Comunidades Terapêuticas

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 14h59min de 16 de maio de 2020 por Palloma (discussão | contribs)

Autora: Beatriz Brandão

O surgimento das Comunidades Terapêuticas no Brasil

Nas últimas décadas, enquanto a atenção aos usuários de drogas pela rede pública tentava se consolidar, vimos a difusão das Comunidades Terapêuticas (CTs), principalmente, as nascidas de grupos religiosos. As CTs são residências temporárias, instituições constituídas num modelo de cuidado direcionado a pessoas com usos problemáticos ou abusivos de drogas. Suas pedagogias de tratamento guardam semelhanças com instituições que prestam assistência a pessoas em situação de vulnerabilidade social, como abrigos e hospitais filantrópicos, por exemplo. O objetivo principal de uma CT é fazer com que seus residentes (ou hóspedes, clientes, internos, alunos, pois cada uma nomeia de modo diferente a sua rede de assistidos) suspendam o uso de drogas por meio de uma lógica que envolve abstinência, internação e transformação subjetiva, já que trabalham pela via da recuperação, ancorando seu programa assistencial no tripé disciplina-trabalho-espiritualidade. 

No Brasil, em 1968 surgiu a primeira Comunidade Terapêutica, na cidade de Goiânia, denominada Desafio Jovem, oriunda de um movimento religioso evangélico. Em 1978, na cidade de Campinas, foi fundada a Comunidade Terapêutica Fazenda Senhor Jesus, fruto de um movimento religioso coordenado pelo Padre Haroldo J. Rahm, missionário jesuíta norte americano. Houve um forte crescimento e consolidação das CTs, a partir da década de 80, porque os brasileiros contavam somente com os manicômios como alternativa de tratamento de uso abusivo de droga até meados do século XX.  Também por isso, a sua expansão no Brasil recebeu conotação política e representou uma alternativa à tendência histórica de omissão do Estado na proposição de políticas para minimizar os efeitos do consumo abusivo de substâncias psicoativas. Com o passar de sua ampliação teve que adotar e se enquadrar aos termos médico-jurídicos, o que se tornou um desafio, pois ao ter um quadro de normas e regras que tenta abranger e unificar seus parâmetros vemos crescer tensões entre a normatividade que tenta estabelecer o lugar e a função das CTs num cenário de assistência marcado pela diversidade de tratamentos e metodologias.

Outro fato importante que trouxe às CTs ao centro da formulação de políticas públicas sobre drogas – logo, aos debates e disputas políticas e acadêmicas – foi a sanção da Lei nº11.343 de 2006, a Lei de Drogas, que instituiu um sistema nacional de políticas públicas sobre drogas em que a atenção e reinserção do usuário de drogas deve ser prestada tanto pelo Sistema Único de Saúde (SUS) quanto por instituições privadas e organizações da sociedade civil sem fins lucrativos (Brasil, 2006, art 3º, I). Dessa forma, as CTs são elegíveis de subsídios públicos e benefícios fiscais, passando a integrar oficialmente a rede pública de atenção e cuidado a usuários de drogas. Ainda que já recebessem financiamento público de estados e municípios, o governo federal iniciou seu investimento em 2011 devido ao plano Crack, é possível vencer. Desde então, foi aberta uma seara de discussões políticas e tramitações no congresso em torno não só da legitimidade, mas da hegemonia do modo de tratamento para usos abusivos de psicoativos, o que se perpetuou e permitiu a recente assinatura do presidente Jair Bolsonaro, no dia 11 de abril de 2019, do Decreto da Nova Política Nacional sobre Drogas. Com isso, na vigência da nova política de drogas, o foco deixa de ser da redução de danos e recai na promoção da abstinência, reconhece as Comunidades Terapêuticas como a forma de cuidado, tratamento, acolhimento do “dependente químico”, como expresso no documento. Assim, as CTs assumem centralidade e protagonismo e necessidade viva e atual de ser revista, pesquisada e analisada de perto em seus modos, operações e formas de ordenamento político.

Com tamanho investimento, aceitação pública e usada como mote político muitas vezes, as CTs obtiveram forte absorção na sociedade civil e passaram a ser compreendidas como uma das melhores alternativas para se conseguir tratamento, recuperação e a chamada ressocialização. As perspectivas de abstinência, isolamento e uma responsabilidade social devolutiva dos sujeitos as imbuem de um poder de ação. Poder também argumentativo e narrativo que fomentam e respaldam o discurso da proibição de drogas que obtém radicalidade em seu alcance. Se formos pensar nas CTs desde sua idealização e consecução conseguimos enxergar uma trajetória não linear frente às transformações de ideia e ação.  

Ela nasce numa perspectiva dupla de tratamento psiquiátrico, além dos psicoativos. Vários autores concordam que as CTs se originaram a partir das experiências do médico psiquiatra Maxwell Jones após a Segunda Guerra Mundial. No entanto, há ainda algumas discussões a respeito de bases sobre as quais tais fundamentos se estabeleceram. Para alguns, tais bases encontram-se na reforma psiquiátrica, no bojo das lutas antimanicomiais, para outros, remontam tempos mais antigos, cuja origem se encontra no grupo de Oxford de 1921, como resultado dos Movimentos de Temperança no século XIX. De um modo ou de outro, a gênese das CTs está fundamentada no proibicionismo. Os elementos que ambos trazem se somam ao conjunto normativo proibicionista, que só admite a abstinência como forma de cura. A base proibicionista, que forma metodologias, pedagogias e disciplinas também permitiu a ancoragem e ascensão dessa forma denominada como Comunidade Terapêutica. Percebe-se a coexistência de uma heterogeneidade de concepções sobre o consumo abusivo de substâncias psicoativas e das práticas de serviços de atenção a usuários. Essas concepções ratificaram, historicamente, diversos modelos de intervenção, que constituem o que hoje se entende por rede de atenção a usuários de compreendendo que as diferentes práticas institucionais delimitam um complexo de abordagens, com dimensões políticas.

O Funcionamento: a disciplina exigida

Com base nos modelos de Maxwell Jones e no recente programa dos Doze Passos dos Alcoólicos Anônimos (AA), após muitos anos frequentando o AA, e inconformado da recusa do grupo em aceitar usuários de outras substâncias, Charles Dederich, inaugurou em 1959 a Synanon, uma palavra oriunda da junção de simpósio e seminário. Essa história que começou um ano antes no próprio apartamento e expandiu-se para um sítio, Dederich fez uso dos passos do AA, mas não se limitou apenas a isso, foi além recorrendo a outros métodos. Uma prática utilizada por ele era a “terapia de ataque”, que consistia no confronto verbal entre os pares. Seus residentes não eram tratados como doentes, mas como irresponsáveis. Havia dois métodos mais praticados o The Game e o The Trip, no primeiro o participante era confrontado por todo o grupo, ouvia de cada componente aquilo que havia de pior nele. O segundo consistia em uma maratona de 48 horas sem dormir e comer. O objetivo era “baixar” as defesas do componente, uma vez que com sono e faminto se tornaria mais vulnerável aos confrontos.   

A questão é que dentre as influências apontadas, uma posição não inviabiliza a outra, se a origem das CTs encontra-se, pelo menos no que diz respeito a sua concepção de “regenerar a alma”, como pensavam os puritanos que lideraram os movimentos de temperança, o tratamento dos loucos nas colônias agrícolas do século XIX guarda, também, uma estreita relação com as práticas presentes nas Comunidades Terapêuticas. No primeiro caso, a ideia é de tratar a mente através da ciência, mais precisamente da psiquiatria. No segundo, verificamos a conotação de um resgate da moral e dos costumes cristãos, da vida controlada pelo espírito. As primeiras CTs imprimiram, de certa forma, um pouco dessas duas visões, uma confluência que perdurou em alguns modelos e que ainda hoje se pode observar nos formatos regulamentados, em que a espiritualidade é considerada como peça chave no tratamento da “doença”. Entretanto, a premissa desses modelos reside no isolamento do sujeito chamado problemático, uma máxima, reproduzindo o afastamento dos indivíduos indesejáveis da sociedade ativa, tal como no período das internações dos loucos, onde se buscava consolidar um domínio sobre a loucura por meio da razão, imprimindo a ideia de que o louco representava um perigo não apenas para a sociedade, mas também para si mesmo.

Essas influências foram absorvidas no ideário das CTs, mas também reformuladas em sua cotidianidade devido a sua diversidade e capilaridade de atuação. Em 2015, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) realizou pesquisasobre o Perfil das Comunidades Terapêuticas solicitada pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad)[1]. Foram estimadas cerca de 2 mil CTs operando com a existência de alguns perfis diferenciados, como protestantes, católicas, de outras cristandades, não religiosas, ayuasqueiras. Dessas, 47% são evangélicas, 27% católicas e ainda que 18% declarem-se sem orientação religiosa, 95% afirmam desenvolver trabalhos espirituais.  

Em todas é possível verificar a presença do tripé disciplina-trabalho-espiritualidade como sustentação do tratamento. Como temos um crescimento mais exponencial das CTs protestantes – situadas ainda mais na linha pentecostal – podemos pensar nesse crescimento e aderência das CTs protestantes também correlacionadas a sua expansão nos territórios de favela, já que “o pentecostalismo vai se tornando um modo de ser na periferia”[2]. Muitas das CTs começaram como extensão de projetos de igrejas, muitas delas em favelas com o domínio do narcotráfico, como forte ação do chamado combate às drogas. É interessante observar como as mobilizações de fronteiras atuam na consolidação de igrejas (que pregam a legalidade pessoal, moral, espiritual) em territórios que respondem a um limiar de ilegalidade. Além do campo legal e ilegal, a composição dessa estabilização pentecostal em territorialidade de violência urbana é acentuada e demanda reflexões que se ligam às possíveis razões do pentecostalismo já fazer parte das diversas pontos do cenário da favela, da violência, do crime, como dos trabalhadores, dos funkeiros e suas referências à Jesus em algumas letras. Trazemos os questionamentos sobre uma possível cultura pentecostal[3] ou de uma pentecostalização da cultura. Não necessariamente convertidos, ainda que não aderidos às doutrinas e regras religiosas, diversos grupos aderem às linguagens e dominam seus códigos, se sentem pertencentes, mesmo que não completamente afiliados.

Na emergência da citada cultura pentecostal pode-se observar suas formas de assimilação tanto na sociabilidade da favela quanto nas práticas das CTs que muito se assemelham aos cultos e seus rituais. Nesse espaço de tratamento, eles possuem uma rotina fixa, na qual, todos os dias, devem colocar em prática a fé, por meio dos cultos, do trabalho, pois todo o espaço é mantido por eles, além da disciplina, como confirmação da obediência. Ali, a droga é concebida mais como um problema da ‘mente’ do que do ‘corpo’, por isso recorrem, sobretudo, às mudanças nos comportamentos e nas atitudes como terapêuticas mais eficazes para a abstinência das substâncias. O entendimento e a prática deles fazem com que mergulhem ainda mais no que seria esse conceito de mente: seria um problema de alma. O uso de psicoativos é, antes de tudo, um problema de alma, que afeta a mente (nos comportamentos) e, consequentemente, o corpo. Inserida nessa lógica, a linha para se desenhar a tipologia pedagógica e disciplinar será outra. Assim, o ritual de entrada já dimensiona a ruptura, pois há uma diferença entre estar no espaço da CT e entrar no tratamento. A entrada no tratamento pressupõe a conversão, ou seja, o primeiro passo para a “libertação da alma”. Na conversão é preciso admitir a perda de controle e a necessidade da ajuda de Deus.

Não há um ritual religioso específico na entrada que “comprove” a conversão à nova fé. Grosso modo, se o novo interno aceita seguir as regras de conduta, nas quais em todas há disciplina religiosa, então, ele aceitou se engajarautora no tratamento. A comprovação palpável de uma conversão se dá por meio dos testemunhos que eles dão de suas vidas. Na visão majoritária das CTs protestantes – principalmente as pentecostais- existe um novo elemento, uma nova ação que exprime a fonte do mal: as forças do diabo. Mais do que a própria vulnerabilidade do indivíduo, a presença do diabo em suas vidas, os compelem, os sujeitando a essa condição adicta. Nesse caso, há um estímulo externo e altamente subjetivado, menos palpável que a droga ou que a condição social e/ou pessoal do usuário. O diabo figura no imaginário social e se mostra imaterial. Sendo ele a mola propulsora para essa condição, o tratamento deverá ser tomado nos mesmos moldes de suas ações, troca-se a medicalização pela pregação e o aparato médico pela intervenção através da fé. Assim, tal discurso de luta com o diabo se mostra como uma importante prática de moralização.

Dessa forma, a disciplina é circunscrita com o objetivo de não se abrir espaço para que o diabo opere novamente. Como isso se dá: antes a vida dele estava sob a posse do diabo, ele cometia pecados, como o uso de psicoativos, devido à ação maligna em suas decisões e atos. Em minha pesquisa numa CT pentecostal masculina descrevi uma das falas do dirigente: “não temos um regime punitivo, coercitivo. O que se disciplina não são as faltas, e sim as atitudes. A reincidência, a motivação, a intenção, são fatores que vão influenciar na análise da falta antes que ela gere uma punição. Punição essa que não é imposta, e sim acordada entre as partes; e que tem o propósito de conscientização do erro, seja na cópia de uma parte das escrituras para os que estão mais dispersos, ou de uma tarefa para os que estão muito ansiosos”. 

Conclusão

O fato é que a omissão do Estado por décadas e sua reação tardia deixou uma lacuna que hoje é majoritariamente preenchida pelas CTs de tradição cristã (católicos, protestantes e evangélicos pentecostais). Espaços como esses agem como se através apenas daquela determinada manifestação de fé, será possível uma regeneração total. Dessa forma, sabendo que toda a metodologia de tratamento estará voltada para essa base, assim se molda a disciplina em projeto pentecostal.

Refletir sobre o lugar das CTs no Estado não prescinde de uma atitude de articular as tentativas de sua normatização e os diversos meios pelos quais elas tentam se instaurar e se legitimar no espaço institucional, respondendo positivamente ou não aos modelos impostos, como o médico-legal. Por meio do entendimento de seu histórico, seu lugar no cenário social e sua influência na formatação de toda uma rede de tratamento vemos como um modo que operacionaliza formas de subjetivação e produções disciplinares se desenvolve no tecido social e se torna premissa e base para a formatação de uma Nova Política de Drogas.  

 

 

 

 

 


[1]  http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=29865. SANTOS, M.-P. G. et al. Perfil das Comunidades Terapêuticas Brasileiras. Brasília: Ipea, 2016. (Nota Técnica).

[2]ABUMANSSUR, E. Fé e crime na ‘quebrada’: pentecostais e PCC na construção da sociabilidade nas periferias de São Paulo. Revista Horizonte, Belo Horizonte, v. 12, n. 33, p. 99-120, jan./mar. 2014.

[3]VITAL DA CUNHA, C. Evangélicos em ação nas favelas cariocas: um estudo sócio-antropológico sobre redes de proteção, tráfico de drogas e religião no Complexo de Acari. Tese de Doutorado. UERJ, Rio de Janeiro, 2009.