Entre Luzes e Sombras: o Rio de Janeiro dos Megaeventos e a militarização da vida na cidade (resenha)

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Autor: Utanaan Reis Barbosa Filho.

Referência[editar | editar código-fonte]

ROCHA, Lia; MOTTA, Jonathan. Entre Luzes e Sombras: o Rio de Janeiro dos Megaeventos e a militarização da vida na cidade. interseções - revista de estudos interdisciplinares, v. 22, p. 225-248, 2020.

Breve contextualização[editar | editar código-fonte]

Lia Rocha é professora associada do Departamento de Sociologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. É Doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ-UCAM (2009). É coordenadora do CIDADES - Núcleo de Pesquisa Urbana (UERJ), grupo de pesquisa do CNPq. Em 2013 publicou o livro "Uma favela 'diferente das outras'? Rotina, silenciamento e ação coletiva na favela do Pereirão, Rio de Janeiro", pela Editora Quartet/FAPERJ, e em 2018 organizou junto com Marcia Leite, Juliana Farias e Monique Carvalho a coletânea Militarização no Rio de Janeiro: da Pacificação à Intervenção, publicada pela Mórula Editorial. Já Jonathan da Motta é doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); mestre em Ciências Sociais pelo PPGCS/UFRRJ e bacharel em Ciências Sociais pela UERJ. É pesquisador do CIDADES - Núcleo de Pesquisa Urbana (PPCIS/UERJ) e do Observatório Fluminense (PPGCS/UFRRJ).

Esse artigo, aparentemente, é fruto de dois desdobramentos: primeiro, o projeto de pesquisa “militarização e mercantilização da vida nas grandes cidades”, que consiste em compreender a imbricação entre as dinâmicas de militarização e mercantilização da cidade, o ciclo de megaeventos realizados no Rio de Janeiro (2007-2016) e a reprodução de desigualdades sociais, econômicas e políticas, a partir da análise do caso do Rio de Janeiro em contraste com a experiência em outros estados e países; e segundo, é fruto do trabalho final de graduação de Jonathan da Motta.

Principais argumentos[editar | editar código-fonte]

O texto parte da análise do ciclo dos megaeventos sediados no Rio de Janeiro, no século XXI (Jogos Panamericanos, Olimpíadas, Paraolimpíadas, Jogos Mundiais Militares, Copa do Mundo, etc.), para compreender as transformações ocorridas no tecido urbano carioca. Desse modo, os autores, por um lado, empreendem um olhar analítico para as áreas centrais da cidade, onde diversos projetos de requalificação urbana foram desenvolvidos, políticas de militarização foram implementadas e potencializaram o Rio de Janeiro numa city marketing - processo pelo qual se arrasta desde a década de 1990 -, de forma a atrair as diversas frações do capital para a cidade. Por outro lado, os autores buscaram compreender como ocorria a gestão da cidade fora dos holofotes e da modernidade, focando, especificamente, na Zona Oeste carioca, área com diversos problemas sociais e com um rol complexo de facções criminosas, como as milícias.

Para classificar esse processo que se desenrolou nas duas áreas, os autores utilizam a nomenclatura “luz e sombra”, ou seja, uma área iluminada, com os signos do avanço e da prosperidade e outra área apagada, sem qualquer atenção do poder público. Diante desse processo de “luz e sombra”, o artigo se propõe a compreender o crescimento e atuação das milícias dentro do contexto e modificações nas dinâmicas urbanas e sociais causadas pelos megaeventos, pois distante dos holofotes se consagrou o cenário perfeito para o desenvolvimento – no sapatinho - das milícias na Zona Oeste do Rio de Janeiro.

Desde o momento que o Brasil almejou ser sede dos megaeventos uma questão mostrou-se latente, qual seja, à violência urbana circunscrita nas áreas turísticas e que fariam parte do cinturão dos jogos. Isso posto, a primeira “saída” encontrada ocorreu através do programa de pacificação de favelas (UPPs), acionada entre o período de efetivação enquanto sede da Copa do Mundo de Futebol (2007) e enquanto sede dos Jogos Olímpicos (2009), com a inauguração na Favela Santa Marta, em 2008. Porém, esta não foi a única medida de militarização, dado que, tão logo, diversos dispositivos nesse sentido foram criados: Leis (GLOs e Lei Antiterrorismo); aparatos tecnológicos de vigilância e monitoramento; além de intensificação da atuação das policias e guardas municipais.

Embora o processo de militarização ocorrido à luz seja mais visível, ele não foi o único que se sucedeu no período. Para explicitar esse aspecto, os autores se apropriam do conceito foucaultiano de “dispositivo” – conjunto heterogêneo de discursos, instituições, leis, medidas arquitetônicas, etc. – para elencar que a militarização se estabelece para além da estrutura estatal de segurança, reordenando os espaços em possíveis campos de batalha onde diversos atores sociais estão envolvidos. Este processo aconteceu na Zona Oeste (local estigmatizado, apartado da visão comercial do Rio de Janeiro) e, portanto, produziu estas formas “alternativas” de militarização – o reverso do circuito dos megaeventos como pontua os autores.

Prosseguindo na análise, os autores procedem um mergulho etnográfico na Zona Oeste, tendo como fio condutor o trajeto realizado pelo ramal de trem Santa Cruz para, desse modo, avaliar como algumas estações representam a modernidade olímpica, outras a estética do apagamento, do atraso, sem vegetação e com os tijolos das residências à mostra, bem como a conformação dos diversos grupos criminosos que se dividem espacialmente nos entornos das estações.

A esse respeito, a fim de exemplificação, é lícito citar algumas: Deodoro e Vila Militar, estações que compõem o círculo dos megaeventos e, portanto, detém uma arquitetura renovada e preservada, além de certa calmaria advinda da presença de quartéis e militares nos entornos; Magalhães Bastos que também foi revitalizada pelos jogos, no entanto rompe com a calmaria e expõe a convivência entre os signos urbanos dos megaeventos com a gestão local do tráfico de drogas; a estação de Realengo apresenta marcas do tempo e a ausência de conservação. Ademais explicita uma intensa disputa entre facções e milícias para o controle da favela do Batan; Senador Camará e Santíssimo, apesar de serem bairros distintos, compartilham de algumas características. Suas estações de trem são parecidas tanto do ponto de vista arquitetônico quanto da ausência de conservação. Esses dois bairros podem ser considerados, segundo os autores, como o último reduto do tráfico de drogas a varejo na Zona Oeste, e são majoritariamente dominados pela mesma facção de traficantes de drogas, que tem se aliado, nos últimos anos, aos grupos paramilitares; o bairro de Campo Grande apresenta o maior número de estações, e apesar de não terem sido reformadas no contexto dos megaeventos são relativamente bem conservadas. Outro aspecto desse bairro é a predominância de grupos milicianos, sendo, inclusive, onde surgiu o grupo Liga da Justiça; por fim, outro bairro interessante de ser realçado é Santa Cruz, dado que nele duas estações possuem configurações criminosas diferentes: a estação de Santa Cruz tem presença de milicianos, enquanto que a estação Tancredo Neves está localizada ao lado da favela de Antares, onde há anos atuam quadrilhas do tráfico de drogas. Próximo à favela de Antares, duas outras favelas, Rodo e Cesarão, tem uma nova configuração de grupos armados: “narcomilícia” (união entre traficantes e milícias).

O intuito dos autores procedendo tal panorama buscou apresentar a miríade de composições e coabitações entre poder público, crime, facções criminosas e grupos milicianos.

Nessa configuração de grupos, os autores destacam o papel das milícias com o uso da coação na mediação dos serviços que deveriam ser de domínio público. E além disso, através do conceito elaborado por Leite (2017) de regime territorial compreendem que as milícias exercem um modelo “próprio” de governo dos pobres, combinando elementos de disciplina, vigilância, repressão, violência e eliminação física, conformando, assim, uma forma de controle social – dentre outras possíveis – que compõem a trama de regimes territoriais na cidade.

O artigo buscou sublinhar que o aumento da militarização ocorreu tanto nas áreas circunscritas aos megaeventos, marcados pela pobreza, onde o principal instrumento ocorreu via Programa de Pacificação de Favelas, mas também em outras áreas da cidade; acrescenta-se ainda, nesse contexto, a atuação e expansão das milícias como ente do processo. Por fim, os autores ressaltam a importância da articulação entre “luz e sombras” para compreender e identificar como se dá formas de controle e repressão aos pobres em outros locais.

Apreensão crítica[editar | editar código-fonte]

O texto, relacionando o processo de militarização do território com os megaeventos, levantou dois pontos relevantes do debate sobre segurança pública e violência urbana: as UPPs e as milícias, sendo estes, dois processos complexos com grandes possibilidades de pesquisa e, por conseguinte, compreensão da dinâmica da violência carioca e, talvez, brasileira.

Outras referências bibliográficas[editar | editar código-fonte]

LEITE, Márcia Pereira. Entre a 'guerra' e a 'paz': Unidades de Polícia Pacificadora e gestão dos territórios de favela no Rio de Janeiro. Dilemas: revista de estudos de conflito e controle social, v. 7, pp. 625-642, 2014.

LEITE, Márcia. De territórios da pobreza a territórios de negócios: dispositivos de gestão das favelas cariocas em contexto de pacificação. In: BIRMAN, Patrícia; LEITE, Marcia Pereira; MACHADO, Carly; CARNEIRO, Sandra de Sá. (Org.). Dispositivos Urbanos e Trama dos Viventes: ordens e resistências. Rio de Janeiro: FGV Editora, v. 1, pp. 377-401, 2015.

LEITE, Márcia. State, market and administration of territories in the city of Rio de Janeiro. In: Vibrant – Virtual Brazilian Anthropology, v. 14, n.3. Brasília, ABA. September to December, 2017.

LEITE, Márcia Pereira et al. Militarização no Rio de Janeiro: da “pacificação” à intervenção. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.

MENDES, Thiago. Rio, cidade sede de um modelo global de militarização. In: Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul. Militarização do cotidiano: um legado olímpico. Rio de Janeiro, pp. 8-11, 2017.

ROCHA, Lia de Mattos. Democracia e militarização no Rio de Janeiro: “pacificação”, intervenção e seus efeitos no espaço público. In: LEITE, M. P. et al. (org), Militarização no Rio de Janeiro: da “pacificação” à intervenção. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, pp. 223-239, 2018.