Bailes Funk no Complexo do Alemão

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 10h35min de 7 de março de 2021 por Gabriel (discussão | contribs)

ITCHO TCHO MERY É AUTOMÁTICO

Por Ricardo De Moura

“[...] ("o povo é inventa-línguas", Maiakóvski) contra os burocratas da sensibilidade, que querem impingir ao povo, caritativamente, uma arte oficial, de "boa consciência", ideologicamente retificada, dirigida. Mas o povo cria, o povo engenha, o povo cavila. O povo é o inventa-línguas, na malícia da mestria, no matreiro da maravilha. O visgo do improviso, tateando a travessia, azeitava o eixo do sol... O povo é o melhor artífice. [...]” (Haroldo de Campos, circulado de fulô).

 

Porque começamos essa conversa com a citação acima? “O povo é inventa-línguas contra os burocratas da sensibilidade...”. Para mim não há dúvida que a língua é viva. Os falantes, no nosso caso o português do Brasil, são os responsáveis por tamanha variação linguística, embora todos falem o mesmo idioma. Não há, que fique claro, certo ou errado na linguagem. O que há são variações e fenômenos linguísticos, dialetos sociais e níveis de fala, dialetos e falares regionais; gíria, jargão e linguagem popular. Mas também há preconceito linguístico que no fundo se traduz como preconceito social, já que a linguagem é também poder e ideologia, daí a tal de norma culta ao invés de norma padrão. A gramática normativa como ideologia.    

Feito essa pequena, mas valiosa observação vamos, a título de esboço, falar do funk, especialmente de uma música que deu e dá o que falar quando o assunto é linguagem. Mas, também quando o assunto é corpo, dança, alegria, diversão. E mais adiante, em linhas gerais, uma pitada da história do funk e a seguir baile das antigas, apenas com o propósito de situar a conversa.

O título desse texto é proposital e provocativo ao mesmo tempo, um modo de operar na e com a linguagem inventiva – aquela já dita por Heraldo de Campos na citação que abre essa conversa. It's Automatic popularmente conhecida ITCHO TCHO MERY ou algo do gênero era um som que explodia nos trenzinhos ou nos bailes de corredores na década de 1980 e hoje é relembrado nos “bailes das antigas” espalhados por algumas favelas do Rio de Janeiro. Não se trata de saudosismo nessa retomada, mesmo porque, os bailes das antigas acontecem hoje. Há algo mais por aí.   

É inevitável não rir quando se descobre o nome da música, já que para os que curtiam e curtem ainda esse som, na maioria das vezes, não sabem que Itcho Tcho Mery é “automático”. Isto é, It’s automatic que quer dizer é “automático”. Uma tremenda invenção da linguagem que se modifica com o falante da língua. Mesmo sabendo que a expressão Itcho Tcho Mery, a rigor, não tem semelhança com o significante que dá o nome da música It’s automatic, ela tem um sentido por ser a expressão do entendimento sonoro produzido. Para os vovós e vovôs do funk, Itcho tcho mery era e continua sendo um pancadão boladão, eu diria, pega a visão que “noix” vai brotar lá no baile das antigas no CPX porque é automático. 

It’s Automatic foi tão popularizada, que os múltiplos significantes oriundos da escuta dessa música e, consequentemente, do ato de cantá-la, tornaram-na ainda mais popular. Mas com um detalhe: na maioria dos casos pouquíssimas pessoas conhecem o título da música, ou seja, It’s Automatic é desconhecida.

Vejamos alguns comentários nos posts no Youtube com o título freestiyle – It’s Automatic:

Couldn't parse video from www.youtube.com/watch?v=TfdWQcfs4yo

• Insotomeri, inchorchomeri, não sei o que meri. Esses são os nomes que os caras diziam. Tudo menos it's automatic. 

• É tcho tcho meri.... É tcho tcho meri .... Kkkkkkkkkk.

• Eu fico emocionado quando eu escuto essa música. Pois meu apelido é Tchotchomary, por causa dessa música. A merda que é It's automatic.

• Grande década de 80, esse é o famoso "tchontchonmery" na época dos bailes todo mundo cantava, bons tempos.

• It's automatic?? Prefiro: Ih cho cho Mary...

Embora os comentários sejam apenas exemplos, tais formulações nos permitem olhar para além da compreensão de um idioma, na verdade nos coloca frente à inventividade da língua, que nesse caso abarca o cômico, sobretudo, quando descobre o nome “original”. Talvez, essa questão possa ser interessante para antropologia, sociologia ou linguagem, mesmo porque tal deslocamento linguístico forja outras maneiras de sensibilidade para além do uso “correto” da linguagem e, neste caso, ganha enorme dimensão nas classes populares, forja também sociabilidades, identidades, maneiras de ver o mundo. 

É muito comum alguns usuários da língua, especialmente os mais jovens, em determinadas regiões, usarem formas de comunicação fora dos ditames da gramática normativa, por exemplo: “nóix vai no baile de bonde, tá ligado?”. Imagine se um estudante resolve escrever desse modo numa prova de vestibular. Embora a sentença possa estar clara, ele/ela, o (a) candidato(a) seria “exterminado(a)” de imediato. Isso é uma heresia gramatical, diriam os defensores da gramática. Para a dona norma vários “erros”. Sublinharemos o que ela, dona norma, consideraria fatal: o sujeito “NOIX” está no plural e o verbo VAI no singular. Imagine NOIX VAI NO BAILE... quantos “erros” numa mesma frase. A experiência com a linguagem fica submetida a forma de certo ou errado numa tentativa de aprisionar os falantes da língua. Doce ilusão, pois NÒIX VAI NO BAILE e ITCHO TCHO MERY É AUTOMÁTICO.

    

Uma pitada da história do Funk  

O funk é um estilo musical que, provavelmente, surgiu através da música negra norte-americana no final da década de 1960 – o funk se originou da Soul Music. Algumas características desse estilo musical são: ritmo sincopado, a densa linha de baixo, uma seção de metais fortes e rítmica, além de uma percussão marcante e dançante. E é nessa esteira que viria nascer o funk.

O funk da década de 60 surgiu com uma mistura entre os estilos R&B, jazz e soul. Nessa época, o estilo musical era considerado indecente porque a palavra “funk” tinha conotações sexuais na língua inglesa. O funk acabou aderindo essa característica tendo uma música com um ritmo lento, dançante, sexy. Na década seguinte o P-Funk – Parlaiment Funkdelic – um coletivo de funk, rock e soul era um funk mais pesado, com influência psicodélica e com a alteração mais característica do funk, foi feita por George Clinton. A década de 1980 serviu para “quebrar” o funk tradicional e transformar em vários subgêneros. Seus derivados como o rap, hip-hop e break ganhavam muita força nos Estados Unidos. No final dos anos 1980 surgiu a casa do funk que foi um fenômeno nas pistas de dança do mundo inteiro. No Brasil, em especial no Rio de Janeiro, muitos grupos se formaram e o break se tornou um fenômeno de dança, coreografia, teatro de vivências cênicas em vários lugares públicos, inclusive dentro de escolas.  

A derivação mais presente no Brasil é o funk carioca. O ritmo, tal como se desenvolveu no Rio de Janeiro, foi influenciado por um novo ritmo da Flórida, o Miami Bass, que trazia músicas mais erotizadas e batidas mais rápidas. Depois de 1989, os bailes funk começaram a “bombar” atraindo cada vez mais pessoas e daí foram lançadas músicas em português. Inicialmente as letras falavam sobre a realidade da vida nas favelas, como por exemplo o refrão do Rap do Silva do MC Bob Rum “era só mais um Silva que a estrela na brilha ele era funkeiro mais era pai de família”, mas também a implementação de recursos melódicos nas músicas, um funk mais romântico como o Rap do solitário e princesa de MC Marcinho, mais tarde o tema principal passou a ser o sexo. O funk carioca se tornou e continua sendo bastante popular em várias partes do Brasil e no exterior. Tudo isso nos anos 1990.

O funk da metade dos anos 1990 era utilizado como forma de protesto contra as autoridades e também servia como maneira de levar para o mundo o que realmente acontecia nas favelas. Muitas músicas falavam até mesmo de abuso das forças policiais. Essa modalidade ficou conhecida como o FUNK PROIBIDÃO. Em 2000 a ênfase no funk com conotação sexual voltou com força total e estão presentes até hoje nos ritmos 150 e 170 bpm fazendo o maior sucesso nos bailes de favela.

 

Baile das Antigas[1]

Os já conhecidos e tão aguardados, “Bailes das Antigas”, têm sido uma verdadeira atração nas favelas do Rio de Janeiro desde que começaram, entre 2013 e 2014. Aquela rivalidade que havia nos “bailes de corredor” ficou para trás, deu lugar ao reencontro com a cultura do Funk de maneira social, onde a união e a amizade prevalecem transformando aquele passado em memórias afetivas, motivos para se reunir, brincar e sorrir. E como não poderia ser diferente, o Complexo do Alemão já foi palco privilegiado de alguns desses encontros. 

Para quem não sabe, nos “bailes de corredor” os grupos se dividiam entre “Lado A e Lado B” e se viam como rivais, brigavam muito, trocando socos e pernadas. Para fortalecer a agenda de bailes, os representantes das áreas decidiram se unir a bairros vizinhos para que o baile ficasse mais cheio e não houvesse disputa entre eles mesmos. Então, a galera que fechava do outro lado não podia frequentar o oposto ao seu. Pessoas que ‘fechavam’ com o Lado contrário sequer podiam passar e/ou frequentar aquela localidade (por exemplo: participantes do Fazenda de Inhaúma - Lado B -, não podiam frequentar algumas localidades da baixada por ser Lado A por que eram vistos como inimigo). Apesar disso, todo mundo frequentava os mesmos bailes. Daí a divisão entre “A e B”. Nessa, o corredor ficava livre. Dessa época lembra-se de muitas situações, músicas que animavam os “bondes”, agitando “o corredor”, as grandes equipes de som, os DJ’s, o passinho, enfim, tudo isso precisava ser novamente vivido por aqueles que estavam lá no início e compartilhado com a nova geração do Funk. 

Os “Bailes das Antigas” são, na realidade, um espaço para reviver bons tempos e homenagear os(as) construtores(as) dessa história. Na Nova Brasília, em 2019, teve um baile especialmente para lembrar do MC Sapão que, além de produzir músicas incríveis que marcaram - “BAILES DAS ANTIGAS” RECORDA BONS MOMENTOS DO FUNK MEU NOME É FAVELA a cena do funk até hoje, era morador da localidade e faleceu em abril de 2019. A galera do AP do Itararé, como mostram as fotos, marcaram presença. A viúva do “Sapão” foi às lágrimas com o evento e com a homenagem. Esse baile foi mágico porque, teve toda essa emoção relacionada ao Sapão, mas também foi bem na final da Copa América quando o Brasil venceu o Chile e foi campeão. Então tudo estava em ritmo de festa.

E é sempre assim nesses bailes, festa e alegria contaminam geral no salão onde, a cada som das antigas, seja na quadra da Vila Olímpica ou na Rua 2, as pessoas, com muito prazer e orgulho de serem parte daquele momento, cantam e dançam sem parar. É algo que transcende qualquer questão territorial. As(os) moradoras(es) se divertem quando rolam os bailes. É sempre um evento lindo ver a energia daquelas pessoas e viver aquele momento incrível. É um dos poucos instantes de respiro em que a felicidade dos moradores predomina por, inclusive, poder garantir o seu ‘momento de lazer’ sem ser interrompido pela violência. Favela Viva! 

 

 

 

  1. Texto original publicado no Jornal Fala Favela, ed. 7, 2019. Escrito por David Amen - produtor cultural e coordenador de Comunicação do Instituto Raízes em Movimento - e Hector Santos - Fotógrafo e graduando em Publicidade pela FACHA.