As favelas que a pandemia criou (artigo)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Autoria: Leandro Barbosa, do Projeto Solos

Publicado originalmente em: Outras Mídias . Reproduzido pela Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco.

O artigo[editar | editar código-fonte]

Michele Rodrigues da Silva cruza a comunidade Viva a Vida, no Jardim Julieta, Zona Norte de São Paulo, com uma carcaça de fogão nos ombros. Sua intenção é conseguir vendê-lo para um ferro velho próximo à ocupação, onde ela e outras 650 famílias ergueram suas casas de madeira em meio à pandemia do novo coronavírus.

“Vou ver se consigo um dinheiro extra para fortalecer o barraco”, grita Michele. Antes, ela morava em Guarulhos, com seus três filhos, em uma casa alugada. Trabalhava como costureira, mas perdeu o emprego. Chegou a vender todo o seu material de trabalho — cinco máquinas de costura —, mas o dinheiro acabou e teve que sair da casa.

Assim como ela, inúmeros moradores da comunidade relatam o mesmo drama, em uma frase corriqueira nas vielas do lugar: “sem trabalho, como é que paga aluguel?”.

De acordo com o Fiquem Sabendo, uma agência de dados independente e especializada em Lei de Acesso à Informação (LAI), entre março e maio deste ano, foram protocoladas no Tribunal de justiça de SP 4.018 ações de despejo por falta de pagamento de aluguel, situação que Antônia de Souza sentiu na pele. “Fiquei desempregada, com dois filhos, e tive que entregar a casa. Eu vivia com o pai do meu filho pequeno, de dois anos. A gente acabou separando e eu vim embora pra cá. A crise fez a gente vir embora pra cá”, contou Antonia, que também passou a morar na Viva a Vida.

Cerca de 20 km do Jardim Julieta, na Rua Miguel Casagrande com a Avenida Otaviano Alves de Lima, próximo à ponte da Freguesia do Ó, outra ocupação também se levantou em meio à pandemia: a Favela da Fé, onde vivem 14 famílias. Embora seja muito menor em relação a Viva Vida, os dramas do desemprego e da impossibilidade de pagar o aluguel também permeiam a rotina das pessoas que vivem lá.

Beatriz Quintino é uma das moradoras que tentam construir o sonho da casa própria, ao lado do marido e dos filhos. “Tudo o que a gente quer é uma moradia. Eu trabalho como vendedora no sinal. Sofri um acidente e quando tive alta, não deu pra voltar a trabalhar, por causa da pandemia. E eu não tive como pagar o aluguel. E a gente tá aqui vivendo do jeito que dá, com doações e com o auxílio [emergencial]”, contou.

De acordo com o Observatório de Remoções, O Brasil não aprovou nenhuma legislação suspendendo os despejos e as remoções. “O projeto de lei nº 1179/2020, relativo ao regime jurídico emergencial durante a pandemia, previa a suspensão de despejos por não pagamento de aluguel de imóvel urbano concedidos em caráter liminar, ou seja, decisões em menos de 15 dias sem ouvir o locatário. Mesmo tratando-se de uma medida bastante limitada, não foi mantida. Ao sancionar o texto que veio a ser a Lei nº 14.010/2020, o presidente Jair Bolsonaro vetou a medida”.

As múltiplas violências do despejo[editar | editar código-fonte]

Um levantamento feito pelo Observatório de Remoções indica que ao menos 2 mil famílias foram atingidas por despejos e incêndios,  situação corriqueira em ocupações e favelas em SP, durante a pandemia. “Diante da gravidade destas remoções e das repercussões irreversíveis que provocam na vida dos atingidos, é urgente a sensibilização do Poder Judiciário, bem como dos demais órgãos do sistema de Justiça, pela suspensão de todas as remoções. Movimentos de moradia e entidades de defesa seguem reivindicando ao Tribunal de Justiça do Estado ações efetivas para a suspensão de despejos e remoções coletivas”, afirma a organização.

A  arquiteta urbanista Larissa Viana, mestre e doutora em Habitação pela USP, explica que a política habitacional de todo país não é produzida de modo a sanar, ou mesmo mitigar, o problema habitacional existente, uma vez que as soluções apresentadas se baseiam na produção de unidades habitacionais em lugares distantes e alheios da realidade de vida das pessoas. “Temos um número enorme de edifícios ociosos, sem cumprir função social da propriedade, prevista na Constituição Federal de 1988, enquanto pessoas não têm onde morar. Não há mais necessidade de construir nada se esses edifícios abandonados cumprissem sua função social. A política pública de habitação precisa contemplar a realidade que está muito além da produção de novas unidades habitacionais, e investir, também, nas ocupações como forma assegurada e digna de se viver”, pontua.

 Larissa explica que o despejo por si só é um ato violento, por vezes marcado pelo uso da força policial, onde o poder público encontra local para os objetos dentro das casas derrubadas, mas não para as pessoas. “Algumas notícias, em dias de reintegração de posse, anunciam que caminhão e depósito foram disponibilizados pelo poder público para levar os pertences das pessoas. E as pessoas para onde vão? Isso já é um absurdo e uma infração à Constituição Federal em épocas de não pandemia, em um momento de pandemia como o que estamos vivendo, de extrema insegurança e vulnerabilidade coletiva de saúde pública, social, econômica e política, a luta, mais do que nunca, é por despejo zero”.  

A vice-presidente da associação de moradores da comunidade Viva a Vida, Bianca Fernanda Ayres Rosa, conta que a luta para organizar e garantir a dignidade das pessoas é diária. “Viver na iminência de um despejo é angustiante. A gente não tá aqui mexendo só com estacas. A gente tá lidando com pessoas, com sonhos. E o sonho de todo mundo é sair do aluguel. Nós não temos condições físicas, financeiras e muito menos psicológica para sair daqui [da ocupação]”, afirmou. “Às vezes, é tudo bem difícil. A gente precisa contar com a boa vontade do poder público. Olha a quantidade de lixo espalhada na comunidade. Já pedimos para a prefeitura retirar, são meses de lixo acumulado. Sabe o que eu ouvi? ‘Não se preocupe com o lixo. No dia que a gente for derrubar os barracos, a gente aproveita e tira o lixo também”, afirmou.

Outro lado[editar | editar código-fonte]

A Secretaria Municipal de Habitação (SMADS) informou que a maioria dos pedidos de reintegração de posse é para áreas particulares. O órgão ainda disse que não atua em remoções em SP e que só participa de reintegrações quando há mandado judicial, com exceção das áreas de risco. “O grupo de mediação de conflitos atua na promoção e facilitação do diálogo entre as partes envolvidas em conflitos relacionados a imóveis ocupados por população de baixa renda com possibilidade de reintegração de posse, priorizando a construção de solução consensual que permita às famílias envolvidas permanecer na área, de maneira segura e com respeito aos direitos do proprietário, ou a saída voluntária dos ocupantes”, disse em nota. 

A pasta informou que esteve na Favela da Fé e que “foram agendadas a inserção e atualização das famílias no Cadastro Único, que dá acesso a benefícios de transferência de renda”.

Quanto à comunidade Viva a Vida, o órgão disse que “considerando a situação das famílias da ocupação do Jardim Julieta, ocorrida durante o  período de pandemia que a cidade atravessa, com aumento do desemprego e vulnerabilidade das famílias, a Prefeitura de São Paulo, por meio de uma comissão de secretários, atendeu os representantes da ocupação. Foram realizadas duas reuniões onde foi negociada prorrogação do prazo por 6 meses, condicionada à desocupação pacífica da área neste período”. 

A SMADS explicou que a área ocupada no Jardim Julieta faz parte de um projeto habitacional da Prefeitura de São Paulo, onde pretende-se construir “1.580 unidades habitacionais para atendimento de algumas comunidades do entorno e famílias removidas de áreas de risco, todas cadastradas, que aguardam por suas moradias”. 

A Prefeitura de São Paulo, por meio da Autoridade Municipal de Limpeza Urbana, informou que já foram iniciadas as ações de limpeza no Jardim Julieta. “Até o momento, foram retiradas cerca de 15,2 mil toneladas de resíduos domiciliares, poda de árvore, terra e entulho”.

Ver também[editar | editar código-fonte]