ele, observamos as fortes chuvas de verão, cuja força e grande volume são típicos desta estação. Territórios vulneráveis ficam climaticamente expostos a alagamentos, enxurradas e deslizamentos de terra, causados por décadas de negligência e recordes de volumes de chuva. As tempestades de raios também são cada vez mais intensas.

Já vi quem culpabiliza as fortes chuvas e a forma como a meteorologia foi modelada, que não consegue prever as mudanças que o modo de vida do ocidente provocou na Terra, na atmosfera e no clima do planeta. Já vi e li sobre eventos climáticos extremos cada vez mais recorrentes. No entanto, paralelo a isso, emerge o debate essencial sobre como as mudanças climáticas escancaram o racismo ambiental e como uma parcela muito racialmente definida da população vem sendo mais vulnerabilizada, mais exposta aos impactos da crise ambiental e climática.

Apesar de importantes, os intermináveis debates acerca da transversalidade das questões socioambientais não atendem ao grito desesperado dos atingidos com a devida urgência que o problema climático impõe. As favelas, comunidades ribeirinhas e demais territórios periféricos, zonas de sacrifício dos eventos extremos causados pelas mudanças no clima, há anos se esgoelam e exigem ações práticas do poder público. Apesar da política da fatiga, as moradoras e moradores não desistem e cobram realizações além das vãs promessas eleitorais. A pauta ambiental exige ação, realismo, responsabilidade e urgência. É para ontem fazer o que tem que ser feito e o povo sabe disso.

Compreender a agência da natureza que nos circunda, do tempo e das estações do ano, para além da agência do Homem, é fundamental para construir comunidades resilientes. Replanejar o sistema de drenagem de uma cidade que enfrente enchentes, drenar e despoluir rios e lagoas e reutilizar a abundante água da chuva são exemplos de como entender as cidades a partir da nova realidade climática do planeta. É mais importante garantir a segurança das pessoas do que atender a padrões de urbanização consagrados historicamente, que priorizam a reprodução do capital imobiliário. É preciso ter coragem para lutar contra o padrão de séculos de urbanização predatória e desigual das nossas cidades.

Em meio a tal estado de coisas, o nós por nós assume o papel que seria das autoridades do Estado, que é ausente para proteger e servir, mas bastante presente para matar. É nesses momentos que eu digo que, o que parece generosidade, solidariedade entre vizinhos e empatia, nada mais é do que política pública. São verdadeiras políticas públicas emergentes, que dão o devido valor à vida. Como diz bell hooks:

“O amor é um ato político!”

Ambientalmente, é muito evidente que o amor é política pública. Em meu escrito Tudo que Nois Tem É Nois: Uma Narrativa sobre o Racismo Ambiental e sobre como o Amor, a Ação e as Relações São Capazes de Adiar Finais de Mundo, abordei a importância das ações socioambientais comunitárias e voluntárias na reparação, na mitigação e nas políticas de resgate em diversos acontecimentos de altos impactos ambientais. É o tal do amor ao próximo, que confronta a vulnerabilidade e promove resiliência comunitária. É o amor fazendo frente a um modelo predatório de sociedade baseado na falta de cuidado com o próximo, no desprezo à coletividade e na sobrevalorização do indivíduo.

Em 2019, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) lançou um dos seus mais importantes relatórios: Mudanças Climáticas e Terras: Um Relatório Especial do IPCC sobre Mudanças Climáticas, Desertificação, Degradação da Terra, Gestão Sustentável da Terra, Segurança Alimentar e Fluxos de Gases do Efeito Estufa em Ecossistemas Terrestres. Ali, naquele relatório, a ciência assumia pela primeira vez a necessidade de olhar e aprender com os povos tradicionais e seus modos de viver, de produção e de alimentação, pois estes seriam a solução na luta contra os avanços do aquecimento global. Ao ver esse movimento científico de valorização dos povos da terra e de suas tecnologias, reafirmo minha convicção política de que o futuro é ancestral.

Partindo da minha experiência, de uma mulher preta das quebradas: a solidariedade, a coletividade e a força de ação das mulheres pretas salvam milhões de brasileiras e brasileiros. Em diversas situações extremas, sejam elas climáticas, de insegurança alimentar, de violência policial ou de negação de outros direitos básicos, são os saberes tradicionais de mulheres pretas e suas tecnologias ancestrais que viabilizam a vida e os futuros nos territórios.

No entanto, enquanto as mulheres pretas estão gerindo as crises estruturais do Brasil e aliviando o impacto delas na população, a partir da ação prática, onde estão as autoridades e suas promessas de campanha? Onde está o orçamento? Onde há tomadas de decisão sobre políticas sobre as favelas e a população preta?

O Brasil tem hoje um Ministério da Igualdade Racial, com uma ministra favelada e negra, cria do Complexo da Maré, Anielle Franco, irmã da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco, assassinada há quase cinco anos. E temos um Ministério dos Povos Indígenas, sob o comando de uma liderança indígena do povo Guajajara do Maranhão, deputada federal eleita por São Paulo, Sônia Guajajara. Passos largos estão sendo dados na direção necessária: dar poder às mulheres pretas e indígenas, a fim de minimizar os danos causados por séculos de primazia do patriarcado colonial europeu, do racismo estrutural e da branquitude. Essa é a única via que pode ser tomada para, no longo prazo, reequilibrar as alterações climáticas.

Nas quebradas, becos e ruínas de aldeias e quilombos, são as mães afroindígenas que assumem o “Ministério do Front”. São elas que sabem as políticas públicas mais eficientes na gestão do caos. Elas que se mobilizam para salvar famílias inteiras através de cestas básicas ou que arrecadam móveis de alguém que não quer mais, mas que ajudam a reconstruir um lar destruído pela chuva. É de oportunidade em oportunidade de trabalho que criam os jovens que, ao crescer, constroem o mundo. É através daquela erva que ela tem no quintal e que, como ensinavam as mais velhas, diversas vezes guardou seu filho e os filhos dos vizinhos de doenças, do quebranto e do mal olhado. Seja com poejo, arruda ou qualquer outra tecnologia de gestão do caos, as mulheres pretas estão nos territórios, criando estruturas políticas que viabilizam a vida, a reconstrução da dignidade e do senso de comunidade na diáspora.

Este texto é um convite para refletir sobre o papel de vanguarda da mulher preta na luta pelo antirracismo ambiental e climático. É um exercício de entender o amor como um ato político transformador e de reconhecer a potência dos povos tradicionais e das lideranças comunitárias das favelas. É momento de se mobilizar e se aquilombar para adiar fins de mundo. Por isso, aproveito para chamar o bonde todo para participar da Greve Global pelo Clima, que acontece hoje, no dia 3 de março de 2023, às 9 horas, na forma de uma caminhada entre a Avenida Dom Hélder Câmara, 2233, no Jacarezinho, e a favela vizinha de Manguinhos, dois dos territórios mais afetados pelos eventos climáticos extremos do verão de 2023. O ato na Zona Norte do Rio tem como lema “Chega de Enchentes!” e, como objetivo, alertar para o sofrimento das populações das duas favela. O evento é organizado por: Coalizão pelo Clima Rio de Janeiro, Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental, Fase, Cebes, Asfoc, Rede Favela Sustentável, Rede de Vigilância Popular em Saneamento e Saúde, Conselho Gestor Intersetorial de Manguinhos, Conselho Comunitário de Manguinhos, Organização Mulheres de Atitude, Associação de Moradores Samora Machel, Associação de Moradores Nelson Mandela, Associação de Moradores Parque Carlos Chagas e Associação dos Moradores da Nova Embratel.

Ver também[editar | editar código-fonte]

  1. Gisele Moura é uma mulher preta, filha do subúrbio paulista que contrariou as estatísticas e se tornou Cientista Ambiental pela Universidade Federal Fluminense (UFF), sendo também co-fundadora do Núcleo Preto do mesmo curso. Hoje, atua como coordenadora na Rede Favela Sustentável*, e ainda encontra tempo para sensibilizar na trama do crochê.
  2. Artigo originalmente publicado no blog Rio On Watch, em 03 de março de 2023, parte da Série: Justiça Climática. Disponível em: https://rioonwatch.org.br/?p=66301.