Crime sujeito e sujeição criminal. Aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria bandido (Resenha)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Referência

MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, Porto Alegre, vol. 8, no 3, pp. 371-385, 2008a.

Breve contextualização

Michel Misse é professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também parte do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da mesma instituição. O autor é um dos pioneiros no estudo da violência no Brasil, suas pesquisas iniciam-se na década de 1970, e o desenvolvimento de sua carreira e de suas pesquisas confundem-se com a consolidação desse campo de estudos nas ciências sociais do país. Misse foi orientado por Luiz Antônio Machado da Silva (1941-2020), no antigo IUPERJ. A relação teórica entre os dois, com concordâncias e divergências, guiou o debate sobre violência e criminalidade na sociologia brasileira. Junto com Machado da Silva (2004) e Maria Stela Porto (2006), Misse (1999) é um dos autores que contribuem para pensar a violência como uma representação social. Assim, para esse conjunto de autores, em vez de um substantivo, a violência é um adjetivo para ações assim classificadas (Werneck, 2012). O texto resenhado é uma conferência na Academia Brasileira de Letras, proferida no dia 3 de julho de 2008 e está baseado nas ideias desenvolvidas em sua tese de doutorado “Malandros, marginais e vagabundos: a acumulação social da violência no Rio de Janeiro”, defendida em 1999. 

Principais argumentos

De início, há uma provocação às caracterizações, de senso comum e acadêmicas, sobre a cordialidade do povo brasileiro. Como um país que aboliu a escravidão recentemente, em termos históricos, não considera esse passado, e suas consequências no presente, uma mazela social ultrajante? Poderíamos pensar, a partir de Alexander (2012), que a falta da construção social de um trauma coletivo cujas violências explícitas do período escravocrata, e as simbólicas que se seguiram desde então, inibe a empatia cultural e a sensibilidade com a dores de pessoas de cores e etnias específicas, pretos e indígenas. Misse remete às noções de cordialidade a demora com que as ciências sociais se apoderaram da violência como um objeto de estudo. Somente na década de 1970 passa-se a problematizar a violência sociologicamente, antes ela era discutida prioritariamente na área médica e legal (Zaluar, 1999; Kant; Misse; Miranda, 2000). O início da segunda metade do século XX, entre 1950 e 1970, marcou a urbanização massiva do Brasil e, consequentemente, o aprofundamento da marginalização de uma parcela da população. Esse processo também ocorreu em outros países latino-americanos (Briceño-León, 2007). Não houve integração dessas massas à cidade, o controle deu-se pela criminalização da marginalidade (Coelho, 1978), em vez do exercício pleno da cidadania. O que o autor quer pensar, portanto, são os motivos que, nos últimos 50 anos, fizeram retomar a consciência, antes oculta pela produção de esquecimento, silêncios e memórias subterrâneas (Pollak, 1989), de nossa formação social violenta. 

Em seguida, o autor faz uma crítica ao uso, corriqueiro entre os sociólogos, da violência como um conceito, um operador analítico. Misse aponta o caráter polissêmico da categoria, que, quando invocada parece ser externa ao analista e, assim, possível de se adequar aos valores que o orienta. Desse modo, quando utilizada, a violência é performática, normativa e acusatorial. Nesse sentido, violência, assim como crime e corrupção, de acordo com o autor, não deveriam ser vistos como conceitos, pois seriam antes “categorias nativas, representações de práticas muito variadas, interações e conflitos sociais muito complexos” (Misse, 2008a: 373). É necessário, desse modo, saber que ao utilizarmos o termo “violência”, estamos o utilizando de forma descritiva, quase sempre, sobre o uso ilegítimo da força desmedida e exagerada em uma relação social. Isso implica sua indissociabilidade com os processos sociais de criminalização do uso da força física, como o processo civilizador (Elias, 2011) e a normalização (Foucault, 1999). Nesse caso, segundo Misse, a categoria “violência” pressupõe a pacificação das relações, monopólio legítimo do uso da violência, relegado ao Estado, e, em consequência disso, uma judicialização dos conflitos. O autor desenvolve mais essa questão e a relação da violência com a teoria social em Misse (2016). 

No caso brasileiro, assim como em outros países latino-americanos, haveria uma disjunção entre sociedade e Estado (Misse, 2019a). Não há sucesso no monopólio legítimo da violência e nem no processamento legal de crimes e conflitos no sistema de justiça. Segundo o PNUD (2013), cerca de 24% dos cidadãos da América Latina apoiam “fazer justiça com as próprias mãos”. Assim, Misse apresenta uma forma de resolução de conflitos, que emerge especificamente no Rio de Janeiro e depois generaliza-se, chamada “Esquadrão da Morte”. Segundo o autor, essa inovação, ocorrida durante a década de 1950, marca o início da violência urbana no Brasil. O Rio de Janeiro serve como uma vitrine, sua centralidade midiática contribuiu para o desenvolvimento das dinâmicas criminais cariocas em ambientes onde existiam condições propícias. 

Os Esquadrões da Morte não são o motivo principal de uma percepção do aumento da violência, eles são um ponto de inflexão responsável por demarcar o início de um processo social distinto. Antes de 1950, os crimes mais comuns não eram violentos, tratavam-se de ações que relacionavam a malandragem de uns com a ingenuidade de outros. A maioria das ocorrências com violência eram ligadas à honra e paixão. Ainda nessa década, o padrão de criminalidade começa a se alterar vagarosamente. A mídia passa a noticiar mais crimes armados contra propriedade e fazer comparações do Rio com a Chicago dos anos 1920, apontando a existência de crime organizado a partir da figura do jogo do bicho e do contrabando. Para dar uma resposta, o Estado cria o “Grupo de Diligências Especiais”, comandado por um policial chamado LeCocq, que já havia sido da Polícia Especial da ditadura do Estado Novo (1930-1945). LeCoqc montou sua equipe a partir do antigo Esquadrão Motorizado dessa Polícia Especial de Vargas. Simbolicamente, voltaram a utilizar a sigla E. M. acompanhada de uma caveira com duas tíbias cruzadas, uma por cima da outra. A imprensa caracterizava suas ações como “caçadas” e, por elas frequentemente terminarem na morte de seus alvos, a sigla E. M. ganhou outro significado popular: Esquadrão da Morte. Depois da morte de LeCoqc, durante uma dessas ações, em 1964, seus companheiros fundam a “Scuderie LeCoqc”, um grupo para-policial com o objetivo explícito de matar “bandidos”. Esse foi o Esquadrão da Morte mais conhecido, porém o modelo de resolução de conflitos, que tensionava a relação entre a progressiva modernização do Estado e uma sociedade enraizada em valores tradicionais, se popularizou pela cidade e pela baixada fluminense. A popular frase, dita por quem apoia e positiva as ações de “justiceiros”, “Bandido bom é bandido morto” foi proferida por um membro da Scuderie LeCoqc, que posteriormente seguiu carreira política no Rio de Janeiro. Essa configuração é intensificada pela sintonia com os valores da ditadura militar (1964-1985). 

No período da redemocratização, acentua-se a percepção de que a criminalidade está aumentando. Alguns teóricos chegam a afirmar que, ao contrário do que se imaginava, no contexto latino-americano, a democracia “democratizou” o uso da violência – antes concentrada nos regimes militares ditatoriais – no cotidiano (Kruijt; Koonings, 2002). A tese de Misse, na verdade, mostra que essa banalização da violência é um processo histórico longo e anterior à ditadura, no caso brasileiro. Assim, diante da polissemia do termo “violência”, o autor prefere designar esse fenômeno como “acumulação social da violência”. O conceito faz referência a um “complexo de fatores, uma síndrome, que envolve circularidade causal acumulativa” (Misse, 2008a: 379). Por conta desse carácter, Misse propõe uma série de conceitos que compõem o arcabouço analítico da “acumulação social da violência”. 

Nesse sentido, é preciso repensar a construção social do crime. Misse propõe quatro níveis analíticos para avançar na construção social do crime, que normalmente estaciona na criminalização. De início, teríamos a própria “criminalização”, que nada mais é do que a classificação de um curso de ação como crime e o encaixe dele em um código penal. Uma ação passa a ser crime, segundo Becker (2008), por conta de um empreendimento moral bem-sucedido, por exemplo. Mas também pode ser resultado da tradição, segundo Misse. Quando se acusa publicamente um curso de ação, por meio de interpretações que o associam às classificações criminalizadoras previstas nos códigos penais, isto constitui um “processo de criminação”. Nesse caso, há a necessidade da “incriminação”, ou seja, de identificar o sujeito que comete o ato criminoso e puni-lo. No âmbito do Estado moderno, a “incriminação” ocorre por meio do processamento legal das ações criminalizadas do sujeito no sistema de justiça. Contudo, quando a “incriminação” acontece antes da “criminação” ou mesmo da “criminalização”, o sujeito passa a ser o alvo da acusação social e não suas ações. Esse último estágio é intitulado “sujeição criminal” (Misse, 2010). Nela, desconfia-se da essência do ser com base na condensação e reprodução de imaginários sociais sobre a “maldade” de alguns sujeitos. Esses atores sociais são vistos como “propensos a cometer um crime” e, portanto, selecionados preventivamente (Misse, 2008b). A “sujeição criminal”, portanto, caracteriza um processo social de incriminação extra-legal, diferente do racional-legal. Esse processo social não seria apenas um estigma, e só estaria completo quando atua na própria subjetivação do sujeito criminal, internalizando o crime no sujeito, os fundindo como um “espírito”. Isso explica, segundo o autor, porque no Brasil é tão comum a “ressocialização de sujeitos criminais por meio da conversão religiosa (Teixeira, 2011). 

Além disso, nos mercados ilegais, assim como em outros âmbitos da sociedade brasileira, subtraiu-se a culpa sobre o uso da corrupção como uma troca legítima. Misse usa, para analisar essa situação, o conceito de “mercadorias políticas”. Estas últimas seriam relações de troca, não se resumindo apenas à corrupção, envolvendo custos (políticos e econômicos) e negociações estratégicas, realizadas somente a partir de uma assimetria de poder; suas transações afetariam mais o âmbito estatal do que o individual (Misse, 1999; 2008b; 2010; 2014). Seu aspecto político está assentado na possibilidade de um ato “criminalizado” ser ou não “criminado”, a depender da tolerância nos processos de “incriminação”, que tendem a ter preferências sociais. Assim, abre-se margem para ambivalências entre o legal e o ilegal nessas negociações que discutem a efetivação da sanção. Esse caráter dúbio é responsável por fomentar trocas (às vezes compulsórias) dos mais variados interesses e níveis (do Estado ao crime), criando as “mercadorias políticas”.  

No processo da “acumulação social da violência”, os sujeitos criminais são aqueles que, em última instância, são passíveis de serem mortos, segundo a expectativa social, ou de terem suas vidas negociadas por agentes do Estado. Assim, há circularidade cumulativa desde a positivação moral encontrada no apoio aos Esquadrões da Morte e a contínua legitimidade da já consagrada frase “bandido bom é bandido morto”.

Apreciação crítica

O arcabouço teórico implicado no conceito da “acumulação social da violência” é uma poderosa possibilidade de análise da realidade latino-americana. O conjunto analítico tem sido frequentemente utilizado para pensar outros contextos fora do Rio de Janeiro, nacionais e internacionais (Misse, 2019b). Tem se mostrado frutífero também para refletir sobre novas configurações criminais pós anos 2000, como as “milícias” e possíveis novos tipos de agentes da sujeição criminal.

Outras referências

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