Chacina da Via Show - 05 de dezembro de 2003

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

No dia 05 de dezembro de 2003, Geraldo Sant’ Anna de Azevedo Junior (21 anos), Bruno Muniz Paulino (20 anos), Rafael Paulino (18 anos) e Renan Medina Paulino (13 anos) saíram de casa com destino a um show na casa noturna “Via Show”, localizada na cidade de São João de Meriti, na Baixada Fluminense. As investigações revelaram que os rapazes foram agredidos por policiais militares em horário de folga, que faziam trabalhos extras como seguranças da casa de shows.

Autoria: Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco.

A chacina[editar | editar código-fonte]

Rafael e Renan eram irmãos, Bruno era primo e Geraldo era amigo de todos eles. A última vez que foram vistos, pelo seu amigo Wallace Lima, foi no interior da casa de shows, por volta das 5h da manhã. Depois disso, as famílias e amigos começaram a se desesperar, pois nenhum dos jovens retornou para suas casas, até que no dia 09 de dezembro de 2003 os corpos foram encontrados por uma denúncia anônima, com marcas de tortura e tiros de fuzil nas cabeça. Os jovens foram sequestrados enquanto ainda estavam no estacionamento da casa, sob ameaças de armas de fogo e conduzidos em três veículos diferentes para uma fazenda abandonada na cidade de Duque de Caxias, no bairro de Imbariê, conhecida como “Morambi”. Lá, eles foram torturados e executados.

Os familiares e amigos das vítimas, assim como a Rede de Movimentos e Comunidades contra a Violência, seguem em busca de justiça para seus mortos, protestando contra o descaso em relação aos crimes brutais que aconteceram em função da atuação dos seguranças da Via Show.

Neste verbete, foram utilizados fragmentos do livro "Autos de resistência: relatos de familiares vítimas da violência armada", organizado por Barbara Musumeci, Tatiana Mouta e Carla Afonso, e publicado em 2009 pela Editora 7Letras, Rio de Janeiro. "Autos de Resistência" é resultado de uma das atividades do Projeto de Apoio a Familiares de Vítimas de Chacinas, desenvolvido pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Candido Mendes - RJ e pelo Núcleo de Estudos para a Paz (NEP) da Universidade de Coimbra.

Desdobramentos das investigações[editar | editar código-fonte]

Segundo a promotora que estava à frente do caso, testemunhas disseram que Geraldo entrou sozinho no estacionamento da Via Show para pegar seu carro. Antes, porém resolveu urinar atrás de um outro carro, justamente o do chefe da segurança da casa de espetáculo. Quando os seguranças, todos policiais militares que estavam fazendo um “bico”, viram Geraldo muito perto do carro, começaram a espancá-lo. Bruno, Rafael e Renan acharam que Geraldo estava demorando e foram a seu encontro. Geraldo explicou que os três eram seus amigos. Então os seguranças pegaram os meninos e também os espancaram por muito tempo. Numa certa hora, descobriram que Geraldo era soldado do Exército e que isso poderia lhes trazer problemas. Chamaram então um capitão da Polícia Militar que fazia a ronda e costumava encobrir as barbaridades que acontecem naquela casa de show. O tal capitão sentenciou os meninos à morte. Sem nenhuma defesa, eles foram levados para uma fazenda abandonada. Ali foram executados e jogados num poço para que nunca fossem encontrados.

O caso foi designado à Delegacia de Homicídios por meio do inquérito 77/2003. No ano seguinte, em julho de 2004, a promotora Márcia Guimarães, representante do Ministério Público, denunciou na 4ª vara criminal de Duque de Caxias o ocorrido. Foram presos oito policiais por conta de suspeita no envolvimento da chacina: Ronald Alves (capitão), Gilberto de Paiva, Luiz Carlos de Almeida, Vagner Luís Victorino, Henrique Vitor de Oliveira Vieira, Fábio Vasconcelos, Paulo César da Conceição e Eduardo Neves dos Santos (todos soltados). Há um nono policial, sargento à época, que foi liberado por não se provar envolvimento seu com o caso. Há denúncias de que as provas circunstanciais foram destruídas no processo de instrução criminal. Em 2005, foi decretada a prisão de quatro dos policiais envolvidos (Paulo, Eduardo, Henrique e Fábio), que eram lotados no 15º Batalhão (Caxias) e no 21º Batalhão (Vilar dos Teles). Foi confirmado que cinco dos nove policiais presos faziam “bico” como seguranças da casa noturna. E que os outros quatro estavam em serviço próximos ao local do crime.

Em 15 de abril, o Tribunal de Justiça do Rio revogou as prisões temporárias de todos, concedendo aos acusados o direito de responder ao processo em liberdade. Em julho, o Ministério Público ofereceu denúncia ao juiz da 4ª Vara Criminal da Comarca de Duque de Caxias, que acatou o pedido e oito policiais foram indiciados. Em 9 de junho de 2005, foi decretada a prisão de apenas quatro policiais. Segundo familiares das vítimas, a promotora também pediu a prisão dos outros quatro.

Dois anos depois da denúncia, no dia 21 de junho de 2006, o primeiro envolvido nas execuções foi julgado pelo Tribunal do Júri de Duque de Caxias. Em decisão unânime, o réu foi condenado a 25 anos, sete meses e sete dias de prisão. No entanto, de acordo com a lei em vigor na data da sentença, ele teve direito a um novo julgamento, ocorrido em 19 de agosto de 2008, junto com outros três denunciados. Todos foram condenados, por unanimidade. Um dos réus foi condenado a 67 anos de reclusão e os outros três a 68 anos e quatro meses, por homicídio, ocultação de cadáver e formação de quadrilha armada. Durante os julgamentos, estiveram presentes, prestando solidariedade, dezenas de familiares de vítimas de violência policial. Quanto aos outros acusados, um foi assassinado, outro está internado em um hospital de custódia e os demais estão à espera de julgamento em liberdade.

Caso Ronald[editar | editar código-fonte]

O único oficial entre todos os acusados, Ronald, além de ainda não ter sido julgado, buscou subir de patente no começo dos anos 2010. O absurdo diante da impunidade e falta de responsabilização diante de crimes como esse motiva as famílias a seguirem suas lutas, cobrando respostas do Estado. Em 2010, o então Capitão participou de um curso de aperfeiçoamento de Oficiais – em tentativa de subir de patente à Major. Viajou com autorização do Comando para a cidade de Recife (PE) para o curso e submeteu, ao fim da viagem, o resumo de atividades à Secretaria de Segurança. Outro fato importante é que Ronald recebeu moção de Louvor do então deputado estadual Flávio Bolsonaro por serviços prestados, um mês após a chacina. Além disso, ele segue sem função na corporação, lotado no Departamento Geral de Pessoas (DGP), recebendo salário normalmente e aguardando a definição de sua função.

Outros casos na Via Show[editar | editar código-fonte]

Além da Chacina de 2003, há outros momentos onde os seguranças da casa foram envolvidos em crimes violentos. No dia 03 de novembro de 2007, José Diego de Oliveira Alencar, de 21 anos, e os irmãos Fábio da Silva, 26, e Alexandre da Silva, 25 anos, foram encontrados baleados na Rua Maria Januária, próximo à Via Dutra, em São João de Meriti. O motivo teria sido uma briga dentro da Via Show provocada por ciúmes. Os envolvidos na briga foram expulsos da casa de shows pelos seguranças. A família dos rapazes afirma que eles foram abordados no ponto de ônibus por quatro homens armados que estavam de carro e moto. Diego tentou fugir e foi atingido nas costas. Os irmãos levaram tiros no rosto e na nuca.

Outras fontes: entrevistas com familiares[editar | editar código-fonte]

Trechos da entrevista com Siley Paulino, mãe de Bruno[editar | editar código-fonte]

*Entrevista concedida ao Jornal Nova Democracia, em outubro de 2010.

Antes de o meu filho morrer, eu lia no jornal: ‘A polícia matou quatro’, aí eu pensava: ‘Se a polícia matou, alguma coisa eles estavam fazendo de errado’. Eu pensava assim, porque eu era apenas uma dona de casa, refém do que a televisão me mostrava. Mas quando vieram até mim dizendo que policiais mataram o meu filho, eu pensei ‘Como é que a polícia matou meu filho, se ele não era bandido e não usava drogas?’ Mesmo que meu filho fosse viciado em drogas, que direito eles teriam de tirar vida dele? Depois do assassinato do meu filho, eu vi como é a polícia na realidade. As autoridades, que eu tanto respeitava e admirava, hoje não significam nada para mim.

No último julgamento, os PMs que mataram o meu filho foram condenados, mas como era em primeira instância, eles recorreram e estão soltos. Como pode? Meu filho, os primos e o amigo apanharam muito no estacionamento da Via Show. Os corpos foram encontrados na rodovia Washington Luís sem nenhum dente na boca, com sinais claros de execução. No local onde encontraram os corpos, tinham várias ossadas de outras pessoas. Se não fosse por uma denúncia anônima, até hoje nós não teríamos encontrado nossos filhos.

Como é possível pessoas que cometem um crime bárbaro como esse serem condenadas e não serem presas? Se eu fosse na esquina e matasse um policial desse, imediatamente seria punida. Mas como foram agentes do Estado que mataram meu filho, o Estado não assume a culpa. Faz a gente de bolinha de pingue-pongue, nos jogando para lá e para cá. Vários julgamentos e não acontece nada. Diante de um crime tão grave, eu não vi justiça nenhuma. A única justiça que nós conseguimos foi mostrar a cara desses assassinos para a sociedade. Mas ficamos tristes mesmo assim, pois sabemos que isso continua acontecendo com outros jovens.

Quando o meu filho morreu na Via Show, muitos outros já tinham morrido, mas ninguém lutava por justiça. As mães tinham medo. Meses depois da chacina, repórteres fizeram um levantamento de casos anteriores de pessoas que foram assassinadas ou sequestradas nas imediações da Via Show. Uma mulher que perdeu o filho do mesmo jeito que eu, meses antes, disse que, se ela tivesse lutado por justiça na época, o meu filho, seus primos e seu amigo não teriam morrido. Eu sabia quem eram meus filhos e meus sobrinhos e, por isso, a luta por justiça me deu muita força para superar esse trauma. Os encontros e debates com outras mães, que passaram pela mesma experiência, me deram muita força também. O contato com as mães de Acari, por exemplo, foi muito bom para nós. Isso tudo mostra que a gente pode lutar, a gente não precisa cruzar os braços.

Trechos da entrevista com Elizabeth Paulino, mãe de Rafael e Renan[editar | editar código-fonte]

*Extraído do livro Autos de Resistência: Histórias contadas por quem viveu de perto a violência policial no Rio de Janeiro (2009)

O Renan me pediu para ir à Via Show com um grupo de amigos. Eu não queria deixar, pois, embora parecesse bem mais velho, porque era alto, só tinha 13 anos e nunca tinha saído à noite. Ele tinha passado de ano e iam 30 adolescentes nesse dia. Acabei deixando. Ele colocou sua roupa mais bonita, me deu um grande beijo e se foi. Como eu tinha muito medo dessa violência sem limites do Rio de Janeiro (não da violência policial, porque essa eu ainda não conhecia), alugamos uma van, junto com os outros pais, para levá-los e buscá-los. Eu tinha medo das ruas, não da Via Show, pois me disseram que lá havia muitos seguranças e que a polícia ficava rondando a casa. Depois que o Renan foi, o meu filho mais velho, o Rafael, veio com aquele jeito todo especial de falar e me disse que também iria à Via Show, com seu primo Bruno, que, como Rafael, era um menino de ouro. Eu não podia dizer não para ele, aliás, para nenhum dos dois. Eles eram adolescentes obedientes e responsáveis. Eu disse que fosse com Deus, e ele me respondeu: “Mãe, não se preocupe. Quem não morre não vê Deus”.

Essa foi a última coisa que me disse. Rafael e Bruno pegaram carona com um outro amiguinho que estava indo de Gol, um garoto bacana também, conheci a família dele depois. Então, lá no Via Show, na hora em que o Renan ia entrar na van para voltar para casa, o Rafael o chamou. Porque o meu filho, o mais velho, tinha essa mania de proteger o irmão. “Vem comigo, que aí eu olho você”. Às quatro da manhã, fiquei esperando no portão. A van chegou e me disseram que o Renan viria em seguida com o irmão, o Rafael, o Bruno e um colega de nome Geraldo. No primeiro momento, não me preocupei. Mas aí a van fez três viagens para deixar todos os adolescentes e os meninos não chegavam. E da Via Show até a minha casa são só 20 minutos mais ou menos. Ali, naquele momento, não sei por quê, não sei como, eu tive um pressentimento, eu tive a certeza de que eles não voltariam nunca mais. Às seis horas, fui chamar minha cunhada, a Siley, mãe do Bruno, para ver se ele tinha levado o celular. Ele também não tinha voltado. Então pegamos um táxi e fomos para a Via Show. Mas não achamos os nossos filhos e ficamos desesperadas. Procuramos por três longos dias. A família, os amigos, todo mundo do nosso bairro, todos se mobilizaram. A imprensa fazia apelos para quem soubesse de alguma notícia. No dia 9 de dezembro foram encontrados os corpos dos quatro, dentro de um poço, no município de Caxias.

Quando dei por mim, eu só tinha perguntas na minha cabeça: o que aconteceu, como aconteceu, por que aconteceu aquilo? Do jeito como meus filhos foram mortos, aquilo foi uma execução. E eu sabia quem eram os meus filhos e quem era o meu sobrinho. E fiquei sabendo quem era o menino que estava com eles. Eles não deviam nada a ninguém. Então, por que uma execução? Isso ficou na minha cabeça. Eu tinha que saber por quê, como e quem fizera aquilo. A primeira grande dificuldade veio do fato de que eles foram mortos por policiais. Eu achava que meninos mortos por policiais sempre deviam alguma coisa. Mas meus filhos não deviam nada, então isso foi muito duro para mim.

Fontes[editar | editar código-fonte]

  1. Jornal Extra: Famílias de Jovens Mortos na Chacina da Via Show esperam há oito anos por julgamento de oficial da PM;
  2. Grupo Tortura Nunca Mais manifesta solidariedade às mães;
  3. Reportagem do Jornal A Nova Democracia: Mães em luta por justiça
  4. Livro: 'Autos de Resistência: Histórias contadas por quem viveu de perto a violência policial no Rio de Janeiro', organizado por Barbara Musumeci, Tatiana Mouta e Carla Afonso, e publicado em 2009 pela Editora 7Letras, no Rio de Janeiro.