Drogas e religião nas favelas

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Verbete com textos que abordam a relação entre drogas e religião nas favelas.

Religiões afro-brasileiras, violência e tráfico de drogas[editar | editar código-fonte]

Autora: Carolina Rocha Silva.

O que se convencionou mais recentemente chamar de intolerância religiosa foi constitutiva do processo de colonização do Brasil, deixando suas marcas no âmbito cultural e político-estatal até os dias atuais. Episódios violentos ligados a destruição de terreiros e ofensas a símbolos religiosos afro-brasileiros são documentados desde o final do século XIX no país. As religiões afro-brasileiras foram alvo da Igreja católica e do Estado que procurou estigmatizar seus ritos e símbolos ligando-os à criminalidade e ao Diabo. Na contemporaneidade, as igrejas neopentecostais têm sido acusadas de preconceito, violência, fundamentalismo e intolerância, pois sua teologia tem levado até as últimas consequências discursos e práticas de ódio e demonização.

O pentecostalismo teve crescimento mundial a partir da década de 60, principalmente dentro dos contextos de maior precariedade político-social. A missão pentecostal manteve seu foco nas pastorais destinadas ao meio urbano, considerado fonte de intensas “Batalhas Espirituais” entre o bem e o mal, entre Deus e o Diabo. Na perspectiva teológica e doutrinária dos evangélicos pentecostais o mundo é um local de guerra, e o linguajar bélico empregado pelos pastores, que falam o tempo todo do “inimigo” a ser combatido e do “exército do senhor” a ser convocado, comunica bem com os moradores das favelas e periferias pobres, notadamente, com o discurso empregado no tráfico de drogas.

Diversos pesquisadores têm tentado explicar a evangelização de um número cada vez maior de fiéis no país. Alguns argumentos são apontados como explicações plausíveis, tais como a proximidade e a vida similar entre pastores e moradores das favelas, o que teria gerado uma empatia maior com relação ao culto. O acesso facilitado ao culto e a ampla oferta de igrejas, que cresciam de maneira menos verticalizada e hierarquizada que o catolicismo oficial, ou o grande acolhimento promovido pelas igrejas, com redes de solidariedade e proteção em ambientes inseguros e vulneráveis, também são vistos como possíveis fatores. As igrejas foram formadas por circuitos de reciprocidade que favoreciam as relações materiais entre seus membros, com o incentivo à ajuda mútua e aos impulsos empreendedores. A conversão possibilitava ainda para o morador da favela o respaldo moral e ético dentro de um contexto que envolve pobreza, violência e criminalidade: os evangélicos “guardiões da moral” e propagadores da “verdade” conseguiam fornecer um manto de respeitabilidade e crédito para moradores afetados pelo estigma do racismo e da criminalização da pobreza.

O crescimento neopentecostal, a partir dos anos 70/80, centralizava ainda mais o discurso teológico anterior no modelo da “Batalha Espiritual”, investindo no proselitismo religioso justificado por uma necessidade de cura, promovendo uma convocação nacional da libertação, principalmente, por meio da mídia televisiva e, aproveitando-se do apelo mágico, exigido pelos fiéis. O Neopentecostalismo, diferente do que foi o Pentecostalismo clássico das décadas anteriores, se aproximava e se apropriava do sistema simbólico de manipulação mágica da umbanda e do candomblé para depois negá-lo e demonizá-lo.

Nesse cenário, foi possível estabelecer uma relação de reciprocidade de interesses entre as igrejas neopentecostais e os agentes do tráfico nas favelas locais. A igreja oferecia uma forte proteção, representada pelos seus irmãos de fé, valorizada pelo discurso da guerra contra o “inimigo” e incentivada pela busca da prosperidade material, conferindo um aspecto moral reconfortante aos “traficantes convertidos”, que embora ainda não estivessem totalmente libertos de suas atividades, estavam em vias de recuperação e vislumbravam um horizonte seguro de salvação. Esses, por sua vez, grande foco de influência dentro das favelas, conferiam poder às lideranças evangélicas a partir da admissão e da constatação de sua autoridade moral e espiritual. Dessa forma, através dessas alianças, essas igrejas tornavam-se, muitas vezes, forças religiosas e políticas no âmbito local e supralocal.

O Neopentecostalismo assumia, consequentemente, um caráter popular inegável nas favelas cariocas, com um modelo não institucional e expressões religiosas sincréticas que se desenvolviam em contextos de violência e criminalidade. As complexas relações entre traficantes e os grupos, genericamente, identificados como evangélicos, eram mediadas por um combate central, a guerra entre Deus e o Diabo. Entretanto, os vínculos estabelecidos entre ambas as partes sempre foram tensos e por vezes ambíguos, pairando entre o limiar da ajuda e/ou da cumplicidade.

O comportamento dos “bandidos” em relação ao funcionamento dos terreiros não foi uniforme, pois nem todos proibiram expressamente as atividades religiosas desses espaços. Nas localidades onde isso aconteceu também observamos uma variedade de ações. As múltiplas formas de sociabilidade presentes nas favelas cariocas, mediadas por códigos de conduta dinâmicos, constantemente transformados e resignificados, dificulta qualquer tentativa simplista e generalista de tentar explicar esses processos.

Em linhas gerais, é possível dizer que, principalmente, no início dos anos 2000, um discurso demonizante com relação aos terreiros permitia justificar vários eventos considerados negativos dentro das favelas. Os pastores reforçavam em suas igrejas locais – que apesar de muito diversas possuíam um discurso semelhante quanto ao poder do Diabo e seus possíveis agentes -, e seus argumentos eram endossados na grande mídia, que a existência de pessoas propagando as religiões afro-brasileiras causava uma desordem espiritual que abria precedentes para efetivação de qualquer malefício. Por exemplo, defendiam frente ao tráfico e aos demais moradores, que determinada invasão de um comando rival na favela ou da própria polícia, era causada por causa da presença do mal, personificada pelo terreiro ou pelo pai de santo fulano de tal. Além disso, alguns pastores, conhecidos nacionalmente, famosos por suas conversões em massa em alguns eventos públicos, ou até mesmo por suas intervenções no sistema penitenciário, circulavam por várias favelas reforçando essas sentenças em grandes cultos ao ar livre, inclusive durante os bailes funk. Para extirpar o mal e evitar os inimigos era preciso exorcizá-los na fonte, o que significava, muitas vezes, quebrar ou fechar uma casa de santo.

Nesse processo, alguns pais e mães de santo foram verbalmente e fisicamente agredidos, outros receberam avisos, diretos e indiretos, para se retirar dos lugares onde passaram toda sua vida. Em alguns casos, os terreiros puderam ficar, mas em absoluto sigilo e descrição. E não só os sacerdotes e suas casas foram afetados, mas também os adeptos da religião que usassem roupas brancas ou fios de conta publicamente. Ademais, a estética das favelas foi, profundamente, alterada. Se antes era possível observar imagens e altares com São Jorge, Nossa Senhora e alguns exus e pombagiras, tidos em outros tempos como símbolos de proteção e boa sorte, atualmente, nota-se uma disseminação constante de dizeres e versículos bíblicos. A proteção espiritual nesses lugares, antes oferecida, majoritariamente, por símbolos do catolicismo popular ou da religiosidade afro-brasileira, foi aos poucos, substituída pela crença no Deus único, centralizador, que se manifesta no espírito santo e salva a todos de suas enfermidades. “Jesus é o dono desse lugar”, é, assim, a frase mais comumente vista.

A despeito de tudo isso, nas pesquisas realizadas observa-se que os adeptos das religiões afro-brasileiras, seguem buscando formas de comunicação, sobrevivência e (re)existências nessas áreas. Estão imersos em múltiplas e complexas relações sociais, locais, regionais e nacionais, marcadas por formas diversas de conflito, aliança e negociação.

Traficantes evangélicos em favelas[editar | editar código-fonte]

Autora: Christina Vital da Cunha.

Ao longo das décadas do século XX observou-se o crescimento no número daqueles que se autodeclaravam evangélicos no Brasil. Em 1940, quando a religião passa a ser contabilizada de modo sistemático nos censos decenais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), havia 95,2% católicos, 2,6% evangélicos, 0,2% sem religião. Os evangélicos avançaram para 3,4% em 1950, 4% em 1960, 5,2% em 1970, 6,6% em 1980, 9% em 1991, 15,5% em 2000 e 22,2% em 2010. Segundo dados de 2016 do Instituto Datafolha, um terço da população nacional já é evangélico. Vale lembrar que este crescimento evangélico é, sobretudo, urbano (Lopes 2006) e localiza-se majoritariamente em favelas e periferias (Vital da Cunha 2018). Em meados dos anos 1990, a crescente presença evangélica em favelas cariocas se expressava na paisagem sonora, visual e estabelecia novos marcadores de sociabilidade (Mafra 1998; Vital da Cunha 2002 e 2014; Machado 2013; Alvito 2001). Os cultos numerosos ocorriam em templos, mas ocupavam o ambiente sonoro da favela. Assim também as músicas gospel e hinos eram entoados em diferentes espaços seja por seus moradores, individualmente, seja por comerciantes que exibiam às alturas o som das cantoras gospel da moda em cada momento. Em termos visuais, evangélicos estavam presentes no marketing das igrejas que disponibilizavam pelas ruas cartazes e faixas anunciando a presença de personalidades em seus cultos semanais, correntes, campanhas. Também havia as pinturas murais com referências a Jesus, ao exército de Cristo, a passagens bíblicas do Antigo e do Novo Testamento. A sociabilidade nas favelas também sofreu mudanças a partir desta reconfiguração religiosa do espaço: a festa junina, as comemorações de São Cosme e Damião, assim como de São Jorge perderam centralidade e deixaram de estabelecer os espaços de encontro e fruição públicos que representavam até início dos anos 2000 (Gomes 2009; Pitrez 2012). Na esteira destas mudanças, observamos o surgimento de relações entre atores sociais de universos morais socialmente distintos: cristãos evangélicos e traficantes de drogas. O fortalecimento desta relação, ora criticado por evangélicos e não evangélicos, ora incentivado como uma missão nobre produziu muitos corolários locais e supralocais. Em termos mais gerais, a figura do “traficante evangélico” no Rio de Janeiro ganhou publicidade na mídia em 2008 com a formação de grupos de combate à Intolerância Religiosa que apresentavam com alarde essa aproximação de traficantes com pentecostais e neopentecostais em favelas. Denunciavam a situação liminar, devastadora, violenta que representaria para religiosos de matriz afro-brasileira residentes nestas em favelas e periferias as composições entre criminalidade e redes evangélicas. Antes disso, já vinha sendo acompanhado por parte da bibliografia especializada, ao mesmo tempo em que em textos ficcionais, a formação de alianças e a conversão de muitos chefes do tráfico de diferentes favelas cariocas (Lins e Lourdes da Silva 1990; Lins 1997; Alvito 2001; Laranjeira 2004; Vital da Cunha 2008; Abumanssur 2008 e 2009; Teixeira 2011 e 2013). Estar no comércio ilegal de drogas e participar de redes e de cultos, campanhas e demais atividades religiosas evangélicas nas favelas já não era incomum. Embora integrem mundos sociais distintos, com diferentes convenções e moralidades, o fazer urbano e social nestas localidades permitiu uma aproximação entre um cristianismo da “batalha espiritual” com os “senhores da guerra” locais que produz ainda muitos desdobramentos.

Referências Bibliográficas[editar | editar código-fonte]

ABUMANSSUR, E. S. (2009), “Religião violência”. In: A. M. L. Soares e J. D. Passos. (Org.). A fé na metrópole: desafios e olhares múltiplos. São Paulo: EDUC/Paulinas: 347-368.

______ (2008), “Pentecostalismo e violência em São Paulo”. In: Sociedade de Teologia e Ciências da Religião - SOTER (Org.). Deus e vida: desafios, alternativas e o futuro da América Latina e do Caribe. São Paulo: Paulinas: 273-283.

ALVITO, Marcos. As cores de Acari: uma favela carioca. Rio de Janeiro: FGV, 2001.

GOMES, Edlaine de Campos. (2009), “Doce de Cosme e Damião: dar, receber, ou não?” In: E. de C. Gomes. Dinâmicas contemporâneas do fenômeno religioso na sociedade brasileira. Aparecida: Ideias e Letras.

LARANGEIRA, Emir. Cavalos corredores: a verdadeira história. Rio de Janeiro: Editora Beto Brito, 2004. LINS, Paulo e LOURDES DA SILVA, Maria de. (1990), “Bandidos e Evangélicos: Extremos que se tocam”. Religião e Sociedade, v. 15, n. 1: 166-173.

LINS, Paulo. (1997), Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras.

LOPES, Nicanor (org.) Pastoral urbana: presença pública da igreja em áreas urbanas. São Bernardo do Campo: EDITEO, 2006. Machado, Carly. "É muita mistura": projetos religiosos, políticos, sociais, midiáticos, de saúde e segurança pública nas periferias do Rio de Janeiro. Relig. soc., Dez 2013, vol.33, no.2, p.13-36. ISSN 0100-8587

MAFRA, Clara “Drogas e símbolos: redes de solidariedade em contextos de violência”. In: ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos. Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV, 1998.

PITREZ, Maria Cláudia Martinelli de Mello. (2012), “O feriado de São Jorge e o dia do evangélico: disputas políticas e religiosas em torno dos calendários cívicos do Rio de Janeiro”. Debate do NER, v. 2, nº 21: 181-204.

TEIXEIRA, Cesar Pinheiro. (2011), A construção social do ‘ex-bandido’: um estudo sobre sujeição criminale pentecostalismo. Rio de Janeiro: 7Letras.

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______. (2002), Ocupação evangélica: efeitos sociais do crescimento pentecostal na favela de Acari.Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em Sociologia e Antropologia, PPGSA/UFRJ.