Anthony Leeds (pesquisador)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Retirado da Base Arch Fiocruz  pela equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco.
Anthony Leeds.
Anthony Leeds.

Verbete sobre a trajetória de Anthony Leeds e a construção do acervo pessoal do pesquisador, trazendo seus registros fotográficos.

Biografia [editar | editar código-fonte]

Nasceu em 26 de janeiro de 1925, em Nova York (Estados Unidos), filho de Arthur Leeds e Polly Leeds. Em 1942 formou-se no ensino médio na Waden School. No ano de 1948 casou-se com a artista e professora Jo Alice Lowrey. Sua formação acadêmica em antropologia foi realizada na Universidade de Columbia, onde se graduou (1949) e obteve o título de doutor (1957), defendendo a tese "Economic cycles in Brazil: the persistence of a total-cultural pattern: cacao and other cases". Entre 1951 e 1952 veio pela primeira vez ao Brasil para realizar o trabalho de campo sobre a zona do cacau na Bahia, destinado à elaboração de sua tese. De 1956 a 1959 lecionou na Universidade de Hofstra, em Nova York, onde ministrou a disciplina Introdução às Ciências Sociais. Em 1958 fez um estudo etnográfico sobre os índios yaruro da região de Los Llanos, Venezuela. Em 1959 ingressou no City College, em Nova Iorque, onde permaneceu até 1961. A partir desse ano até 1963 exerceu a chefia do Programa de Desenvolvimento Urbano da União Pan-Americana, atual Organização dos Estados Americanos. Durante a década de 1960 iniciou suas pesquisas sobre favelas de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde residiu nas localidades do Tuiuti e Jacarezinho. As pesquisas em favelas cariocas tornaram-se seu campo privilegiado de estudos sobre a pobreza urbana na América Latina, e foram divididas sob os seguintes aspectos: os contextos urbanos nas sociedades complexas, a ecologia cultural, que compreende estudos sobre tecnologia e agricultura, filosofia e história das ciências sociais. Nesta mesma década, organizou um seminário de pesquisa em que reuniu participantes do Peace Corps e jovens sociólogos, antropólogos e arquitetos brasileiros que começavam a se especializar nos estudos urbanos. No ano de 1967 casou-se com a cientista política Elizabeth Rachel Leeds, pesquisadora do Peace Corps. De 1963 a 1972 ministrou na Universidade do Texas a disciplina Princípios de Análise Urbana, que serviu de base para que coordenasse, em 1969, no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o mestrado em antropologia, a convite do antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira. Entre 1966 e 1967 estudou as relações entre brancos, méxico-americanos e afro-americanos em Austin, Texas. De 1969 a 1970 pesquisou as barriadas em Lima, Peru. Antes de vincular-se à Universidade de Boston, onde lecionou de 1973 até o final de sua vida, foi professor visitante nas universidades de Oxford e Londres. Neste período, filiou-se à UFRJ, ao Centro de Pesquisas Habitacionais do Rio de Janeiro e a outros institutos brasileiros. Também fundou a Sociedade de Antropologia Urbana, que presidiu de 1982 a 1983. Dedicou-se aos mais variados objetos de estudo, como habitação, história e economia política, movimentos populares e comunitários. Em parceria com Elizabeth Leeds publicou o livro "A sociologia do Brasil urbano". Entre 1987 e 1988 retornou ao Rio de Janeiro para completar seus estudos sobre profissões brasileiras e políticas nas favelas. Morreu em 20 de fevereiro de 1989, em Tunbridge, Vermont.  

Acervo pessoal[editar | editar código-fonte]

O acervo de Leeds reúne cartas, telegramas, memorandos, convites, artigos científicos, discursos, apontamentos, teses, dissertações, projetos, fotografias, mapas, plantas, relatórios de atividades, informativos, entrevistas, programas de eventos, atas de reunião, recortes de jornais e revistas, entre outros documentos referentes à trajetória das pesquisas desenvolvidas pelo titular e sua mulher, no Brasil e na América Latina, cujas temáticas abrangeram as ocupações urbanas desordenadas e marginalizadas – favelas, vilas, tugúrios e barriadas –, as políticas habitacionais da região nas décadas de 1960 a 1980, e a atuação dos movimentos sociais e dos órgãos governamentais e não governamentais em favelas e outras formas de habitação popular no Brasil.

Elizabeth Rachel Leeds doou ao Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz documentos do marido e dela própria sobre a trajetória das pesquisas antropológicas empreendidas por ambos no Brasil e na América Latina, que foram denominados inicialmente como fundo Anthony Leeds, em virtude dos registros que interligavam suas práticas científicas. Após a realização do processo de identificação preliminar do fundo, foi possível detectar que suas datas-limite se estendiam ao período posterior à morte do antropólogo, fato que indicou a inserção, ao conjunto inicial, de documentos produzidos e acumulados por parte da doadora a partir do desenvolvimento de suas pesquisas. Diante disso, optou-se pela separação desses documentos, visto que integravam conjuntos distintos, que necessitavam de organização própria, não mais como um único fundo pessoal, mais sim como fundos Anthony Leeds e Elizabeth Leeds.

Acervo Anthony Leeds[editar | editar código-fonte]

Autoras: Licia do Prado Valladares; Aline Lopes de Lacerda; Ana Luce Girão.

Retirado de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2238-38752018000301027 

A trajetória do arquivo[editar | editar código-fonte]

Os documentos que compõem o Arquivo Pessoal do antropólogo norte-americano Anthony Leeds (1925-1989) foram doados à Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz em 2007 por sua viúva, a cientista política Elizabeth Leeds. Até chegarem ao Rio de Janeiro, no mesmo ano, eles venceram um longo percurso, desde a farmhouse do casal na localidade de Randolph, no estado de Vermont, onde ficaram guardados após o falecimento de Anthony Leeds, em 1989. Um dos primeiros contatos de Elizabeth Leeds para efetivar a doação do acervo foi por um e-mail que trazia anexado o inventário provisório das 12 caixas. Segundo a doadora, as caixas continham registros de algumas das pesquisas empreendidas pelo casal no Brasil e na América Latina, relativas ao fenômeno das favelas, vilas, tugúrios e barriadas, às políticas habitacionais da região nas décadas de 1960 a 1980; e à atuação dos movimentos sociais e dos órgãos governamentais e não governamentais nas favelas e em outras localidades carentes do Brasil. Naquela mensagem, Elizabeth Leeds avisava que era necessário aguardar o verão para que a documentação, até então submetida a temperaturas que ao longo do ano variavam entre 20º e 80º Fahrenheit (ou 26º e -6º Celsius), pudesse ser enviada para o Brasil.

Outra parcela de documentos do arquivo Leeds já havia sido doada por Elizabeth Leeds para o National Anthropological Archives do Smithsonian Institute. Conforme a página eletrônica dessa instituição, lá se encontram materiais biográficos; cartas enviadas e recebidas; calendários; materiais relacionados a suas pesquisas sobre a zona do cacau no estado da Bahia, os índios Yaruro da Venezuela, antropologia urbana e escravidão brasileira; documentos do período de formação acadêmica do titular; críticas; poemas; notas diversas; e documentos sobre sua atividade docente em universidades norte-americanas, além de materiais referentes a pesquisas realizadas na Europa.

A primeira remessa do arquivo doado à Casa de Oswaldo Cruz foi organizada no âmbito da pesquisa “História das favelas e da sociologia do Brasil urbano: contribuições ao seu estudo a partir da trajetória de Anthony Leeds”. Coordenada por Nísia Trindade Lima, e com financiamento da Faperj, essa pesquisa contou ainda com a participação de Licia Valladares (Universidade de Lille/Urbandata/Iuperj), Luiz Antonio Machado (Urbandata/Iuperj), Tania Fernandes (Casa de Oswaldo Cruz) e Claudia Trindade (Casa de Oswaldo Cruz). Coube a nós, do Departamento de Arquivo da Casa de Oswaldo Cruz, coordenar a organização do acervo documental.

Em 2009 iniciamos o tratamento técnico com um diagnóstico sobre as condições de conservação dos papéis e em seguida com a identificação dos documentos. Nessa fase pudemos observar que parte considerável da documentação já havia recebido algum tipo de organização pois se encontrava agrupada em pequenos maços de documentos dentro de pastas contendo numeração e notas manuscritas. Durante toda a fase de identificação foi mantida a organização e a ordenação original visando preservar a lógica de acumulação dada pelo titular e pela doadora. Essa marca foi, na medida do possível, conservada na organização final que o arquivo recebeu. Em meio à documentação sobre favelas, por exemplo, havia várias pastas com nomes de favelas ou de localidades nas quais se encontravam anotações manuscritas, relatórios de campo e entrevistas feitas pelo próprio Leeds, bem como por integrantes de sua equipe de pesquisa e do Peace Corps Volunteers, além de correspondência com alguns moradores de favelas. Foram encontradas algumas pastas com o nome da favela assinalado, mas sem documentos. No entanto, são registros de um método de trabalho, de interesses projetados para o futuro, e são também lacunas que podem ser preenchidas com outras fontes de informação. E, ainda, são marcas que sinalizam a quem lida com a tarefa de organizar o arquivo, os processos intencionais de escolha e seleção do produtor. Como nos ensina Heymann (2012: 179), diferentemente do processo de acumulação dos arquivos institucionais, os arquivos pessoais “trazem a marca de um processo de acumulação pautado por subjetividades individuais, expressas na seleção dos documentos a ser preservados, bem como em sucessivas avaliações, descartes e ordenamentos a que os conjuntos podem ser submetidos”.

Entre as principais tipologias encontradas há um volume considerável de recortes de jornal e de outros materiais impressos de divulgação, relatórios, anotações manuscritas, entrevistas, mapas, plantas topográficas, correspondência e atas de reunião, além de pôsteres, cartas e plataformas políticas apresentadas em campanhas para eleições em diversas associações de moradores, entre outros documentos. O conjunto que se encontrava aparentemente sem organização, “solto” nas caixas, continha livros, artigos, separatas, dissertações e teses relativos ao período de docência no Museu Nacional, além de um número considerável de trabalhos apresentados nas reuniões anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs). No âmbito desse evento, boa parte dos textos foi apresentada nos grupos de trabalho sobre movimentos sociais urbanos, políticas de habitação e outros temas relacionados à antropologia urbana e às favelas. Entre os trabalhos acadêmicos encontram-se alguns orientados por Leeds e outros nos quais sua obra aparece como referência bibliográfica.

Em 2011 houve uma segunda remessa de 12 documentos manuscritos e datilografados, novamente organizados por Elizabeth Leeds, contendo glossários de termos ligados às favelas e à urbanização, correspondências e estudos não publicados. Esses documentos foram incorporados ao arquivo, no grupo Docência e Pesquisa (ver quadro de arranjo abaixo).

Em 2014 uma terceira remessa de documentos foi encaminhada e doada pela cientista política à Casa de Oswaldo Cruz. Trata-se de um conjunto de fotografias, negativos e slides, em sua maioria de autoria do titular, objeto de análise em seção específica deste artigo.

A organização do arquivo[editar | editar código-fonte]

A construção do modelo de arranjo para o arquivo Anthony Leeds teve como referência sua atuação nos períodos em que esteve no Brasil, uma vez que esse foi o contexto de produção dos documentos. Em que pese o grau de subjetividade inerente à constituição de arquivos pessoais, ao analisar os arquivos de cientistas, Santos (2012: 40) afirma que a trajetória profissional e pessoal de um indivíduo encontra-se muitas vezes refletida nos documentos que produz e acumula. A observação desse fato tem justificado a opção pelo método funcional para a construção do quadro de arranjo dos arquivos pessoais pertencentes ao acervo da Casa de Oswaldo Cruz, a partir do qual foi elaborado o quadro de funções e que, por sua vez, representam o primeiro nível de classificação dos documentos. Esses elementos, bem como suas subdivisões, estão discriminados na tabela da página seguinte.

Arquivo Leeds.png

As datas-limite dos documentos indicam larga abrangência, situando-se entre 1886 e 1989. No entanto a maioria dos documentos se concentra no final da década de 1940 a 1960 e de 1980, que correspondem aos períodos em que o antropólogo esteve no Brasil e em outros países da América Latina.

O arquivo fotográfico: registro de trabalho de campo nas favelas do Brasil[editar | editar código-fonte]

A história da chegada das fotografias de Leeds à Casa de Oswaldo Cruz tem início anos após o recebimento de seu papelório, em 2007. Em 2014 parte de seu arquivo fotográfico é doado à Casa de Oswaldo Cruz por Elizabeth Leeds. O material fotográfico que chega ao Brasil é um conjunto de 792 ampliações fotográficas em papel (em preto e branco), com negativos correspondentes, e 931 slides coloridos reunidos por Elizabeth Leeds após uma seleção. Com sua doação as imagens fotográficas vieram agregar ao conjunto inicial informações sobre os aspectos visualmente recortados pela lente de Leeds e de outras pessoas que com ele trabalharam na prática de registro das observações do trabalho de campo realizado sobretudo em favelas cariocas e em outros estados brasileiros nos anos 1960. Esse conjunto foi incorporado ao arquivo no grupo Docência e Pesquisa, dividido em dois subgrupos, intitulados Registros visuais de trabalho de campo (196-) e (198-) e reunido em dossiês com nomes de favelas e localidades, quando se trata de favelas cariocas, e por países como Colômbia, Peru, Venezuela e Porto Rico.

Do ponto de vista de seu conteúdo, as fotografias em papel se relacionam às pesquisas realizadas por Leeds em favelas, com incidência maior nas que morou (Tuiuti e Jacarezinho). Em menor concentração estão presentes imagens de algumas cidades brasileiras, além de um conjunto de fotos sobre seus estudos em países da América Latina. Os negativos acompanham esse conjunto, todo ele produzido na década de 1960. Os slides, por sua vez, se relacionam, em pequena parte, também aos estudos dos anos 1960, mas a maior parte registra aspectos de favelas no Rio de Janeiro já na década de 1980, quando esteve mais uma vez no país.

Os documentos fotográficos, em sua conexão com o restante do arquivo, mostram a persistente e sistemática produção de registros visuais como um dos recursos utilizados pelo antropólogo na realização de seus estudos e podem ser vistos como partes de um sistema de descrição, inscrição e registro, figurando ao lado de notas, cartas, relatórios de atividades, apontamentos de todo tipo. Uma primeira apreciação das imagens, portanto, deve levar em conta o centro lógico - o produtor do arquivo - como instância significativa para o entendimento da razão de ser dos registros visuais nesse contexto fundador.

Nem todas as imagens foram produzidas por Leeds; ele contou com amigos e assistentes na produção de registros visuais; algumas foram a ele doadas (essas em menor quantidade). Embora saibamos dessa rede de agentes próximos a ele nos trabalhos e na captação de imagens, são Leeds e os objetivos de seu trabalho que informam a necessidade e oportunidade da captação dessas cenas.

Ao trabalhar na organização de um arquivo de imagens é importante observar e identificar possíveis padrões na materialidade das fotografias. Esses padrões, ou sua ausência, são aspectos importantes para a compreensão dos sentidos da coleção ou arquivo e do que podem trazer de indícios sobre as pessoas envolvidas em sua produção, bem como sobre os usos pretéritos da documentação. No que diz respeito à documentação fotográfica do arquivo de Leeds notamos que há um padrão profissional na produção das ampliações em papel, todas na dimensão 18 x 24cm e monocromáticas. Outro padrão está presente no extenso conjunto de slides, em sua maioria coloridos, montados em molduras plásticas - o que indica seu uso em projetores. Em relação ao primeiro padrão nos indagamos se o fato de ser ele próprio fotógrafo contribuiu para o melhor acabamento e a maior ampliação visando obter condições de observação de detalhes no registro. Já o segundo padrão está associado à projeção e ao compartilhamento das imagens para análise e debate em grupo, o que se coaduna com as informações que temos sobre os usos didáticos que fazia das fotos em seus cursos. Portanto é razoável supor que o antropólogo tenha se dedicado a gerir os formatos desses registros, produzindo seus contornos materiais.

Outra característica que fortalece a hipótese dessa centralização de usos e gerenciamento das fotografias diz respeito às inscrições registradas nos versos de praticamente todas as ampliações em papel. Leeds inscrevia observações que sugerem iniciativas de identificação das imagens, mas também de usos - muitos futuros, como a sua reprodução em slides para aulas. Esses usos posteriores podem fazer supor uma reciclagem das imagens para novos contextos, como o didático. Um exemplo interessante é a inscrição NB em muitos versos. Elisabeth Leeds esclarece que essas iniciais significam a expressão “Note Bem”, reforçando o papel reservado ao registro visual - o de captar elementos dignos de nota e de os “arquivar” para miradas futuras com forte sugestão para o que se deve de fato apreciar.

Tanto a dimensão de conteúdo das imagens quanto o aspecto dos padrões que se evidenciam no trato da fotografia como objeto físico poderiam ser submetidos a um exercício de “tipologia” visando dar contornos, ainda que preliminares, aos elementos significativos mais marcadamente presentes nos registros. Esse exercício torna-se possível porque, por meio do arquivo, temos a oportunidade de observar esses documentos em sua dimensão serial. Aspecto típico dos arquivos fotográficos, as fotografias produzidas e acumuladas em série nos permitem acionar formas de leitura em sequência ou por comparação, operações de produção de sentido que podem contribuir para uma abordagem mais crítica em relação à imagem fotográfica como portadora de uma “verdade”.

A relação de limites entre as favelas e a cidade parece ser um aspecto visualmente digno de nota, pois é recurso discursivo frequente no conjunto. As várias maneiras de viver nas favelas e as relações de sociabilidade entre seus habitantes parecem também ter sido um ponto explorado visualmente. Os esforços conjuntos para melhorias na comunidade gerando os “mutirões” também foram registrados por Leeds de forma generosa, assim como aspectos de soluções que exemplificam a “economia” própria desenvolvida nesses espaços, responsáveis pela sustentação das formas de ali se viver.

E quais os padrões mais usados por Leeds para abordar fotograficamente esses conteúdos? Também nesse aspecto do que podemos chamar de discurso fotográfico, a análise serial nos sugere interessantes recursos. O conjunto está repleto de tomadas de cena gerais nas quais o que se pretende é menos mostrar um aspecto preciso da realidade retratada do que fornecer informações que se conjugam na cena. Assim, a relação das favelas com a cidade pode ser captada nessas tomadas mais gerais, observando-se, aliás, tentativas de produzir fotos panorâmicas. Um exemplo é a tomada da favela em relação a um cenário urbano de pano de fundo. Segundo Elizabeth Leeds, a intenção era mostrar que as construções seguiam o movimento da passagem do trem.

As tomadas médias, embora ainda mantenham uma abordagem mais amplificada, enfocam, no entanto, um aspecto específico. Esse é o caso de fotografias que mostram conjunto de casas numa rua, a relação de construção das casas numa situação de terreno inclinado, como é o padrão da maioria dos morros cariocas (as construções constituíam atividade econômica importante nas favelas), as soluções usadas pelos moradores na “urbanização” de sua região de morada e os esforços na construção de casas. Ao lado desse tipo de registro, encontramos também muitos retratos, de moradores sobretudo. Há também cenas de conjuntos de pessoas com tomada bem próxima, meio corpo ou corpo inteiro. São grupos que se encontram num bar (ou “birosca”, como se lê no verso de algumas fotos), crianças brincando, mulheres carregando baldes de água na cabeça, momentos de eleição de associação de moradores. Nesses casos, a ampliação também se dá fotograficamente, com a cena sendo captada em corpo inteiro, envolvendo o evento e seus agentes na ação que se passa na cena fotografada. Fora do elemento humano, as cenas que apontam aspectos de vida em comunidade próprios da favela são captadas também, quase como “retratos”: cartazes de propaganda de serviços, cartazes de propaganda eleitoral, soluções de arquitetura etc. É com essa gama de aspectos que Leeds constrói seu discurso documental.

A relação de Leeds com a fotografia e o audiovisual, assim como com a poesia, foi analisada por Sieber (1994) como um movimento de conjugação de “múltiplas epistemologias” visando coletar informações e ampliar conhecimento no seu ofício de antropólogo. Com relação ao seu envolvimento com a documentação audiovisual - na forma de produção e exibição de fotos e slides show - Leeds concebia a fotografia como “both documentary and expressive” (Sieber, 1994: 23), registro com sentidos nascidos da interpenetração das formas estética e documental. Sieber (1994: 23) destaca:

 Art, he believed, helps to reveal culture more fully, rather than to obfuscate documentation of culture. He argues against understanding vision - as well as photography - “as objective, somehow ‘external’ to our feeling, thinking, knowing selves. It is itself immediately immersed in meanings - meanings rooted in our feeling-thought-knowledge”.

A riqueza de detalhes, de caminhos possíveis de inteligibilidade dessas imagens nos sugere que elas hoje expressam, sem muito nos explicar, a visão de Leeds sobre o fenômeno social que analisava, as escolhas feitas pelo antropólogo diante de tantos aspectos visualmente importantes, tornando alguns dignos de nota e de certa forma cristalizados na materialidade fotográfica, que aglutina tempo e espaço no congelamento do instante. No arquivo Leeds, e segundo sua experiência singular, temos um modo de ver as favelas. As visões sobre as favelas nunca foram monolíticas; ao contrário, possuem sua própria historicidade e dinâmica. Assim, o arquivo Leeds em geral e suas imagens em particular nos inspiram, hoje, como fontes para estudos sobre modos de ver as favelas na interseção das “múltiplas epistemologias” acionadas pelo antropólogo no seu trabalho de campo.

Em seus estudos urbanos Leeds construiu uma coleção fotográfica densa e coesa. Tanto a produção quanto a guarda e utilizações das fotografias pelo antropólogo sugerem a relevância da imagem como instrumento de coleta de dados, notadamente visuais, nos trabalhos de campo. Poderíamos supor que elas tiveram lugar na orquestração metodológica que deu origem ao livro A sociologia do Brasil urbano, embora não tenham sido empregadas na sua primeira edição.Sua ausência, no entanto, não impede que nos indaguemos sobre o papel que tiveram na análise empreendida por Leeds, uma vez que foram instrumentos de registo da realidade por ele analisada. Enfatizamos então o fato de que o conjunto de fotografias proveniente do período de pesquisas empreendidas por Leeds nas favelas cariocas ajuda a refletir sobre a própria natureza do exercício antropológico.

Fotos do Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz Fundo Anthony Leeds[editar | editar código-fonte]

Favela Macedo Sobrinho, 1964, Mulheres carregando água. Foto de Cristina Schroeder.jpg
Favela Macedo Sobrinho, 1966. Eleições Fafeg, Presidente Marco Torres e o candidato a vice Aloísio..jpg
Favela Macedo Sobrinho, 1964. Paisagem do Rio de Janeiro com o Pão de Açúcar ao fundo..jpg
Rocinha 1966, Feira livre..jpg
Vila Aliança, Assentamento de moradores removidos de outras favelas..jpg
Favela do Tuiuti, 1965 Igreja de madeira.jpg
Favela do Tuiuti, 1966 Homens na birosca de D. Horminda.jpg
Morro União, 1969. Ao fundo, paisagem urbana no bairro de Madureira.jpg
Favela do Jacarezinho, 1965, Rio Jacaré e casas.jpg
Favela do Esqueleto, 1966, Ao fundo o Estádio do Maracanã.jpg

 

Referências bibliográficas[editar | editar código-fonte]

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Ver também[editar | editar código-fonte]