Cartilha de abordagem policial no Santa Marta

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Autoria: Palloma Menezes

 

Cartilha de abordagem policial do Santa Marta: http://www.global.org.br/wp-content/uploads/2015/09/Cartilha-popular-do-Santa-Marta-Abordagem-Pol--cial.-2010.pdf

 

Após a inauguração da primeira Unidade de Polícia Pacificadora no Morro Santa Marta ocorreram muitoscasos de abordagens de abuso policial entre 2009 e 2010. No início de 2009, policiais da UPP estavam detendo moradores pelo simples fato de estarem andando sem documentos pela favela e os encaminhando para delegacia para que as fichas dessas pessoas fossem levantadas. Como um jovem de 19 anos contou que na época, ele foi “conduzido à delegacia erradamente, simplesmente porque eu estava sem documento. Alegaram que eu não tinha documento e por isso tinham que me levar. Mas a gente sabe que não existe nenhuma lei, nenhuma legislação que obrigue a pessoa a andar com documento” (Trecho de entrevista com um jovem morador do Santa Marta).

Assim como esse jovem, diversos moradores da favela sabiam que os policiais da UPP, com frequência, não seguiam o que estava previsto em lei durante as abordagens realizadas no morro, mas eles temiam criticar publicamente essas arbitrariedades visto que, nesse período, havia um forte consenso em torno do projeto das UPPs. Isto dificultava a apresentação de qualquer denúncia pública à polícia, pois quem fazia alguma crítica à atuação dos policiais dentro da favela, geralmente, era acusado de “preferir” o tráfico a polícia ou de “compactuar” com traficantes.

Incomodado com o crescimento dos abusos cometidos por agentes da UPP na favela e a dificuldade das vítimas em denunciar esses casos, um grupo de lideranças resolveu se reunir para criar uma cartilha de abordagem policial no Santa Marta. A cartilha foi uma iniciativa do grupo Visão da Favela Brasil, coordenado pelo Rapper Fiell, com o apoio do Grupo Eco e da Associação de Moradores. O objetivo central da publicação era conter os excessos da ação policial, reforçar a ideia de que os moradores de favelas deviam ser respeitados pelo poder público e por seus agentes. Usando uma linguagem simples e muitas ilustrações, o grupo de moradores produziu a cartilha coletivamente, com o apoio de ONGs e organizações de direitos humanos. Nela foram descritos os limites da ação da polícia, a melhor maneira de agir durante uma abordagem policial e depois dela, caso um abuso viesse a ocorrer.

Urbina (2013) define que “acartilha pela abordagem policial foi uma ação social que surgiu como um grito desesperado”. A autora conta que “foram tantas pessoas, tantos casos que recebemos, que foi necessário criar um mecanismo de educação e comunicação para moradores, visitantes e policiais, enquanto aos direitos e deveres da pessoa abordada pela polícia”.

A cartilha pode ser pensado como uma espécie de síntese dos principais excessos que a polícia vinha cometendo no primeiro ano de ocupação das favelas, já que o material foi produzido a partir de um mapeamento informal realizado pelos próprios moradores dos casos de “abuso” que vinham ocorrendo com mais recorrência. Alguns exemplos dessas arbitrariedades comuns em favelas “pacificadas” naquele momento eram: a) buscas policiais dentro de residências sem autorização dos moradores nem mandato de busca ou apreensão; b) “duras” policiais em moradores, sem que existisse uma fundada suspeita de que quem estava sendo abordado; c) xingamento, ameaça e agressões de policiais a moradores durante as “buscas pessoais” (mais conhecidas como “geral” ou “dura”); d) a existência de polícia do sexo masculino fazendo revistas íntimas em mulheres da favela; e) o fato de policiais levarem pessoas à delegacia apenas para “puxar sua ficha”.

Além de descrever os limites da ação policial, a cartilha buscava orientar como os moradores deveriam agir para denunciar caso algum “excesso” acontecesse, indicando, por exemplo, que aquele que sofreu algum “abuso” deveria anotar o nome do policial que atuou fora da legalidade. Como eram frequentes os casos em que policiais não estavam identificados, havia também a indicação da vítima anotar as características do policial como altura, cor da pele, assim como o horário do ocorrido e todos os demais detalhes possíveis.

A cartilha sugeria também que os moradores deveriam encaminhar suas denúncias para algum dos órgãos do Poder Público (como Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública, Subprocuradoria Geral de Direitos Humanos do Ministério Público etc.) ou organizações da Sociedade Civil listadas na cartilha (como Grupo Eco, Visão da Favela, Associação de Moradores do Santa Marta, Justiça Global, Instituto de Defesa dos Direitos Humanos etc.). E apresentava ainda que outras possibilidades de denúncia poderiam surgir a partir da organização de audiências públicas comunitárias na própria favela. Segundo Fiell,

 

tudo que está na cartilha, está na Constituição. Se os policiais praticassem só o que está na Constituição, não tinha quase violência. Só que como o policial tem fé pública, eles dizem o que querem. Se você não filmar um ato irregular da polícia, o delegado na delegacia vai acreditar no policial. Então, a ideia da cartilha foi para garantir direitos. Após a cartilha diminuiu muito a violência policial. Ainda tem, muita coisa a gente nem sabe, mas após a cartilha mudou muito. Policial percebeu que o favelado pensa, percebeu que o favelado é ser humano e tem direitos. (Depoimento de Fiell no documentário “Pelo Santa Marta, para o Santa Marta: o percurso da comunicação comunitária”)[1].

 

A cartilha pode ser tomada, portanto, como uma tentativa bem-sucedida dos moradores de “pacificar” os policiais da UPP. Após o lançamento e a distribuição de três mil exemplares da cartilha, ouvi relatos que alguns moradores passaram a andar com ela em mãos, utilizando-a, assim, como um dispositivo para reivindicar seus direitos quando sofriam abordagens policiais excessivas. Uma moradora do Santa Marta contou que seu pai passou a andar sempre com a cartilha, já que era constantemente abordado:

 

Meu pai andava com a cartilha (...) Ele não esconde de ninguém que tem o viciozinho dele na cachaça, fuma o cigarrinho no canto dele lá, mas, não implica com ninguém, não pega [dinheiro] de ninguém, não tira de ninguém. Então, a dura já é focada! (...) Meu pai já foi agredido por muitos deles, meu pai já ficou internado. Agora, meu pai tem duas costelas deslocadas, tem platina no joelho por agressão, por ter sofrido coisas. (Trecho de entrevista com uma moradora do Santa Marta)

 

A Cartilha não foi muito bem recebida por alguns dos policiais que trabalhavam na UPP do Santa Marta na época. Durante uma entrevista, um policial disse que que não entendia qual era a necessidade da existência de uma cartilha para ensinar como deve ser a abordagem policial:

 

Vi essa cartilha. Ela foi levada para o comando. Só que ela não tem base jurídica. Como eu não posso revistar uma mulher dentro de uma favela? Posso revistar sim. Desde o momento que eu faça uma revista não íntima, mas sim uma revista superficial com o dorso da minha mão. (...) O dorso da minha mão não é sensível para você chegar ao ponto de dizer que eu estou te bolinando. Logicamente onde as mulheres guardam drogas, no sutiã, nos seios, e no cós da calcinha, perto da calcinha. Então, você passar ali e revistar alguma saliência que tenha aparecendo no corpo da pessoa, você logicamente não é médico, mas conhece um pouco de anatomia. Você vê um caroço ali (aponta para o peito), você sabe que aquilo ali não é normal da anatomia humana. Então você vai chegar ali para ver o que está acontecendo. E você sabe que mulher é bandida também, é mulher de bandido, mulheres que usam drogas. (Trecho de uma entrevista com um policial da UPP do Santa Marta)

 

O lançamento da cartilha tensionou a relação entre os policiais e Fiell e outras lideranças da favela. Segundo o rapper, desde o lançamento, os policiais começaram a “pegar ainda mais no pé” dele e acabaram o detendo em maio de 2010 no bar do seu sogro o acusando de perturbação da ordem e “baderna”. O episódio teve início às 21 horas quando cinco policiais teriam advertido Fiell a abaixar o som do bar até às 2 horas. Os policiais teriam dito que prenderiam o rapper, caso o som não fosse diminuído. Faltando cinco minutos para 2h, 12 policiais chegaram ao bar dizendo que tinham recebido reclamações de que o som estaria muito alto. Como aponta Fiell, eles chegaram “metendo as mãos nas tomadas, desligando tudo, invadindo o local”. Como narra o rapper:

 

Eu tinha acabado de lançar a cartilha. Ela saiu em vários meios de comunicação de massa, como o jornal O Globo, o Extra. A polícia não se manifestou perante a cartilha. Ela não quis falar, ela não quis reconhecer essa cartilha como algo legal (...). Ela viu [a cartilha] como uma afronta. Doze policiais chegaram no bar do meu sogro, invadiram um espaço privado, o que é irregular. Isso não acontece em um restaurante, não acontece no Copacabana Palace, [isso] da polícia invadir e chegar acabando com a festa. Mas como nós estamos em um território chamado favela, para a polícia tudo é possível. Então, eles chegaram e me deram voz de prisão. Porque eu falei no microfone que eles não podiam ter entrado em um bar e desligado o som, porque se era polícia pacificadora tem que dialogar, aí eu fui preso, arrastado pelos becos, tomei porrada. E aí os policiais perguntaram: “cadê a sua cartilha agora para te garantir?” A gente sabe que um papel não vai garantir que não sejamos violentados, mas é o que a gente pode fazer, exigir nossos direitos! (Depoimento de Fiell no documentário “Pelo Santa Marta, para o Santa Marta: o percurso da comunicação comunitária”)[2]

 

No mesmo dia o jornal O Globo também divulgou uma matéria sobre o episódio. Na reportagem era dito que a Polícia Militar tinha enviado uma nota afirmando que o rapper  “repetidamente promove atos de protesto contra os policiais das UPPs”. Segundo Fiell, além de tentar machar sua imagem através da mídia, posteriormente, o comando da UPP tentou diversas vezes jogá-lo contra a população, afirmando que ele era baderneiro e promovia a desordem na favela. O rapper afirma ainda que sua prisão foi “política” e associa o ocorrido ao lançamento da Cartilha de Abordagem Policial.


[1]Fonte:https://www.youtube.com/watch?v=mv8wp8W10Zo(Acessado em 31 de julho de 2014)

[2]Fonte:https://www.youtube.com/watch?v=mv8wp8W10Zo(Acessado em 31 de julho de 2014)