Chacina do Salgueiro - 11 de novembro de 2017: mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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O que deveria ser um dia comum, ficou marcado na memória dos moradores da Comunidade do Salgueiro, em São Gonçalo, em 11 de novembro de 2017. Uma incursão orquestrada pela Polícia Civil e Exército, terminou com 8 pessoas assassinadas e 1 pessoa gravemente ferida.
O que deveria ser um dia comum, ficou marcado na memória dos moradores da Comunidade do Salgueiro, em São Gonçalo, em 11 de novembro de 2017. Uma incursão orquestrada pela Polícia Civil e Exército, terminou com 8 pessoas assassinadas e 1 pessoa gravemente ferida.
 
Autoria: Este trabalho é uma parceria entre os grupos GENI/UFF e CASA (IESP-UERJ) com o Dicionário de Favelas Marielle Franco.
- Este trabalho é uma parceria entre os grupos GENI e CASA com o Dicionário de Favelas Marielle Franco.


== História ==
== História ==

Edição das 09h46min de 20 de julho de 2022

Foto: Jornal O Dia.

O que deveria ser um dia comum, ficou marcado na memória dos moradores da Comunidade do Salgueiro, em São Gonçalo, em 11 de novembro de 2017. Uma incursão orquestrada pela Polícia Civil e Exército, terminou com 8 pessoas assassinadas e 1 pessoa gravemente ferida.

Autoria: Este trabalho é uma parceria entre os grupos GENI/UFF e CASA (IESP-UERJ) com o Dicionário de Favelas Marielle Franco.

História

A chacina ocorreu durante um baile funk que acontecia no Complexo do Salgueiro (Região metropolitana do Rio de Janeiro), na Estrada das Palmeiras. Na sequência dos assassinatos, vieram à tona relatos de testemunhas e sobreviventes que indicavam um possível envolvimento de forças especiais do Exército nas mortes. Todos coincidiram em dizer que os tiros haviam partido da mata, onde homens com capacetes pretos e armas com mira a laser se escondiam. Dois inquéritos foram então abertos, um pelo Ministério Público do Estado do Rio e outro pelo Militar, para apurar o ocorrido.

Tanto militares quanto policiais que prestaram depoimentos sobre o caso nos meses seguintes afirmaram que entraram no local e encontraram as vítimas já mortas numa via. Nenhum agente assumiu ter puxado o gatilho naquela madrugada. Ao final das investigações, mais de um ano depois, essa foi a versão que prevaleceu, e a chacina foi enterrada.

Como os homicídios aconteceram um mês depois da aprovação da Lei 13.491/2017 pelo então presidente Michel Temer, que transferiu para a Justiça Militar o julgamento de militares por homicídios de civis, duas investigações foram abertas após os crimes. O Ministério Público do Rio (MPRJ) ficou responsável por apurar a participação da Polícia Civil nos assassinatos; já o Ministério Público Militar (MPM) deveria investigar a conduta dos homens do Exército. Resultado: em novembro de 2018, o MPRJ concluiu que a versão apresentada pelos agentes da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), a tropa de elite da Polícia Civil fluminense, era verídica e arquivou seu inquérito; e cinco meses depois, o MPM chegou à mesma conclusão sobre os militares que teriam participado do crime. Caso encerrado. Hoje, não há mais nenhuma investigação em curso.

A versão oficial, entretanto, não é a única. A matança teve um sobrevivente que decidiu contar o que viu: um padeiro conduzia sua moto na via onde os mortos foram baleados quando os disparos foram feitos. Em três depoimentos diferentes, ele afirmou que os tiros partiram de uma área de mata ao lado em direção à estrada por onde as vítimas trafegavam. Um projétil acertou suas duas mãos, e ele perdeu o controle da moto. Outro perfurou sua coxa esquerda. Caído na via, ele viu a cena que, dias depois, descreveria às autoridades: homens com roupas pretas, balaclavas, capacetes com lanternas e armas com mira a laser saíram do matagal exatamente no ponto de onde os disparos partiram. Em seu terceiro depoimento, prestado um ano após as mortes, quando já estava de alta médica, o padeiro reconheceu os uniformes das Forças Especiais do Exército como sendo a vestimenta usada pelos homens no matagal.

A versão do sobrevivente, entretanto, foi desacreditada. Apesar de o padeiro não ter sido sequer ouvido por nenhum integrante do MPM ao longo dos 15 meses de inquérito — só o MPRJ e a Polícia Civil ouviram o jovem —, o relatório final do órgão questiona a credibilidade do sobrevivente: “A prova testemunhal não é esclarecedora apesar dos abrangentes questionamentos e das várias inquirições”.

A operação foi denunciada à Comissão Interamericana de Direiros Humanos (CIDH). A denúncia foi entregue pelos defensores públicos Rodrigo Pacheco e Daniel Lozoya ao secretário-executivo da CIDH, Paulo Abrão, em Washington. O documento, assinado pela Defensoria Pública do Rio e pelas ONGs Movimento Negro Unificado, Criola e Instituto de Estudos da Religião, foi elaborado com base na série de reportagens do EXTRA sobre o caso.

A militarização da segurança pública e a chacina do Salgueiro

Andrés Del Río e André Rodrigues - 23 de abril de 2018.

Doutores em Ciência Política pelo IESP-UERJ e professores adjuntos da UFF.


Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro conjuntamente como Movimento Negro Unificado do Brasil, CRIOLO e ISER, apresentaram uma denúncia contra o Brasil, pela chacina ocorrida em São Gonçalo, em novembro de 2017. Ao falar da chacina, estamos falando também, sobre a violação brasileira ao direito internacional pela ampliação da competência da Justiça Militar a partir da Lei 13.491/17, sancionada em outubro de 2017.

A chacina do Salgueiro, São Gonçalo

O complexo de favelas do Salgueiro, em São Gonçalo já tinha sido alvo de uma megaoperação quatro dias antes. Na ocasião, com 3.500 militares e até cerco marítimo, cinco homens foram presos e um menor apreendido[1]. Uns dias depois, no dia 11 de novembro, um comboio de dois blindados do Exército e um da Polícia Civil entrou na mesma comunidade e terminou com sete mortos esparramados ao longo de um quilômetro de via (mais um faleceria posteriormente)[2].

A chamada “operação conjunta” contou com 15 homens da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), um corpo de elite da Polícia Civil e com o Exército que, além dos blindados, cedeu 17 soldados à ação. As duas partes negaram que os disparos tenham saído de suas armas. A investigação, ainda em processo, pouco iluminou o que aconteceu. As provas apresentadas na denúncia ante à Comissão Interamericana foram muitas e sólidas.

Um dado importante é a sanção da Lei 13.491/17, um mês antes do episódio. Sancionada pelo presidente Michel Temer no mês de outubro, a legislação alterou o conceito de crime militar para abranger o homicídio doloso (com intenção de matar) perpetrados por militares das Forças Armadas contra civis. As investigações e julgamento dos crimes – antes submetidos a um júri – ficaram, desde então, na esfera militar. Argumentamos que a chacina do Salgueiro revela os efeitos mais nocivos desse mecanismo jurídico, uma vez que amplia as chances de impunidade, servindo, na prática, como um estímulo à brutalidade.

Quase quatro meses se passaram desde que oito homens foram mortos no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, durante uma operação da Polícia Civil e do Exército. Nada se sabe sobre os responsáveis. Tanto o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) como o Ministério Público Militar (MPM) abriram inquérito para investigar as mortes. Mas, segundo denunciou a ONG internacional Human Rights Watch, as Forças Armadas estão bloqueando as investigações ao não disponibilizarem seus soldados para prestar depoimentos como testemunhas ao MP estadual[3].

Segurança pública na contramão dos Direitos Humanos

Em meio à intervenção federal, em que o general Braga Netto atua também como chefe máximo da segurança pública do Rio, a operação no Salgueiro e os limites encontrados pela Justiça comum para investigá-la indicam que crimes e abusos também podem acabar não sendo esclarecidos e punidos. E é mais preocupante se refletimos sobre as declarações do general Braga Netto: “Rio de Janeiro é um laboratório para o Brasil”[3].

A Lei nº 13.491/2017, que transfere para a competência da Justiça Militar da União o julgamento de crimes dolosos contra a vida cometidos por militares das Forças Armadas contra civis, bem como amplia a competência da Justiça castrense para processar e julgar outros delitos (tais como, tortura e abuso de autoridade) imputados a militares contra civis, segue na contramão da jurisprudência já consolidada da Corte Interamericana de Direitos Humanos.


Como se fosse um Fla-Flu, os direitos humanos pareceriam estar num plebiscito todos os dias. Errado, eles são o coração da Constituição. Existem, portanto, muitas ilegalidades e inconstitucionalidades em curso.


Nesse aspecto, o Estado brasileiro tem demonstrado imenso desprezo pela garantia dos direitos humanos, em contradição com as próprias premissas de nosso ordenamento jurídico. Os retrocessos nessa agenda têm o campo da segurança pública como uma arena central. Só no decorrer do último mês de março o Brasil figurou em diversas denúncias na Corte Interamericana de Direitos Humanos, todas elas envolvendo direta ou indiretamente abusos por forças de segurança pública ou militares, além de ter sido alvo de crítica do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Nesse mesmo mês, Marielle Franco, vereadora do PSOL e defensora de direitos humanos, foi assassinada no centro do Rio após evento com ativistas negras. A execução da vereadora contrária a intervenção, foi capa dos maiores jornais do mundo.

O cenário e seus (sombrios) horizontes

É urgente que se consolide o nexo adequado entre a corrosão da democracia brasileira e os modos do Estado de lidar com o tema da segurança pública. Em primeiro lugar, a violência homicida no Brasil demarca o lugar das desigualdades: as incidências criminais se concentram nos locais de moradia das pessoas mais pobres nas cidades brasileiras e têm como alvo principalmente os jovens negros. Em segundo lugar, é preciso destacar que as mortes provocadas por agentes do Estado são responsáveis por uma parcela inadmissível do total de homicídios cometidos no Brasil (no Rio de Janeiro, em 2010, os policiais foram autores de 21% dos homicídios na capital, caindo essa proporção para 15%, em 2014, um patamar, entretanto, ainda altíssimo;[4] no estado de São Paulo, em 2016, os policiais foram responsáveis por 12% do total de homicídios [5]). As mortes decorrentes de intervenção policial, em terceiro lugar, são um indicador importante da reprodução de práticas ilegais no cotidiano do trabalho policial.

Matar de modo ilegal é o desvio profissional mais grave possível cometido por um policial e a violência mais deletéria do ponto de vista de seu impacto político e social, tendo em vista que é cometida por agentes que deveriam zelar pelo cumprimento da lei.

Os homicídios no Brasil, por último, são um aspecto central de lucrativos mercados ilegais e não um dano colateral suas operações. Poder matar é poder participar desses mercados. Quando o Estado mata ilegalmente, ele alimenta diretamente esses mercados e a eles se associa, seja pela participação de agentes seja pela autorização tácita ou expressa de matar à margem da lei [6].

No caso do Complexo do Salgueiro, temos todos os fatores dessa fórmula: brutalidade policial e do Exército, rede criminosa violenta operando na região, chancela estatal. O mais grave é que a operação não fazia parte do policiamento ordinário desempenhado pelas forças estaduais de segurança. Era uma ação planejada sob o regime de Garantia da Lei e da Ordem, um mecanismo constitucional de exceção que tem sido cada vez mais utilizado. Esse mesmo mecanismo seria aprofundado, meses depois, com a instauração da corrente intervenção federal militarizada no estado do Rio de Janeiro.

Enfim, o cenário brasileiro de aumento da violência, impunidade e pobreza produz mais morte e ilegalidade num processo de consolidação do autoritarismo. É tarefa de todos manter vivo o debate e trazer as questões que estão tentando ser caladas. A denúncia corajosamente apresentada ante à Comissão Interamericana é uma mostra que distintos setores da sociedade ainda estão lutando pelo que resta da democracia no Brasil.

Depoimento

Aos 19 anos (na época), o padeiro Luiz da Silva* voltou a nascer. O jovem foi um dos quatro sobreviventes.


“Fiquei perdendo sangue no chão durante horas. Vi passar um caveirão e um tanque de guerra, mas ninguém me ajudou. Perdi muito sangue. Eu só pensei que iria morrer”.


O depoimento de Luiz, prostrado numa cama e com três tiros de fuzil no corpo, deixa em evidência a falta de transparência das autoridades e a desconcertante versão oficial sobre a operação. Quem atirou, relatou o jovem ao EL PAÍS, estava escondido na mata, vestia roupa preta, capacete e portava armas com marcador laser.

Por volta de meia noite e meia, Luiz saía da casa da sua namorada e pegava sua moto para voltar para sua residência, uma casa com portas reforçadas com papelão. No caminho encontrou um amigo a quem deu carona e seguiram pela estrada das Palmeiras, uma via de duas mãos com mato, poças de esgoto e casas humildes nas encostas. Num determinado momento ouviram fogos de artifício, normalmente lançados pelos traficantes para alertar sobre a presença policial. Como não viram movimentação na rua, continuaram. De repente, dois carros passaram muito mais rápido que o habitual. E vieram os disparos. Caíram.

Luiz foi atingido por três tiros de fuzil nas duas mãos e numa coxa. Seu amigo, em coma induzido desde então, foi alvejado no maxilar. “Me joguei na beira da vala, quando uns seis homens de preto com capacete saíram do mato com miras laser”, relembra o jovem um dia depois de ter tido alta hospitalar. “Pegaram meu telefone e falaram que iriam voltar para me matar. Tiraram fotos nossas. Eles quebraram as lâmpadas dos portões das casas onde a gente estava e ficou muito escuro”, continua com um fio de voz, sem conseguir sequer se sentar. No tempo que Luiz ficou na estrada, quando os blindados nem tinham aparecido ainda, ele viu mais dois homens que iam numa moto serem abatidos.

O jovem, que trabalha numa padaria próxima da sua residência desde os 12 anos e sustenta a mãe, só foi socorrido por volta das quatro horas da manhã pela sua irmã e seu patrão, o único conhecido com carro que a família tem.

O relato foi confirmado por Luiz Octávio Rosa dos Santos, de 27 anos, a oitava vítima fatal da ação, que morreu em dezembro de 2017, depois de um mês internado. Antes de morrer, ele afirmou à polícia que os tiros que atingiram as vítimas “vinham da mata em direção das casas que ficam do outro lado da Estrada das Palmeiras”.


FONTE: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/14/politica/1510686437_487995.html#?rel=listaapoyo

Investigação e Repercussão na Imprensa

CHACINA DO SALGUEIRO

2017

Justiça Militar

Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro

O caso dos mortos que ninguém matou

De capacete preto e miras laser, a nova forma de matar impunemente no Rio

2018

Sobreviventes da chacina do Salgueiro não foram ouvidos pela Justiça Militar

2019

Investigação é arquivada, e oito mortes em operação no Salgueiro não têm explicação

2021

Chacina em São Gonçalo: documentos revelam que investigadores ignoraram provas que ligam assassinatos a militares

Referências

https://www.justificando.com/2018/04/23/a-militarizacao-da-seguranca-publica-e-a-chacina-do-salgueiro/

https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/11/18/mp-rj-investiga-chacina-durante-operacao-do-exercito-e-da-policia-civil-no-rj.htm

https://oglobo.globo.com/epoca/rio/as-camadas-de-impunidade-que-poupam-militares-de-responsabilizacao-por-chacina-em-sao-goncalo-2-24889538

https://extra.globo.com/casos-de-policia/investigacao-arquivada-oito-mortes-em-operacao-no-salgueiro-nao-tem-explicacao-23599691.html