Análises e propostas sobre a realidade do coronavírus nas favelas

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 14h15min de 3 de abril de 2020 por Fornazin (discussão | contribs)

A equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco apresenta um compilado de textos, prontos e em processo de construção, sobre os efeitos do Novo Corona Vírus nas favelas do Brasil. Vamos reunir pesquisas, artigos, ensaios e reflexões acadêmicas sobre os impactos do coronavírus na vida das favelas

Veja também:

 

Artigo | Coronavírus: pelo direito de lavar as mãos nas favelas cariocas, por Gizele Martins

Texto originalmente publicado como artigo de opinião no Jornal Brasil de Fato, em 19 de março de 2020.

Parte das recomendações listadas pelo Ministério da Saúde e pelos governantes brasileiros diante da pandemia do coronavírus (covid-19) não incluem a favela. No Rio de Janeiro, são inúmeras as favelas que nunca tiveram água, em outras a água vem duas ou três vezes na semana. Essa realidade é comum para quem mora do lado de cá. 

"Na falta da água, use álcool em gel", dizem as recomendações. Mas o álcool é artigo de luxo, que não é mais possível encontrar nas prateleiras dos supermercados e, quando se encontra, custa o triplo do preço.

Outra recomendação é evitar espaços aglomerados. Como? A favela é um grande aglomerado de casas, muitas sem janela, outras sem chance de ventilação alguma, com poucos cômodos, o que impossibilita seguir outra recomendação: manter a distância de um metro ou mais entre as pessoas. 

Mais uma recomendação é evitar transporte público, não ir para as ruas, ficar em casa. Mas somos nós os trabalhadores ditos informais, aqueles que não têm carteira assinada nem salário fixo.

Como implorar para que esse trabalhador, porteiro, faxineiro, ambulante, camelô, empregada doméstica, entregador, fique em casa, se a gente na favela come quando tem dinheiro, ou seja, quando trabalha?

Sem falar da atenção básica no que diz respeito à saúde pública, afinal, o Rio de Janeiro, desde o final do ano passado, vem passando por uma enorme crise na saúde. Tivemos muitos trabalhadores da saúde perdendo o emprego, outros que estão sem salários. Isso significa que temos menos profissionais para nos atender e mais postos de saúde e clínicas da família fechados. 

Fico pensando em como a favela vai escapar dessa.

Teremos que ter cuidados redobrados na forma de se comunicar e sempre pensar em alternativas e em soluções, que deveriam vir "de cima". Mas estamos aqui, nós favelados, pensando em como iremos vencer mais essa. 

Se você mora aí do outro lado do muro, olhe aqui para a favela também. Nós, que não temos atenção nenhuma do Estado, precisamos da solidariedade de cada um.

Olhe agora a cidade, veja que sem o favelado ela não funciona, pois somos nós que fazemos a economia funcionar com a nossa mão de obra. Sem nós, não tem cidade.

Então, por favor, governantes e sociedade, nos incluam nas políticas públicas, na atenção básica, nos projetos de lei, na informação, no saneamento básico.

Exijam que a gente não fique pelo menos sem água e sem energia nesse período de quarentena. Queremos ter o direito de lavar as mãos. 

*Gizele Martins é Moradora da Maré, jornalista, mestre em Comunicação, Educação e Cultura em Periferias Urbanas (FEBF-UERJ) e integrante do Movimento de Favelas do Rio de Janeiro.

 

Artigo | Esboço de crítica do discurso de "Guerra Contra o Coronavírus", por Marcella Araújo

Texto gentilmente cedido pela autora, Marcella Araújo, e pela revista onde ele foi publicado originalmente, a Horizontes ao Sul. 

 

No dia 16 de março de 2020, Emmanuel Macron, presidente da França, disse em comunicado à nação que “nous sommes em guerre” [nós estamos em guerra][1]. No dia seguinte, o presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Donald Trump, tuitou “The world is at war with a hidden enemy. WE WILL WIN” [O mundo está em guerra contra um inimigo oculto. Nós vamos vencer][2]. O primeiro ministro britânico, Boris Johnson, por sua vez, disse, em coletiva de imprensa, que deveria agir como um “wartime government” [governo em tempos de guerra][3]. Na cobertura televisiva de várias emissoras brasileiras, as chamadas sobre a “guerra contra o coronavírus” foram igualmente recorrentes[4]. Mas nós não estamos em guerra.

Em uma proposição que ficou famosa[5], um general prussiano chamado Carl von Clausewitz (1780-1831) disse que “A guerra é a continuação da política por outros meios”. O tratado Da guerra, editado e publicado postumamente (1832) por sua esposa, Marie von Bruhl, difere de inúmeros outros escritos sobre a guerra que priorizavam oferecer manuais para os campos de batalha. Clausewitz, por sua vez, pretendia analisar as especificidades do fenômeno da guerra e educar as mentes dos comandantes. Sem mergulhar na discussão sobre a guerra como um instrumento da política de Estado[6], que colegas da Ciência Política poderão fazer com muito mais profundidade, gostaria de frisar este ponto: a guerra é um fenômeno social, um entre outros tipos de conflito.

Como Georg Simmel propôs: o conflito é uma forma de interação social. Só é possível marcar uma posição levando em consideração a existência do outro e manifestando contra ele argumentos ou o uso da força[7]. Conflitos, nesse sentido, envolvem alteridade e reciprocidade – ainda que para marcar antagonismos. Em situações em que os conflitos escalam para o uso da força, cabe lembrar que, em nossa vida coletiva, não aceitamos qualquer exercício de poder - ele precisa vir devidamente justificado. No Estado Democrático de Direito, é a lei que descreve as situações, os direitos e deveres, respaldando o emprego do aparato da força. Mas antes é a crença na legitimidade da lei que garante que ela seja cumprida e são as justificações dadas às formulações racionais contidas na lei que sustentam a própria legitimidade da legislação.

Minha crítica ao discurso da guerra nesta conjuntura pretende apontar os riscos da sua adoção. Sigo em duas frentes. A primeira é identificar as operações discursivas da declaração de guerra: ela circunscreve um coletivo que está sob ataque, ela identifica uma liderança com autoridade para levar adiante os confrontos em defesa desse coletivo e ela nomeia um inimigo agressor. Quando autoridades nacionais recentemente declararam “guerra contra o vírus”, esse “inimigo oculto”, a um só tempo, elas se posicionaram como as lideranças à frente da guerra, em nome de certos entes sociais – a pátria, a economia nacional, as famílias, as empresas, os trabalhadores.

No Brasil, no dia 18 de março, o Governo Federal solicitou o reconhecimento do estado de calamidade pública, dispositivo legal que permite o aumento dos gastos públicos sem violação da Lei de Responsabilidade Fiscal, vigente desde 2000. Parte da oposição defendeu que a pandemia põe em xeque a Emenda Constitucional 95/2016, conhecida como Teto de Gastos[8]. O temor de alguns parlamentares é que a vigência do estado de calamidade pública vá além da flexibilização fiscal e abra a brecha para que o presidente Jair Bolsonaro justifique decretar estado de sítio, dispositivo legal previsto no artigo 137 da Constituição Federal de 1988, para situações de guerra[9]. Nesse caso, liberdade de imprensa e liberdade de reunião seriam suprimidas, apreensões em domicílio e intervenções em empresas de serviços públicos seriam permitidas, entre outras medidas. O estado de calamidade pública está vigente no Brasil desde 20 de março[10].

A segunda frente da crítica se detém sobre a discussão da procedência do vírus. Donald Trump não é o único a falar insistentemente que o vírus é chinês[11]. Recentemente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (sem partido) acusou o governo da China de ter escondido informações sobre o coronavírus e comparou a pandemia ao acidente nuclear de Tchernobil (1986), criando uma crise diplomática cujos desdobramentos ainda estão por ser sentidos[12]. Se para muitos o “inimigo” tem uma natureza espectral – ele é invisível a olho nu, oculto, difuso, paira no ar, penetra, adoece e mata corpos humanos –, o racismo contra nacionais e descendentes do primeiro país acometido pela doença procura torná-lo apreensível. A tentativa de atribuição de nacionalidade ao vírus o qualifica, demarca as fronteiras do lugar onde ele teria nascido (ou sido criado, segundo algumas teorias conspiratórias, as quais me poupo de discutir), mas também transforma o fantasma em sujeito. O portador “original” do vírus deveria ter sido tratado e, se a China supostamente não foi transparente na divulgação de informações, ela seria o sujeito inimigo.

Os dois pilares dessa crítica que proponho aqui – a metáfora da guerra para o enquadramento da situação indeterminada presente, por um lado, e o “inimigo oculto”, espécie de fantasma que vai sendo subjetivado, por outro – são tomados de empréstimos de dois sociólogos urbanos e da violência urbana cariocas: Marcia Leite e Michel Misse, respectivamente. Meu propósito ao trazer esses autores é apontar algumas consequências que podemos antever, caso a crise sanitária seja tratada como uma “guerra ao vírus”.

Como o fantasma da violência se tornou um sujeito social no Rio de Janeiro e quais foram os efeitos do emprego da “metáfora da guerra” para combatê-lo? No início dos anos 1980, a “violência urbana” começou a rondar as grandes cidades brasileiras. Em texto intitulado “Violência: o que foi que aconteceu?”, Michel Misse (2002) destaca que a representação da violência nas reportagens e nas falas cotidianas dos moradores do Rio parecia tratá-la como um vírus, no movimento inverso que fiz neste texto. Em suas palavras: “A tal da violência, que parece agir como um espectro ou fantasma, esconde-se ou dissemina-se, é tratada como uma epidemia, um vírus, um micróbio, ou como um Sujeito onipresente, onisciente, onipotente”[13]. Entre os anos 1980, como analisa Misse em inúmeros artigos acadêmicos e em sua tese de doutorado, o que houve foi uma transformação do fantasma social da violência em um sujeito social da violência[14]. Por meio de criminalizações e incriminações das práticas de venda no varejo de drogas, eis que os traficantes de droga se tornaram portadores privilegiados da violência – ainda que ela não se esgotasse neles[15].

Uma das consequências desse processo foi a propagação da “metáfora da guerra”[16], uma guerra contra o “Estado paralelo” dos traficantes de drogas, nas falas de moradores do asfalto carioca e nos discursos das autoridades públicas, como Marcia Leite analisou em sua tese. Artigo mais recente da autora[17], retraça o percurso da “metáfora da guerra” até a “pacificação de favelas”, destrinchando efeitos políticos e cotidianos do emprego da força contra o “inimigo interno” sobre as vidas de moradores de favelas, durante quase trinta anos. Basta lembrarmos os tantos símbolos empregados[18] durante os processos de ocupação militar recente de favelas cariocas, como parte do programa de implantação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs): “caveirões” do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar (BOPE), incursões de policiais militares pesadamente armados, apagamento de pichações de siglas de facções do tráfico, hasteamento da bandeira nacional no cume dos morros, toques de recolher e revistas indiscriminadas de moradores. Um desenrolar de cenas de “reconquista dos territórios”[19]. Entre muitas outras, a tese de Juliana Farias “Governo de Mortes” descreve densamente as consequências da lógica da guerra e do estado de exceção nas favelas cariocas[20]

Retomar a discussão da sociologia do conflito e as pesquisas de Michel Misse e Marcia Leite, neste texto sobre a pandemia de Covid-19, pretende pinçar elementos e tendências dos processos em curso e abrir perspectivas de inteligibilidade e contestação. É pela “guerra” e as brechas legais que ela permite o caminho que queremos seguir para enfrentar a pandemia?

Na contramão desse discurso de guerra, vemos um outro discurso em gestação: o da solidariedade. Foge às possibilidades deste texto explorá-lo em sua multiplicidade. Restrinjo-me a destacar as cooperações transnacionais em busca da contenção e cura da nova doença. No dia 13 de março, uma equipe da Cruz Vermelha da China com nove médicos, toneladas de equipamentos hospitalares e máscaras chegaram à Itália[21], um dos países europeus em que a crise sanitária está mais aguda, com número de casos e mortes superiores aos da própria China. Cuba[22], por sua vez, enviou 65 médicos para a cidade de Milão, epicentro dos adoecimentos e óbitos. O próprio ministro da Saúde brasileiro, Luiz Mandetta, mais de um ano após encerrar a participação de cubanos no Programa Mais Médicos, pretende reconvocar dois mil deles para fortalecer a rede de saúde pública e o atendimento aos doentes no país[23].

Espero com estas linhas tê-los/as chamado a atenção para os perigos do discurso da guerra. Essa metáfora, a nível mundial, pode nos levar ao acirramento de tensões, racismos e autoritarismos. Temos, em paralelo à exacerbação de conflitos, testemunhado também esforços humanos impressionantes de profissionais de saúde em todo o globo e uma inflexão muito significativa nos debates sobre macroeconomia e política econômica, com a (re)emergência de debates sobre as vidas, a subsistência e o bem estar social[24].

Não estamos em guerra. O que vivemos é uma crise sanitária e econômica, cheia de imprevisibilidade, mas também com grandes aberturas a novos tempos de cooperação.

 

Estudo | Coronavírus nas favelas (DataFavela)

O estudo realizado em março de 2020 reúne algumas informações preliminares sobre a situação do Coronavírus nas favelas, a partir de 1142 entrevistas em 262 favelas de todo o Brasil.  O estudo é conduzido pelo Data Favela, que surge da parceria entre Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas – CUFA e Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva. As pesquisas do Data Favela são realizadas pelos moradores das comunidades, que são treinados e supervisionados pela equipe do Instituto Locomotiva.

Sobre a pesquisa

"O corona atinge a população de forma desigual. Existem aqueles que, ainda bem, conseguem ficar no conforto do seu lar, com a geladeira cheia, fazendo home office. No entanto, a pesquisa deixa claro que existe milhões de brasileiros, autônomos, e com a geladeira vazia", avalia Celso Athayd e, Fundador da CUFA e do Data Favela e coordenador do movimento #FavelaContraOVirus “Criamos o movimento “Favela Contra o Vírus” com o objetivo de impedir que essas desigualdades provoquem ainda mais mortes nas favelas brasileiras, esse território com mais de 13,6 milhões de pessoas que não tem as mesmas condições de quarentena que os moradores do asfalto” - 'Celso Athayde, fundador da CUFA. 

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Acesse o Material

Para ter acesso aos resultados completos da pesquisa, clique aqui.

 

Estudo | Infográficos da Desigualdade - Casa Fluminense | Série COVID-19

A ONG Casa Fluminense (RJ) deu início à série especial dos Infográficos da Desigualdade. A cada semana serão compartilhados dados, propostas e reflexões sobre a realidade de desigualdades na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, com o olhar atento para a precarização e a falta de acesso a direitos básicos que marcam historicamente o cotidiano das periferias.

O contexto da pandemia do COVID-19 evidenciou ainda mais o papel das políticas públicas de garantir segurança para a população, principalmente para os economicamente mais vulneráveis. Começando o papo falando sobre habitação. As principais estratégias para conter o avanço da disseminação da COVID-19 têm sido o distanciamento social e o isolamento domiciliar, para além das práticas recorrentes de higiene. Seguimos defendendo o #FiqueEmCasa, entretanto essas medidas acendem um alerta para parte da população nas periferias da RMRJ que vivem a realidade do adensamento populacional excessivo.


Quartos com mais de 3 pessoas é a realidade de 300 mil casas na Região Metropolitana do Rio, segundo o Censo 2010 e o IPS 2018. Japeri é o município que possui o maior adensamento habitacional excessivo, com 14% dos domicílios nesta condição. Jacarezinho lidera entre as regiões administrativas da capital, seguido por Maré, Rocinha, CDD, Zona Portuária e Santa Cruz.

Em um cenário no qual muitas destas casas sequer possuem ventilação adequada, é necessário que o poder público garanta subsídio para compra de material de construção e assistência técnica para essas populações. A adaptação emergencial sobre arejamento não deve ser responsabilidade dessas famílias. Em casos mais graves, é preciso garantir moradias adequadas ou improvisadas em outro espaço, como hotéis, escolas e universidades.

 

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InfográficosDaDesigualdade
#CoronaNasPeriferias
#COVID19NasFavelas

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A série "Infográficos da Desigualdade" faz parte da pesquisa da nova publicação Mapa da Desigualdade | Região Metropolitana do Rio de Janeiro 2020, que será lançada pela Casa Fluminense em abril. Em breve, mais infos!

 

Artigo | Periferias e Pandemia: Plano de Emergência, já!, por Sonia Fleury e Paulo M. Buss

Artigo originalmente publicado no blog Outras Palavras, em 25 de março de 2020.

Comunidades onde mora a maior parte dos brasileiros requerem ações especiais contra a Covid-19. Enfrentam a precariedade. São solidárias e potentes. Ação do Estado precisa respeitar autonomia local. Eis algumas propostas:

A pandemia do Covid-19 chegou às favelas. Embora o vírus não discrimine por classe social ou raça, as condições socio-sanitárias serão determinantes para dizer quais estarão em melhores condições de sobreviver e quais estarão destinados a morrer.

Favelas e periferias enfrentarão a pandemia em condições mais adversas, decorrentes do descaso dos governos em prover condições adequadas de abastecimento de água, saneamento básico, coleta de lixo, habitação e urbanização, transporte público, atenção à saúde. Não se trata mais de falar na ausência de políticas públicas para esses territórios, mas de uma necropolítica, que condena ao extermínio pobres, negros e mestiços nas favelas.

Com a pandemia, torna-se imperioso que o poder público passe a coordenar ações estruturais e emergenciais que impeçam o extermínio massivo dessas populações. No entanto, autoridade não se confunde com autoritarismo e arbítrio, já que em situações de crises como essa, governantes são tentados a exacerbar o poder coercitivo, desrespeitando direitos humanos e sociais. Em uma pandemia o poder de coerção é fundamental, desde que a autoridade legítima atue em defesa da cidadania, compartilhando de forma transparente informações, mobilizando os recursos públicos e privados emergenciais e coordenando, de forma democrática e participativa, os esforços conjuntos para o enfrentamento da situação.

As favelas sofrem com um conjunto de carências, mas possuem enorme potência, no sentido de uma cultura de solidariedade, bem como um conjunto de organizações e atores: comunicadores, igrejas, templos e centros, associações de moradores, empresas locais e serviços, grupos musicais, coletivos de artistas e poetas.

Até recentemente o plano de contingência proposto para o combate à pandemia desconsiderou a realidade das favelas, com propostas voltadas à classe média, como isolamento social, trabalho em casa e medidas de higiene, circulação de ar, etc. impraticáveis em situações de falta de água, espaços insalubres e transporte coletivo em condições insuportáveis de aglomeração.

Agora que a mídia e as autoridades deram-se conta que a direção do contágio pode ser revertida, que medidas concretas precisam ser tomadas?

Renda básica de cidadania – Imediata aplicação da Lei nº 10.835, que institui a renda básica de cidadania, com um valor emergencial de 70% do salário mínimo. Sendo de caráter universal, evitará demoras na sua aplicação, ou a exclusão dos informais e autônomos não relacionados no Cadastro Único do governo e que serão duramente afetados. Aqueles que quiserem renunciar à renda básica poderão destinar os recursos ao Fundo Nacional de Saúde.

Teto de gastos sociais – Revogação imediata da Emenda Constitucional 95/2016, o que já acarretou perda de mais de R$ 10 bilhões para o orçamento da saúde. O teto de gastos e o contingenciamento de despesas não produziram melhorias econômicas e têm levado à deterioração dos serviços públicos hospitalares e da atenção primária.

Comissão nacional – Criação de uma comissão nacional, envolvendo governos e cientistas, visando propor soluções de enfrentamento da pandemia e suas consequências, em suas múltiplas dimensões: saúde pública, investimentos em produtos essenciais ao combate, frentes de trabalho e emprego nas cidades, favelas e periferias, plano habitacional nacional, estadual e local, obras de saneamento básico, transporte, logística etc.

Plano de contingência em favelas e periferias – Apesar das semelhanças em termos de carências de infraestrutura, cada território é singular e possui uma sociedade local diferenciada. Portanto, não se deve falar de favela como um genérico, mas de favelas, com suas capacidades e necessidades. O plano de contingência deve envolver aspectos sanitários, urbanísticos, habitacionais, logísticos e de infraestrutura, dentre outros.

Abastecimento de água, luz e coleta de lixo – Governos estaduais e locais devem usar seu poder legal para obrigar que as empresas concessionárias adequem o fornecimento de seus serviços imediatamente.

Preço do gás – Redução imediata do preço em 60%.

Fundo emergencial – Criação de fundos emergenciais estaduais e municipais, com recursos próprios, transferências da União, recursos do Sistema S e doações de empresários e da população, para serem usados em ações prioritárias definidas pelos comitês sanitários. Usar também os recursos destinados à merenda escolar e de outros serviços públicos que se encontrem paralisados.

Comitês sanitários – Em cada favela deve ser criado um comitê formado por técnicos do governo e da sociedade, como engenheiros, arquitetos, agentes de saúde, assistentes sociais e lideranças comunitárias, visando identificar as situações de maior vulnerabilidade em termos de moradias sem água, luz ou coleta de lixo, cômodos sem ventilação e com apenas um ponto de água para uso, pessoas com doenças e deficiências que exijam cuidados especiais, famílias em situação de fome e insegurança nutricional, dentre outras.

Levantamento dos recursos que a comunidade possui, como comunicadores comunitários, serviços de saúde e assistência social, escolas públicas e privadas, empreendimentos fabris e comerciais, coletivos e grupos de jovens etc. Definição de plano imediato de ação, com abertura de janelas, pontos de água, retirada de pessoas em situação de maior risco e sua alocação em hotéis, distribuição gratuita de cestas básicas e materiais de higiene e remédios, logística para transportar pacientes, dentre outros.

Testes em favelas – Priorizar em favelas a aplicação de testes para detecção de pessoas contaminadas e definição de estratégia de isolamento.

Comunicação – Utilizar os recursos da comunicação comunitária, de músicos e artistas locais, para mobilizar jovens, crianças e adultos para as medidas de prevenção, em especial a higiene e manutenção do isolamento.

Mobilização de recursos públicos e privados, com a requisição do uso de propriedades como hotéis e pousadas, espaços desocupados, empresas de transporte, distribuidoras de gás e outras, para atender às demandas locais.

Internet livre – Só será possível manter em isolamento os jovens e adultos se eles puderem ter acesso livre à internet, o que deve ser decretado, obrigando as empresas provedoras a liberação dos serviços nessas áreas.

Atividades escolares, culturais, religiosas e de exercícios físicos – Mobilização de professores, artistas, produtores culturais, religiosos e fisioterapeutas para desenvolverem programas de atividades para diferentes faixas etárias, disponibilizados pelo poder público com uso de meios privados e comunitários.

Fortalecer a atenção à saúde e à assistência – Reforço do SUS, com contratação de profissionais, treinamento e distribuição imediata de equipamentos de proteção para os profissionais, envolvendo agentes comunitários, profissionais do programa de saúde da família, assistentes dos CRAS e CREAS, unidades básicas e postos de saúde. Fortalecer a gestão do sistema de saúde, visando maior efetividade na transferência de pacientes para os hospitais e reduzindo a peregrinação e os riscos de contágio.

Enfim, a pandemia só pode ser enfrentada com mais SUS e mais democracia, ou seja, governo eficiente, transparente, respeitador da cidadania e dos direitos humanos, mobilizador da sociedade e distribuidor de recursos públicos para os que mais necessitam!

Sonia Fleury é Coordenadora do Dicionário de Favelas Marielle Franco do ICICT/FIOCRUZ (wikifavelas.com.br).
Paulo M. Buss é Professor Emérito da FIOCRUZ; Membro Titular da Academia Nacional de Medicina.

 

Relatório | "Torneiras secas para enfrentar o novo Coronavírus no Rio de Janeiro", da Ouvidora da Defensoria Pública (RJ)

Na última semana, a Ouvidoria Geral da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro fez um comunicado à população pelas redes sociais pedindo informações sobre onde está sem água no Rio de Janeiro. O objetivo era indicar à Defensoria onde atuar com urgência para que todas as pessoas tenham condições de seguir as orientações das autoridades sanitárias e, assim, colaborar para a contenção da pandemia de Covid-19, o novo Coronavírus.

Em apenas 5 dias (de 18 a 23/3), foram recebidas 475 denúncias de problemas de abastecimento em 140 lugares diferentes. São majoritariamente favelas e periferias de 14 municípios do estado, localizados principalmente na região metropolitana.

O relatório parcial com as informações desses primeiros 5 dias  já foi repassado aos núcleos especializados da Defensoria Pública. O Núcleo de Defesa do Consumidor já está buscando, com apoio do Ministério Público, uma solução emergencial extrajudicial junto à CEDAE.

Na análise das informações desses 5 primeiros dias, identificamos pelo menos 19 lugares sem água onde já há pessoas com suspeita ou confirmação de infecção pelo Covid-19, o que aumenta as preocupações com o alastramento da pandemia.

ACESSE AO RELATÓRIO DA OUVIDORIA DE DEFENSORIA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO (junto às localidades e suas denúncias)!

Bom Dia Rio: Defensoria Pública do RJ recebe 475 denúncias sobre falta de água.

O formulário de envio das informações sobre onde está sem água no RJ continua aberto para novas respostas: acesse aqui.

Às favelas e periferias, desejamos força! Saudamos as entidades da sociedade civil que também estão lutando. Contem com a Ouvidoria.

Equipe da Ouvidoria da Defensoria do RJ.

 

Artigo | As periferias na pandemia, por Alexandre Magalhães

Texto originalmente publicado na Revista IFCH-UFRGS, em 27 de março de 2020.

A disseminação do novo coronavírus vem provocando inegáveis efeitos negativos mundo afora. Há um consenso na comunidade médica e sanitária internacional de que as autoridades públicas precisam correr contra o tempo e implementar medidas eficazes e de longo alcance para evitar uma tragédia maior do que a que se delineia no horizonte. Uma das ações principais, segundo apontam, é o isolamento TOTAL da população, o que dificultaria a possibilidade de contágio pelo contato. Qualquer flexibilização dessa medida pode ser tomada como uma posição, no mínimo, irresponsável, para não dizer criminosa.

Diante do avanço da covid-19 e das ações realizadas para contê-la, é possível afirmar, pelo menos no caso brasileiro, que suas implicações não vão ser as mesmas em todos os lugares e para todas as pessoas. Há diferenças de geração, classe, gênero e raça que demarcarão as possibilidades de cuidado e de acesso aos serviços médico-hospitalares, já que tanto aquelas possibilidades quanto o acesso a estes serviços são distribuídos desigualmente entre as classes e camadas sociais.

Uma preocupação surgida recentemente, e que passou a ocupar cada vez mais espaço na imprensa nacional, foi com o iminente espalhamento do vírus em favelas e periferias do país. Apesar dos esforços cotidianos dos habitantes destas localidades para melhorar suas condições de vida, seja através dos famosos mutirões, seja através da pressão que realizam sobre as autoridades públicas, muito ainda precisa ser feito para aprimorar as condições de habitabilidade, saneamento e de saúde destas populações.

 Se o isolamento total é a medida mais adequada, como realizá-la em locais superpovoados, constituídos por ruelas estreitas, com casas muito próximas umas das outras (o que dificulta saber onde uma começa e outra termina), muitas vezes sem ventilação adequada (algumas sequer tem janelas), habitações estas frequentemente ocupadas por várias famílias e pessoas e, se não bastasse, sem acesso adequado e regular à água e saneamento básico?

No caso particular da água, isso é ainda mais alarmante. Uma das ações recomendadas pelos médicos, sanitaristas e infectologistas como uma das formas mais eficazes de contenção do novo coronavírus é a lavagem frequente das mãos. Como lavar as mãos sem água? Para citar apenas um exemplo, os moradores do Morro Santana, comunidade de Porto Alegre, estão sem acesso regular à água desde novembro de 2019. NOVEMBRO DE 2019. Estas pessoas estão muito mais expostas do que outras.

 O que esta crise ajuda a revelar, ao menos no caso das nossas grandes cidades, é a dimensão das desigualdades urbanas que a atravessam e se acumulam ao longo de sua história. Camadas de desigualdades que vão se sobrepondo e tornando a vida das pessoas que moram em favelas e periferias ainda mais difícil de ser vivida. Diante da calamidade, estas desigualdades gritam. As pessoas que de alguma forma as encarnam também gritam. Algo precisa ser feito!

 O outro lado dessa tragédia que se anuncia é como garantir que estas pessoas fiquem em casa quando para boa parte delas a possibilidade de obtenção da renda que sustenta suas famílias depende da circulação pela cidade. Trabalhadoras domésticas, informais, camelôs, enfim, uma multidão de mulheres e homens que precisam se movimentar para conseguir o pão de cada dia. As notícias que chegam destas localidades apontam para uma queda considerável da renda destas pessoas. Algo precisa ser feito!

 Algo precisa ser feito. Mas é evidente que não qualquer coisa. É claro que o necessário e urgente melhoramento das habitações, da ampliação do acesso à água, ao saneamento e outros serviços não significa a defesa de políticas de remoção que os governantes insistem em reproduzir. Já há conhecimento e recursos técnicos suficientes para realizar estes investimentos nos próprios locais em que as pessoas moram.

 Do ponto de vista das condições econômicas, é preciso garantir às trabalhadoras e trabalhadores que habitam em favelas e periferias (e a todas e todos aqueles trabalham de maneira informal) uma renda mínima básica num valor suficiente para que possam suprir suas necessidades básicas. Além disso, as prefeituras e governos estaduais – com recursos federais – devem garantir e ampliar a distribuição de cestas básicas (incluindo produtos de higiene e limpeza), gás, internet e suspender a cobrança de contas de água, eletricidade e outras.

Para que todas estas iniciativas ganhem corpo, é necessário, como bem apontaram em artigo recente os pesquisadores da Fiocruz Sonia Fleury e Paulo Buss, a constituição de um “Plano de contingência em favelas e periferias”, em que fosse definido um conjunto de ações voltadas especificamente para estes territórios, algo que ainda não foi feito.

 Enquanto uma política de cuidado constituída pela administração pública não é instituída, os próprios moradores elaboram estratégias para encarar os possíveis efeitos perversos da covid-19 em suas vidas. Através de redes locais de solidariedade e ajuda mútua, e contando com a colaboração de organizações da sociedade civil e universidades públicas, os moradores produzem material de divulgação acerca das medidas que devem ser tomadas no dia a dia para evitar o contágio, correm atrás de doações de alimentos e itens de higiene e buscam produzir melhorias, ainda que limitadas, em seus lares.

Não tenhamos dúvidas: se o vírus se alastrar ainda mais, como já parece o caso, quem mais sofrerá serão os que moram em favelas, vilas e periferias deste país.

 Precisamos de alguma forma colaborar com a luta destas pessoas, ajudar na repercussão destas ações em curso e na pressão para que a administração pública implemente ações mais significativas de combate ao coronavirus nestes territórios.

E fazer isso a despeito de quem governa: enquanto finalizava este texto, recebi a notícia de que, depois do pronunciamento irresponsável do presidente da República no dia 24 de março, uma parte considerável do comércio em favelas cariocas foi reaberto e a circulação aumentada. Não podemos permitir que esse discurso e política de morte se aprofunde ainda mais!

 Em defesa da nossa vida e de todos que amamos, fique em casa!

Alexandre Magalhães é professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e colaborador na equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco.

 

Verbete | Pandemia de Covid-19, Assassinato de Marielle e Movimento Escola sem Partido - aproximações, por Roberto Eduardo Albino Brandão

Acesse o VERBETE em nossa plataforma!

 

Artigo | O coronavírus evidencia as desigualdades estruturais de nossa sociedade, por INCT-InEAC/UFF

Texto de Roberto Kant de Lima, Pedro Heitor Barros Geraldo, Fabio Reis Mota, Frederico Policarpo, Flávia Medeiros[25], originalmente publicado no blog d'O Globo, em 30 de março de 2020. 

Nos últimos anos temos nos dedicado a pesquisar as representações e práticas do direito no Brasil e em outros países ocidentais. Esse contraste tem nos mostrado como o direito brasileiro hierarquiza a nossa população em termos de direitos. Ou seja, entre nós, apesar dos preceitos constitucionais republicanos, não há uma estrutura jurídica ordinária que garanta o exercício de um mínimo de direitos comuns a todos os diferentes cidadãos. O que há é a aplicação de um conjunto de privilégios atribuídos a certos segmentos da sociedade, sejam eles detentores do capital ou trabalhadores. A diferença em relação às demais sociedades ocidentais é, portanto, que nelas a desigualdade é vista como um problema. A inexorável desigualdade econômica produzida pelo o mercado é que deve gerir as desigualdades sociais, e o sistema jurídico deve atuar para mitigá-las. Já aqui a desigualdade está inscrita no próprio sistema jurídico, como parte integrante e indispensável dele, sistematizando juridicamente as desigualdades sociais, políticas e econômicas. Essa naturalização da desigualdade jurídica, anterior à desigualdade econômica, é um obstáculo ao funcionamento regular e regulado do mercado e uma expressão de representações culturais de uma sociedade hierarquizada, constituindo-se também em referência e suporte para sua reprodução, onde pode florescer um individualismo perverso, que nunca se identifica com o “outro”, mesmo que este seja seu semelhante.


Essa pandemia coloca em evidência mais uma vez essa naturalização das desigualdades estruturais de nossa sociedade em seus diferentes níveis. Inicialmente, as chamadas medidas sanitárias – lavagem constantes das mãos com água e sabão – e restritivas de circulação, como a necessidade de praticarmos um “isolamento social” - o qual, na verdade, é um confinamento social que de isolamento nada tem - coloca o foco na suposição de que todos temos, de maneira uniforme, o exercício de um direito mínimo à moradia e ao saneamento, o que não é verdadeiro. O problema habitacional no Brasil faz com que nos deparemos com infraestruturas urbanas altamente precarizadas no que tange à mobilidade urbana e ao saneamento, como por exemplo, as das denominadas favelas ou “comunidades”, existentes em toda a região metropolitana do Rio de Janeiro e também em outras de nossas cidades e metrópoles. A inexistência de políticas públicas devotadas ao planejamento urbano que propicie o exercício deste direito hoje evidencia uma enorme distância entre os segmentos da classe média urbana e os segmentos menos favorecidos da população no que tange ao seu bem estar no espaço doméstico.


Esta desigualdade se manifesta, ainda, no fato de que os segmentos superiores da sociedade, além de poder ficar no conforto de suas casas, podem deslocar-se para as casas de campo e veraneio, confinando-se com suas famílias. Claro que também contando com toda a estrutura de empregados e serviços à disposição, mostrando a total falta de solidariedade e de compaixão com a situação dos trabalhadores domésticos. Confinamento este que também impõe dificuldades suplementares principalmente às mulheres nessa nova conformação social, como a sobrecarga do trabalho doméstico, das mães que tomam conta sozinhas dos filhos, e no seu efeito perverso, que é o aumento do registro de casos de violência doméstica e de feminicídios, o que nos faz refletir sobre as condições sociais e emocionais que definem o "lar" e a casa, ambientes vinculados aos papéis sociais das mulheres e que se tornam o principal terreno para a emergência dos conflitos.


Em segundo lugar, a pandemia torna explícita nossa tradição escravocrata ao colocar em risco pessoas e setores mais vulneráveis da sociedade que hoje se encontram numa condição ainda mais precária e perigosa quanto ao seu direito ao trabalho, bem como a sua segurança sanitária, já que milhões de trabalhadores e trabalhadoras são obrigados de forma desumana a cumprirem suas jornadas de trabalho, deslocando-se por meio de precária e congestionada rede de transportes públicos, inclusive sem as proteções sociais e sanitárias necessárias nesse momento de crise, tudo isso estimulado por uma espantosa propaganda governamental alheia às prescrições mínimas de segurança sanitária e do trabalho, ao arrepio do resto do mundo.
As comparações com outros contextos têm se concentrado na (in) capacidade de acolhimento da infraestrutura de saúde. Mas os regimes de proteção social e do trabalho das democracias europeias são muito uniformes e presentes no cotidiano dos cidadãos e funcionam como articuladores de políticas em nível nacional. Em contraste, no Brasil, as medidas restritivas severas adotadas pelos governadores dos estados têm atingido apenas uma pequena parcela da sociedade que tem acesso a direitos como moradia, saneamento, saúde e trabalho. Já as políticas do governo federal têm ido na direção de que os cidadãos podem lidar com seus recursos próprios com as consequências imprevisíveis do contágio.


Finalmente, a crença na eficácia das políticas com ênfase repressiva na saúde e na segurança, seja de “tratamento de doenças”, seja do “tiro, porrada e bomba” – sempre para os “outros” - são condições que dificultam a adoção de medidas preventivas com adesão universal da sociedade. A falta de proteção no trabalho e a falta de confiança nas autoridades públicas limitam a difusão de políticas restritivas compreensíveis para a sociedade, provocando seu descumprimento, seja por necessidade, seja pela arrogância daqueles que se acham acima da lei e das regras, que devem se aplicar apenas aos “outros”, muito difundida entre nós, mas mais explícita nos segmentos hierarquicamente superiores de nossa sociedade.


Para complexificar mais ainda o problema, essas medidas se tornaram objeto de disputa política, em um governo federal que se alimenta de crises para fortalecer-se no poder e ocultar seus eventuais descaminhos. Utilizou-se desde a campanha eleitoral de estratégias negacionistas, de desqualificação sistemática e universal dos contendores e dos seus argumentos, replicando a lógica medieval da disputatio, tão cara ao nosso direito processual e à formulação do saber jurídico nacional. Encerrado o período eleitoral, no entanto, prosseguiu governando de modo virtual com essa lógica nas mídias sociais, desprezando práticas de criação de consensos e união de esforços para formular, propor, aprovar e implementar políticas públicas. Mas a negação do conhecimento científico, o ataque sistemático à necessidade e qualidade dos serviços públicos chocou-se com a realidade de uma pandemia, fenômeno que ultrapassa em muito as fronteiras mesquinhas dessa luta política eleitoral.


Um ponto relevante a se notar é a banalização com que essa estratégia de implementação de ações governamentais tem se sustentado. Recentemente revogou-se parcialmente uma Medida Provisória (MP) no que se referia à suspensão do contrato de trabalho sem salário, atribuindo-se essa normativa esdrúxula, no meio de uma pandemia, a um “erro de redação”. Ora, isto mostra a inabilidade desta gestão em relação às regras de funcionamento da própria burocracia institucional, coisa que já vimos discutindo há tempos no que se refere às instituições de segurança pública. Desprezam-se as regras e menosprezam-se os protocolos porque não se acredita na eficácia da racionalidade burocrática. A burocracia que é, antes de tudo, uma memória e uma proteção protocolar das prerrogativas e decoro dos governantes e do direito de governados, é vista como um empecilho para a tomada de decisões, por impedir o exercício arbitrário da autoridade. Uma leitura possível desse “erro” é a de falta de articulação com os empresários e trabalhadores para se elaborar uma MP pertinente para a situação atual. Outra leitura possível é a de uma tentativa de controlar a pauta do debate público, em uma já conhecida estratégia desse governo em produzir crises de forma sistemática para desviar-se de temas negativos a sua imagem, e/ou uma tentativa de pressionar as instituições, na base do “se colar, colou”.


Por outro lado, seja lá de quem for sua autoria, ela revela valores resilientes dessa matriz escravocrata da sociedade brasileira que, reiteradamente, em diferentes circunstâncias, como já dito, demonstra seu desprezo pelos direitos de cidadania de determinados setores da sociedade brasileira, ainda vistos como um seu segmento hierarquicamente inferior. Essa MP é uma forma moderna e institucional de reproduzir a lógica do trabalho escravo, ainda, infelizmente, tão presente em nossa sociedade, na contramão das necessárias políticas de apoio governamental urgente a empresas que não demitam e aos trabalhadores autônomos e desempregados, estratégia que vem se universalizando entre os países atingidos.


Esta experiência coletiva das medidas sanitárias restritivas e os prejuízos sociais e humanos, provavelmente, muito desiguais entre os poucos com proteções sociais e os muitos sem nenhuma, produzirá reflexões sobre o papel da política profissional; dos investimentos nas políticas sociais e proteção ao trabalho; do papel da ciência na sociedade e na produção de políticas públicas — especialmente, mas não exclusivamente, de saúde pública, representada pelo SUS — e no bem estar social. Como o vírus, apesar de atingir de modo mais óbvio os pobres, também atinge a classe média e os ricos, todos dependentes das pesquisas públicas de produção de diagnósticos e de vacinas, essa circunstância pode explicitar com mais eficiência a relevância da ciência, da educação e da saúde públicas em nosso país e na própria reprodução do sistema capitalista.


Por outro lado, devemos considerar que nosso mundo é feito de crises. Vivemos sistematicamente em crises, pois essa foi a opção econômica, política e social que a sociedade ocidental escolheu. Prognósticos para o futuro costumam ser projeções de eventos passados mas, aparentemente, este é um evento – e um vírus – com características ainda desconhecidas.
Então, quem sabe iremos acentuar ainda mais nosso fechamento para o outro, com o reforço de ideologias nacionalistas e territorialistas – pautadas pela ideia de que “farinha pouco, meu pirão primeiro” – ou, pelo contrário, iremos produzir um sentido de universalidade da humanidade que confira às práticas sociais um outro modo de fazer a sociedade, fundada na compreensão de que somos uma coletividade planetária? Mas isso, só o futuro nos dirá.

 

Artigo | Pandemia democratizou poder de matar, diz autor da teoria da 'necropolítica'

Em entrevista realizada para o Jornal Folha de São Paulo, publicada no dia 30 de março de 2020, Achille Mbembe, filósofo camaronês, comenta sobre como governos decidem quem viverá e quem morrerá em tempos de pandemia.

Por Diogo Bercito, de Washington

O coronavírus está mudando a maneira como pensamos sobre o corpo humano. Ele virou uma arma, diz o filósofo camaronês Achille Mbembe.
Ao sair de casa, afinal, podemos contrair o vírus ou transmiti-lo a outras pessoas. Já há mais de 775 mil casos confirmados e 37 mil mortes no mundo. “Agora todos temos o poder de matar”,
Mbembe afirma. "O isolamento é justamente uma forma de regular esse poder.”

Mbembe, 62, é conhecido por ter cunhado em 2003 o termo "necropolítica". Ele investiga, em sua obra, a maneira como governos decidem quem viverá e quem morrerá — e de que
maneira viverão e morrerão. A necropolítica aparece, também, no fato de que o vírus não afeta todas as pessoas de uma maneira igual.

Há um debate por priorizar o tratamento de jovens e deixar os mais idosos morrerem. Há ainda aqueles que, como o presidente Jair Bolsonaro, insistem que a economia não pode parar mesmo se parte da população precisar morrer para garantir essa produtividade  "Alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, essa é a vida", disse o brasileiro recentemente.

“O sistema capitalista é baseado na distribuição desigual da oportunidade de viver e de morrer”, diz Mbembe. “Essa lógica do sacrifício sempre esteve no coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroliberalismo. 

Quais são as suas primeiras impressões desta pandemia? Por enquanto, estou soterrado pela magnitude desta calamidade. O coronavírus é realmente uma calamidade e nos traz uma série de questões incômodas. Esse é um vírus que afeta nossa capacidade de respirar… E obriga governos e hospitais a decidir quem continuará respirando. Sim. A questão é encontrar uma maneira de garantir que todo indivíduo tenha como respirar. Essa deveria ser a nossa prioridade política. Parece-me, também, que o nosso medo do isolamento, da quarentena, está relacionado ao nosso temor de confrontar o nosso próprio fim. Esse medo tem a ver com não sermos mais capazes de delegar a nossa própria morte a outras pessoas.

O isolamento social nos dá, de alguma maneira, um poder sobre a morte? Sim, um poder relativo. Podemos escapar da morte ou adiá-la. A contenção da morte é o cerne dessas políticas de confinamento. Isso é um poder. Mas não é um poder absoluto porque depende das outras pessoas.

Depende de outras pessoas também se isolarem? Sim. Outra coisa é que muitas pessoas que morreram até agora não tiveram tempo de se despedir. Diversas delas foram incineradas ou enterradas imediatamente, sem demora. Como se fossem um lixo de que precisamos nos livrar o mais rapidamente possível. 

Que sequelas a pandemia deixará na sociedade? A pandemia vai mudar a maneira como lidamos com o nosso corpo. Nosso corpo se tornou uma ameaça para nós próprios. A segunda consequência é a transformação da maneira como pensamos no futuro, nossa consciência do tempo. De repente, não sabemos como será o amanhã.

Nosso corpo também é uma ameaça a outros, se não ficarmos em casa. Sim. Agora todos temos o poder de matar. O poder de matar foi totalmente democratizado. O isolamento é precisamente uma forma de regular esse poder. Outro debate que evoca a necropolítica é a questão sobre qual deveria ser a prioridade política neste momento, salvar a economia ou salvar a população. O governo brasileiro tem acenado pela priorização do resgate da economia. Essa é a lógica do sacrifício que sempre esteve no coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroliberalismo.

Esse sistema sempre operou com um aparato de cálculo. A ideia de que alguém vale mais do que os outros. Quem não tem valor pode ser descartado. A questão é o que fazer com aqueles que decidimos não ter valor. Essa pergunta, é claro, sempre afeta as mesmas raças, as mesmas classes sociais e os mesmos gêneros.

Como na epidemia de HIV, em que governos demoraram a agir porque as vítimas estavam nas margens: negros, homossexuais, usuários de droga? Na teoria, o coronavírus pode matar todo o mundo. Todos estão ameaçados.

Diversos presidentes têm se referido ao combate ao coronavírus como uma guerra. A escolha de palavra importa, neste momento? O senhor escreveu em sua obra que a guerra é um claro exercício de necropolítica. Existe dificuldade em dar um nome ao que está acontecendo no mundo. Não é apenas um vírus. Não saber o que está por vir é o que faz Estados em todo o mundo retomar as antigas terminologias utilizadas nas guerras. Além disso, as pessoas estão recuando para dentro das fronteiras
de seus Estados-nação.

Há um maior nacionalismo durante esta pandemia? Sim. As pessoas estão retornando para o “chez-soi”, como dizem em francês. Para o seu lar. Como se morrer longe de casa fosse a pior coisa que poderia acontecer na vida de uma pessoa. Fronteiras estão sendo fechadas. Não estou dizendo que elas deveriam ficar abertas. Mas governos respondem a esta pandemia com gestos nacionalistas, com esse imaginário da fronteira, do muro.

Depois desta crise, vamos voltar a como éramos antes? Da próxima vez, vamos ser golpeados de uma maneira ainda mais forte do que fomos nesta pandemia. A humanidade está em jogo.

O que esta pandemia revela, se a levarmos a sério, é que a nossa história aqui na terra não está garantida. Não há garantia de que vamos estar aqui para sempre. O fato de que é plausível que a vida continue sem a gente é a questão-chave deste século.

 

Artigo | Covid-19 escancara a injustiça da vida nas favelas e periferias, ONG Fase

"Mais uma vez as populações de favelas e periferias estão submetidas a uma sobreposição de tipos de violência que, do nosso ponto de vista, precisam ser enfrentadas", afirma, emartigo, equipe da FASE no Rio de Janeiro[26], publicado em 31 de março de 2020 em seu site oficial.

Em menos de duas semanas, a população das favelas e periferias do Rio de Janeiro viu o governador Wilson Witzel (PSC) projetar-se na cena política nacional com algum grau de sensatez em relação à pandemia da Covid-19 se comparado com o posicionamento do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) que, ao contrário do recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), esteve presente em ato público, cumprimentou pessoas sem nenhum tipo de equipamento de proteção e disse que “não passa de uma gripezinha”.

É inegável a importância das medidas tomadas pelo governador ao colocar-se na dianteira e comunicar a população sobre os riscos à saúde decorrentes da Covid-19 e, posteriormente, tomar medidas jurídicas de limitação de circulação entre o interior do Estado e a região metropolitana. No entanto, quando olhamos as alterações feitas no orçamento público estadual, fica evidente, mais uma vez, o seu desprezo à população mais vulnerável, principalmente num momento de emergência sanitária, que é quem mais precisará de políticas sociais e de distribuição de renda.

Witzel contingenciou² recursos de várias áreas em meio à pandemia. Merece destaque o contingenciamento de R$7,6 bilhões feito no orçamento sob a justificativa da queda do preço do barril do petróleo e da necessidade de reorientar o orçamento para enfrentar a Covid-19. O Fundo Estadual de Habitação de Interesse Social, por exemplo, também perdeu 29% do orçamento, que inclusive poderia ser utilizado para melhorias habitacionais nas favelas. O que chama atenção é que, exceto a área da saúde, a única que não foi contingenciada foi a área da Segurança Pública (Polícias Civil e Militar, Defesa Civil, Corpo de Bombeiros e o Programa Polícia Presente). Essa escolha de onde se tira e de onde se deixa orçamento é mais um exemplo da política genocida deste governo.

Para a população de favela e periferia tais medidas já têm consequências diretas. Sendo uma população majoritariamente formada por pessoas negras, cujos vínculos formais de trabalho são raros e que a sobrevivência é garantida por meio da inserção em empregos do setor de serviços, precarizados, intermitentes e informais; as medidas de contenção da epidemia geraram um impacto brutal sobre a sua condição de subsistência. Um exemplo deveu-se no âmbito do direito ao transporte já que passou a ser necessário comprovar vínculo formal de trabalho para ingressar nos trens e ônibus intermunicipais. Houve uma sobreposição de violação de direitos, na medida em que as portas das estações de trens e de ônibus ficaram lotadas e grandes filas se formaram expondo ainda mais os trabalhadores ao risco de contágio. Outro impacto negativo foi a diminuição da renda familiar para os moradores destas áreas que, obrigados pelas determinações estadual e municipal a fazer quarentena, estão vivendo em situação de extrema necessidade.  A pandemia, portanto, tem deixado visível a faceta mais cruel de viver numa cidade tão desigual como Rio de Janeiro: quem fica com os piores efeitos da Covid-19 são os que já não tem acesso à direitos.

Sem saúde, água e “isolamento social”

Muito antes que a epidemia da Covid-19 chegasse às favelas e periferias a situação da precariedade dos serviços de saúde que atendem estes territórios já era uma realidade. A lógica neoliberal, que orienta a gestão dos serviços públicos, fez com que, ao longo dos últimos anos, a Empresa Pública Rio Saúde fosse sucateada e as Organizações Sociais de Saúde (OSS), que operam por meio de parceria público-privada, ganhassem seu lugar. A péssima qualidade do atendimento oferecido pelas Unidades de Pronto Atendimento (UPAS) não deixa dúvida.

Outro exemplo da negação do direito à saúde à população de favela e periferias deu-se em 2019, quando o prefeito Marcelo Crivella (PRB) diminuiu drasticamente as equipes de Saúde da Família, Saúde Bucal e dos Núcleos de Atenção à Saúde da Famílias (NASF), assim como atrasou os salários dos funcionários vinculados a estes equipamentos. Na ocasião ocorreu a paralisação dos profissionais da saúde, que, mesmo tendo mantido serviços mínimos em 30%, impactou diretamente a população negra e pobre, que tem o Sistema Único de Saúde (SUS) como a única forma de acessar o direito a saúde. Ainda nessa linha, não podemos esquecer que no plano federal a PEC 95/2017 congelou os gastos públicos pelos próximos 20 anos. Deste modo, a lentidão e a inópia de respostas por parte das autoridades para com as populações pobres em relação a Covid-19 se somam a sensação de desamparo já conhecida pela população de favela e periférica.

No que se refere à imposição do distanciamento social e higienização das mãos como medida preventiva, a realidade da favela, periferia e de ocupações urbanas impõe desafios enormes. Casas de apenas um cômodo, sem ventilação, onde geralmente o compartilhamento do espaço é feito por muitas pessoas e pessoas idosas convivem com jovens, adultos e crianças. Portanto, o distanciamento social na favela é impraticável tanto do ponto de vista habitacional quanto do ponto de vista dos modos de vida que, diferente da classe média, expandem a casa além dos seus muros. Quanto a necessidade de “lavar as mãos” a pergunta sem resposta é a seguinte: com que água? O direito à água não uma realidade para muitos moradores de favelas e periferias! Não é à toa que nesses locais as casas têm mais de uma caixa d´água, resultado do abastecimento intermitente e precário que serve essas áreas. Ali, reservar água é uma questão de sobrevivência.

Alternativas que vêm de dentro

Diante do quadro de poucas ações governamentais para as populações de favela e periferia, os próprios moradores têm se mobilizado e criado alternativas de enfrentamento à proliferação da Covid-19. Essas ações se baseiam em algumas frentes como o compartilhamento e coleta de informações de prevenção e sintomas; recolhimento de doações para compra de alimentação e materiais de limpeza; medidas educativas sobre a importância do racionamento de água; monitoramento de pessoas que são consideradas do grupo de risco.

Nas favelas do Complexo do Alemão, por exemplo, estão sendo desenvolvidas ações de recolhimento de cestas básicas e doações de alimentos, álcool e gel, sabão; além de ações de conscientização dos moradores acerca da importância do distanciamento social e da lavagem das mãos. A ação é realizada por meio de carros de som e cartazes no território. Devido à ausência de recursos básicos de saneamento e saúde, esta favela tem sofrido com à falta d’água, o que levou os moradores a adotarem medidas de compartilhamento e racionamento da água. A solidariedade se destaca em tempos de caos.

De acordo com Raull Santiago, jornalista e morador do Complexo do Alemão, foi criado um “gabinete de crise na comunidade” que tem por objetivo conscientizar a população, buscar recursos para o enfrentamento à pandemia e pressionar para que os governantes atuem nas favelas e viabilizem condições básicas para a prevenção.

No Complexo da Maré, os moradores utilizam os rádios locais para divulgar informações de prevenção, inclusive o funk tem sido instrumento de conscientização. Moradores também estão gravando vídeos que alimentam uma campanha comunitária de informações sobre a Covid-19. Foi criado ainda um canal no WhatsApp para tirar dúvidas.

Em Manguinhos, o Fórum Social de Manguinhos e as Mães de Manguinhos lançaram campanha em suas redes sociais para recebimento de cestas básicas e kits de limpeza, como forma de colaboração com os moradores que se encontram desempregados e em situação de vulnerabilidade.

Em todas essas favelas os próprios moradores estão fazendo um monitoramento dos idosos e suas necessidades, para que os mesmos não precisem sair de casa. Voluntários e coletivos estão em constante contato com as unidades de saúde para atualização de informações e medidas que possam ser tomadas para a prevenção. E, apesar das dificuldades de acesso à internet que a população de favela enfrenta, as redes sociais tem sido um importante instrumento para disseminação de informações e combate às fakenews.

Na Baixada Fluminense destacamos a articulação “#CoronaNaBaixada” que reúne cerca de 100 lideranças e organizações da Baixada Fluminense para combater a proliferação da Covid-19 e apontar propostas para enfrentar a crise nesse momento. Em “Carta Manifesto”³ a iniciativa denuncia que ainda não há uma ação coordenada entre os municípios da Baixada e o governo do Estado, tanto que há municípios que ainda não estão seguindo as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e das autoridades sanitárias. A articulação reivindica, por exemplo, a realização de testes em pacientes da Baixada com sintomas do novo coronavírus.

No momento, todos vivemos a sensação da incerteza sobre condições mínimas de subsistência. A diferença é que, para quem vive nas favelas e periferias, além da incerteza causada pela pandemia existe o medo de que em nome da Covid-19, tudo possa ser utilizado como justificativa para suspensão de direitos que, no limite, pode gerar mortes cujo fim não tem nenhuma relação com o vírus. As violências cometidas pelas forças de segurança, pela precariedade dos serviços de saúde e saneamento são questões que devem permanecer sendo monitoradas. 

Por fim, mais uma vez as populações de favelas e periferias estão submetidas a uma sobreposição de tipos de violência que, do nosso ponto de vista, precisam ser enfrentadas. No momento em que existe uma disputa ideológica entre “salvar vidas” versus “salvar a economia” é fundamental defender princípios social democratas que orientaram a construção do estado de bem-estar social. Mesmo longe de ser uma realidade num país como o Brasil atual, acreditamos que a defesa de direitos é estratégica para disputar a gramática política atual.

 

Material | Cartilha "Coronavírus para Pais e Professores" - Série Pequenos Cientistas, produzida pela UFMT


A Série Pequenos Cientistas permite que as crianças pratiquem a leitura de textos informativos nos primeiros níveis da alfabetização. 
Pensando nisso, a Fundação UNISELVA e a Universidade Federal do Mato Groto (UFMT) produziram uma cartilha pedagógica para aprender sobre o novo coronavírus.

Acesse a CARTILHA aqui!

 

Entrevista especial | “É preciso que o recurso de 600 reais chegue hoje”, com Sonia Fleury

Cada favela precisa de um plano emergencial específico, segundo suas especificidades, diz a pesquisadora.

Por: João Vitor Santos e Patricia Fachin, para o Instituto Humanitas UNISINOS | 02 Abril 2020

coronavoucher de 600 reais para os trabalhadores informais, autônomos e intermitentes, como ficou conhecido o pagamento do auxílio emergencial que será feito pelo governo federal, “pode chegar às pessoas das comunidades, mas para ser operacionalizado, ele requer uma burocracia que pode retardar o recebimento e talvez seja tarde demais”, adverte a cientista política Sonia Fleury[27]. Para ela, a melhor maneira de suprir as necessidades financeiras desses trabalhadores é através de uma renda mínima que possa ser garantida imediatamente. “Um economista liberal disse que deveriam estar jogando dinheiro de helicóptero. É mais ou menos isso; não dá para pensar agora em mecanismos burocráticos, porque as pessoas não têm como prover a renda. Na favela, as pessoas costumam dizer que se vende o almoço para comprar a janta. Se a pessoa não trabalhar, não tem o que comer e isso já está acontecendo”, afirma.

Enquanto o auxílio governamental não chega às comunidades, o voluntariado assistencial tenta suprir as necessidades mais emergenciais, como alimentação, mas somente isso “não dá; é preciso que esse recurso de 600 reais chegue hoje, e não se tem clareza de quando vai chegar na mesa das pessoas”, reitera. A crise, salienta, evidencia as carências, mas também as potencialidades das favelas. “A favela hoje é o lugar mais organizado que existe no Brasil. O seu bairro tem algum nível de organização para enfrentar a pandemia? No meu, as pessoas nem se cumprimentam. A sociedade está inteiramente desmobilizada, não participa de nada, mas este não é o caso das favelas. Elas têm um nível de organização cultural, social, religioso, que é muito diferenciado em relação ao resto da população brasileira. Isso vai ficar patente na maneira como eles estão enfrentando a pandemia”, assegura.

Sonia também comenta o enfrentamento da crise no Rio de Janeiro, onde o governador Witzel e o prefeito Crivella politizam a situação. “Crivella, que é um prefeito repudiado pela maioria da população, está tentando se associar ao discurso do presidente Bolsonaro para ver se aumenta a sua capacidade para concorrer à eleição municipal, porque, por si só, ele não tem a menor capacidade de se reeleger”, diz. E lamenta: “Quem vai sofrer com essa situação é a população; ninguém tem a menor dúvida disso, principalmente porque o Rio de Janeiro é uma cidade que tem muitas favelas, com altíssima concentração populacional. Algumas são maiores do que muitos municípios, mas sem a autonomia e os recursos de um município para enfrentar essa situação”.

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp à IHU On-LineSonia Fleury pontua que a pandemia de Covid-19 acentuou a tensão entre as áreas sociais e a área econômica, em curso desde a aprovação da Emenda Constitucional 95 em 2016, que limita o teto dos gastos nas próximas duas décadas. Na avaliação dela, a crise, de outro lado, também ressalta a importância do Sistema Único de Saúde - SUS. “Ficou claro para a sociedade brasileira, pela primeira vez, a importância do sistema de saúde. Ele não é apenas um atendimento de atenção médica para pobre, mas é responsável pela saúde pública do Brasil inteiro, de pobres, ricos, pelas ações de vigilância sanitáriaepidemiológica”, assinala.

CONFIRA A ENTREVISTA COMPLETA!

 

Predefinição:Referências

  1. [1]MACRON, Emmanuel. (2020), “Adresse aux Français”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=3&v=MEV6BHQaTnw&feature=emb_logo
  2. [2]TRUMP, Donald. “The world is at war with a hidden enemy. WE WILL WIN!” Tweet, 17 março 2020, 4:31 p.m. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=3&v=MEV6BHQaTnw&feature=emb_logo
  3. [3]RAWLISON, Kevin. “’This enemy can be deadly’: Boris Johnson invokes wartime language”. The Guardian, 17 março 2020, 19:38 GMT. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2020/mar/17/enemy-deadly-boris-johnson-invokes-wartime-language-coronavirus
  4. [4]Macron, Johnson e Trump não foram os únicos a falar de “guerra”. Ver: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/lideres-adotam-discursos-de-guerra-contra-pandemia.shtml
  5. [5]VON CLAUSEWITZ, Carl. (2007), On War. Oxford World’s Classics, Oxford University Press
  6. [6]Ler, por exemplo, MAQUIAVEL, Nicolau (2010), O Príncipe. Rio de Janeiro: Penguin.
  7. [7]Ver: SIMMEL, Georg. (1992), On individuality and social forms. The University of Chicago Press
  8. [8]SENADO NOTICIAS. “Pandemia põe em xeque teto constitucional de gastos públicos”. 18 março 2020. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/18/pandemia-poe-em-xeque-teto-constitucional-de-gastos-publicos
  9. [9]MOTA, Erick. “Congresso está atento pra Bolsonaro não decretar estado de sítio, diz Molon”. Congresso em Foco, 21 março 2020, 9:42 a.m. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/legislativo/congresso-esta-atento-pra-bolsonaro-nao-decretar-estado-de-sitio-diz-molon/
  10. [10]MAGNOLI, Demétrio. “Nós, esclarecidos, precisamos pensar fora da bolha da alta classe média”. Folha de São Paulo, 21 março 2020, 1 a.m. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2020/03/nos-esclarecidos-precisamos-pensar-fora-da-bolha-da-alta-classe-media.shtml?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=compfb&fbclid=IwAR38pMgYrZbe15NCaPIjK56Zo7TjNTK5ks-d0C6X40c4tSv6uqOOws_N5XY
  11. [11]VAZQUEZ, Maegan; KLEIN, Betsy. “Trump again defends use of the term ‘China vírus’”. CNN Politics, 19 março 2020 08:05 GTM. Disponível em: https://edition.cnn.com/2020/03/17/politics/trump-china-coronavirus/index.html
  12. [12]JORNAL NACIONAL.
  13. [13]MISSE, Michel. “Violência: o que foi que aconteceu?”. Disponível em: https://www2.mppa.mp.br/sistemas/gcsubsites/upload/60/Violência%20o%20que%20foi%20que%20aconteceu.pdf
  14. [14]MISSE, Michel (1999). Malandros, marginais e vagabundos e a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em Sociologia, Iuperj, Rio de Janeiro.
  15. [15]Luiz Antonio Machado da Silva, sociólogo e professor do Iesp-Uerj, levou mais adiante a proposição de Márcia Leite. Segundo ele, teria se consolidado mesmo uma linguagem da violência urbana, que confere intelegibilidade e prospecções sobre os conflitos urbanos. O “núcleo duro” da violência urbana radicaria no uso desenfreado da força sem justificação, desenvolvido em decorrência da “ausência do Estado” e em relação ao qual se disseminaria um medo generalizado. Ver: MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. (2010), “’Violência urbana’
  16. [16]LEITE, Marcia. “Para além da metáfora da guerra. Percepções sobre cidadania, violência e paz no Grajaú, um bairro carioca”. Tese (Doutorado em Sociologia). Rio de Janeiro: PPGSA/IFCS/UFRJ, 2001.
  17. [17] Ver LEITE, Marcia. (2012), “Da ‘metáfora da guerra’ ao projeto de ‘pacificação’: favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro”. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 6, n.2, p. 374-389.
  18. [18]Ver: ARAUJO, Marcella. (2012), “Rio em forma olímpica: a construção social da pacificação no Rio de Janeiro”. In: Misse, Michel; Werneck, Alexandre. (Org). Conflitos de (grande) interesse. Rio de Janeiro: Garamond. Disponível em: https://www.academia.edu/12759030/Rio_em_forma_ol%C3%ADmpica_a_constru%C3%A7%C3%A3o_social_da_pacifica%C3%A7%C3%A3o_na_cidade_do_Rio_de_Janeiro
  19. [19]Sobre as “figurações da ‘guerra urbana’”, ver dossiê organizado por , Vera Telles,
  20. [20].FARIAS, Juliana. (2014), “Governo de Mortes: Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro”. Tese (Doutorado em Sociologia). Rio de Janeiro: UFRJ/PPGSA. Disponível em: https://www.academia.edu/12412103/Governo_de_Mortes_Uma_etnografia_da_gest%C3%A3o_de_popula%C3%A7%C3%B5es_de_favelas_no_Rio_de_Janeiro
  21. [21]ALJAZEERA. “China sends essential coronavirus supplies to Italy”. 13 março 2020. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2020/03/china-sends-essential-coronavirus-supplies-italy-200313195241031.html
  22. [22]Friso aqui que não emito qualquer juízo de valor sobre os regimes políticos chinês e cubano
  23. [23]VARGAS, Mateus. “Governo quer cubanos de volta ao Mais Médicos para enfrentar novo coronavírus”. Folha de São Paulo, 16 março 2020, 13:23 GTM. Disponível em: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,governo-quer-contratar-medicos-cubanos-para-enfrentar-novo-coronavirus,70003235029
  24. [24]CUCOLO, Eduardo. “Coronavírus reacende discussão sobre papel do Estado na economia”. Folha de São Paulo, 15 março 2020, 1:00 a.m. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/coronavirus-reacende-discussao-sobre-papel-do-estado-na-economia.shtml
  25. Roberto Kant de Lima, Pedro Heitor Barros Geraldo, Fabio Reis Mota, Frederico Policarpo, Flávia Medeiros são, respectivamente, coordenador e pesquisadores do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC – www.ineac.uff.br).
  26. Bruno França, Caroline Rodrigues, Emanuelle Anastasoupoulos, Milla Gabrieli dos Santos Faria, Monica Oliveira e Rachel Barros.
  27. Sonia Fleury é graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, mestra em Sociologia e doutora em Ciência Política pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ. Foi fundadora do Núcleo de Estudos Político-Sociais em Saúde na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz - NUPES. Foi membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social - CDES entre 2003-2006 e da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde - CNDSS. Atualmente coordena a Plataforma Digital do Dicionário de Favelas Marielle Franco Wikifavelas.