Entre altos e baixos: dinâmicas da violência letal no Espírito Santo e Minas Gerais entre os anos 2000 e 2020 (artigo): mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Edição das 14h16min de 16 de setembro de 2021

Este artigo foi orinalmente publicado no Dossiê de Segurança Pública da revista USP no segundo trimestre de de 2021, páginas 81-94.

Resumo 

O presente artigo tem como objetivo discutir as dinâmicas da letalidade violenta, sobretudo entre jovens, nos estados do Espírito Santo e Minas Gerais. A partir de dados quantitativos e resultados de pesquisas de campo qualitativas realizadas pelos autores e por pares, o artigo discute a redução das mortes violentas intencionais nos dois estados na última década, a influência, ainda pontual, das facções criminais oriundas do Rio de Janeiro e São Paulo, com maior centralidade nas dinâmicas locais de rivalidades violentas e conflitos armados, e o intenso aumento da letalidade policial em Minas Gerais e Espírito Santo. Finalmente, o artigo inicia uma discussão sobre os efeitos distintos da pandemia de covid-19 nos números de homicídios dos dois estados, que tiveram um aumento significativo no Espírito  Santo, mas em Minas Gerais mantiveram a tendência de queda dos anos anteriores.

Palavras-chave: homicídios; letalidade policial; dinâmicas criminais; rivalidades violentas.

Autores: Marco Aurélio Borges Costa e Rafael L. S. Rocha


Na última década, o Brasil registrou um total de 560 mil assassinatos. E mesmo com este número desolador de homicídios, tivemos no ano de 2019 um total de mortes violentas intencionais 16% inferior ao do início da década: em 2010 foram cometidos 52.260 homicídios no brasil (uma taxa de 26,7 por 100 mil habitantes) e em 2019 o país teve 44.033 assassinatos (taxa de 20,9 homicídios por 100 mil).  

No entanto, a redução dos homicídios no Brasil não se deu de forma homogênea em todas as suas regiões. Os estados do norte registraram um aumento de 12% nos assassinatos na última década, enquanto as regiões do sudeste e sul tiveram expressivas quedas de, respectivamente, 38% e 26% em seus números absolutos de homicídios. Dentre os estados do sudeste, São Paulo reduziu a taxa de assassinatos por 100 mil habitantes pela metade na última década, seguido de perto por fortes reduções nas taxas do Espírito Santo e Rio de Janeiro. Por sua vez, ainda que Minas Gerais tenha tido uma queda em suas taxas de homicídios (de 18 por 100 mil habitantes em 2010 para 13,4 por 100 mil em 2019), o fez de maneira menos intensa que os estados vizinhos.

Essas mortes possuem claros marcadores de gênero, cor, classe social e faixa etária concentrando-se em determinadas parcelas da população desses estados (Atlas da violência, 2020). Um simples recorte etário sobre as taxas de homicídios do Espírito Santo e Minas Gerais, que serão foco deste artigo, revela que os jovens com idades entre 15 e 29 anos em geral têm taxas de mortes duas vezes maiores que o restante da população desses estados, 2019 evidenciando a questão do envolvimento de jovens nas dinâmicas de violência letal.

A contribuição que procuramos trazer por meio deste texto é justamente apresentar um olhar, ainda que breve, sobre como se configuram as dinâmicas da violência letal, que vitima sobretudo jovens, nos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo. Apesar das particularidades de cada localidade, também foi possível traçar semelhanças e aproximações nos tipos de conflitos e formas de organização das dinâmicas criminais entre Es e MG, que por sua vez se distanciam das configurações criminais de São Paulo e Rio de Janeiro, amplamente estudadas e veiculadas pela mídia, sobretudo após a nacionalização de facções criminais desses estados, como o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital. 

GUERRAS E CICLOS DE ACELERAÇÃO DA ACUMULAÇÃO SOCIAL DA VIOLÊNCIA – DINÂMICAS LOCAIS OU TENSÕES FACCIONAIS?

O primeiro desafio é o de tentar discutir um fenômeno complexo como a letalidade violenta em dezenas ou centenas de municípios, sem ignorar as diversas configurações desse fenômeno nas regiões do Espírito Santo e de Minas Gerais. Ainda assim, se faz necessário recortar os estados em grupos ou macrorregiões, de forma a possibilitar uma análise minimamente granular da letalidade violenta entre jovens nos dois estados.

Em Minas Gerais, nos parece que o primeiro passo é destacar as diferenças e particularidades da violência letal na capital e sua região metropolitana, cujos conflitos foram estudados e analisados em profundidade nas últimas duas décadas, e as configurações distintas do interior do estado, cujas dinâmicas criminais e tensões locais não raro são influenciadas por facções cariocas e paulistas, sobretudo o PCC na região do triângulo mineiro e nos municípios do sul de Minas, e que até o momento foram foco de poucas pesquisas e análises.

Tal como o restante do estado, a cidade de Belo Horizonte passou por um intenso processo de redução dos homicídios nos últimos 15 anos. No ano de 2004 a capital mineira registrava uma taxa de 51,7 hom./100 mil habitantes, o que à época a colocava como uma das cidades mais violentas do país (Waiselfisz, 2010). Uma década e meia depois, no ano de 2020, a taxa de homicídios de Belo Horizonte foi de 12,5 homicídios por 100 mil1, cerca de quatro vezes menor do que o registrado no início dos anos 2000. Mas mesmo com uma redução tão intensa, o perfil das vítimas desses assassinatos se manteve basicamente o mesmo: jovens, pretos ou pardos, do sexo masculino e moradores de favelas e bairros periféricos da capital mineira2.

São justamente alguns desses bairros de periferia de Belo Horizonte que concentram a maioria dos homicídios cometidos na cidade (Beato Filho et al., 2001). E, por sua vez, uma parte significativa dos assassinatos nesses bairros e favelas responde, direta ou indiretamente, a uma teia de conflitos violentos, as chamadas guerras, entre grupos de jovens armados que coexistem nesses bairros e se relacionam em uma rede intrincada de rivalidades, alianças e retaliações (Rocha, 2017). Especificamente em Belo Horizonte, é relativamente comum a existência de diversos pequenos grupos (ou gangues) em um mesmo bairro ou favela, com localidades nas quais existem mais de uma dúzia de grupos com algum tipo de animosidade ou rivalidade violenta entre si. Essa pulverização de inúmeros pequenos grupos gera um efeito de multiplicação das rivalidades e dos confrontos violentos entre as gangues, que é apontado como um dos principais fatores para a ocorrência de homicídios, sobretudo entre jovens, em Belo Horizonte e nas cidades vizinhas (Cruz, 2010; Rocha, 2015, 2017; Zilli, 2004).

Nesse contexto, o termo guerra é fundamental para se compreender as dinâmicas violentas nos bairros de periferia e favelas de Belo Horizonte, e expressa uma relação de rivalidade violenta entre duas pessoas ou grupos. Essas guerras, que muitas vezes perduram por anos entre grupos de um mesmo bairro, não raro perduram por mais tempo que seus participantes iniciais, e são o pivô de assassinatos e agressões que são cometidos não em grandes conflitos, mas, geralmente, em emboscadas e ataques-surpresa, nos quais a vítima é surpreendida por seus algozes, muitas vezes em uma moto ou automóvel, e morta com disparos de armas de fogo. A cada assassinato cometido, se produz uma nova justificativa para que pessoas próximas à vítima, como seus amigos, familiares e vizinhos, busquem a vingança, ou corram atrás do algoz, em um ciclo de retaliações violentas que se reforça a cada homicídio e que pode se estender por anos.

Possivelmente por influência do contexto carioca e sua cobertura midiática, são frequentes as declarações das polícias e de demais atores do sistema de justiça criminal que atribuem as guerras entre gangues e grupos armados nas periferias e favelas de Belo Horizonte às “disputas de pontos de vendas de drogas”. No entanto, as pesquisas realizadas diretamente com os jovens pertencentes a esses grupos apontam o contrário (Zilli, 2011a e 2011b; Rocha, 2015). Ainda que em muitos casos os jovens envolvidos com  as guerras em seus bairros participem de alguma forma da dinâmica do tráfico de drogas local, a motivação desses conflitos se relaciona muito mais com questões identitárias e morais, sem um viés necessariamente instrumental de tomar um determinado ponto de vendas ou eliminar a concorrência. Pelo contrário, as guerras nas periferias de Belo Horizonte e sua região metropolitana, ainda que sejam potencializadas pela dinâmica de recursos trazidos pelo tráfico de entorpecentes, operam majoritariamente em uma  lógica extremamente local. São rivalidades que se iniciam por desavenças comuns e cotidianas da juventude, como brigas em festas e desavenças provocadas por boatos, que eventualmente culminaram em um homicídio ou agressão, e a partir daí passam a operar em  uma lógica da vingança, e reforçam uma identidade grupal e postura de oposição aos rivais, que é reproduzida para novas gerações. O tráfico de drogas, assim como outros crimes, como roubos e receptação, é frequentemente praticado por integrantes desses grupos ou gangues, e seus ganhos muitas vezes se transformam em armamento e motocicletas utilizados nas guerras, mas esses crimes e seus lucros não são, em geral, a motivação dos conflitos letais (Rocha, 2015; Zilli, 2011a).

Porém, com o fenômeno do surgimento e nacionalização de facções e demais coletivos criminais de maior coesão e alcance, a configuração das guerras cotidianas entre um grande número de pequenos grupos locais tem se tornado cada vez mais rara. Essa dinâmica fragmentada que ainda hoje marca a violência letal nas periferias de Belo Horizonte e algumas cidades da região metropolitana tem mudado drasticamente com a presença e influência de facções e grupos criminais de outros estados do sudeste. Neste artigo vão ser focadas principalmente as dinâmicas criminais nas regiões do sul de Minas (como Três Corações, Passos, Elói Mendes, Alfenas, São Sebastião do Paraíso e Itajubá) e no triângulo mineiro (principalmente Uberlândia e Uberaba) a partir de uma presença significativa do Primeiro Comando da Capital em um desses municípios do interior de Minas Gerais.

Apesar das negativas sobre a presença do PCC no estado por parte da então Secretaria de Defesa Social de Minas Gerais (SEDS), em 2006 a própria secretaria foi responsável pela inauguração de dois pavilhões exclusivos para abrigar integrantes da facção paulista na Penitenciária de Segurança Máxima Nelson Hungria, localizada no município de Contagem, Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). A maioria dos detentos transferidos para esse pavilhão era oriunda justamente de municípios das regiões do sul de Minas Gerais, do Triângulo Mineiro e do Alto do Paranaíba, que haviam se identificado – ou sido identificados pelos atores do sistema de justiça criminal – como integrantes do primeiro comando da capital (Oliveira et al., 2017; Ribeiro et al., 2019). 

Nos anos seguintes, foram várias as reportagens de jornais e demais veículos de mídia, especialmente das regiões do Triângulo Mineiro e sul do estado, que relatavam ações que supostamente envolviam integrantes do PCC, sobretudo rebeliões em prisões do interior3, queimas de ônibus4, assassinatos de agentes penitenciários5 e ações policiais contra pessoas identificadas como integrantes da facção paulista. De acordo com Marques (2019), em pesquisa recente sobre a presença da facção paulista no Triângulo Mineiro, a chegada do PCC ao município de Uberlândia se deu por volta do ano de 2010, por meio de pessoas oriundas de São Paulo, que então passaram a difundir as ideias e metodologias da facção. Como resultado da rápida expansão do Primeiro Comando da Capital em Uberlândia, segunda cidade mais populosa de Minas Gerais, logo os integrantes do coletivo criminal estavam presentes em vários bairros periféricos e presídios da região do Triângulo Mineiro. Esse processo levou a uma organização das dinâmicas criminais nacidade de Uberlândia, já que se deu ao mesmo tempo uma redução dos conflitos entre grupos criminais locais e uma maior adesão ao coletivo mais amplo do PCC. Por outro lado, o tráfico de drogas na cidade se sofisticou: nos últimos anos indivíduos oriundos de Uberlândia têm sido presos e mortos em grandes assaltos contra agências bancárias no interior de outros estados6, o que pode indicar uma maior entrada dos criminosos do Triângulo Mineiro na dinâmica do chamado “novo cangaço”, ações que não raro também são empreendidas por integrantes do primeiro comando da capital (Aquino, 2019 e 2020). 

Ao se tratar do Espírito Santo, as peculiaridades são outras. Trata-se de uma unidade federada que não tem as dimensões territoriais de São Paulo e Minas, que difere do Rio de Janeiro e sua peculiar história, e que apresenta o menor produto interno bruto da região sudeste (tabela  1).

Territorialmente pequeno e economicamente discreto, o Espírito Santo não é um atraente mercado consumidor em vários aspectos, inclusive para as economias ilegais. Em termos de tráfico de entorpecentes, o fato de o estado ter portos gera certo interesse e são comuns apreensões de insumos e da própria cocaína escondidos dentro de blocos de rochas ornamentais, produto muito exportado pelo estado7. Ficou famoso o caso do “Helicoca”, um helicóptero pertencente ao senador mineiro Zezé Perrella e seu filho, que foi abordado pela Polícia Federal no município capixaba de Afonso Cláudio com 445 quilos de cocaína provenientes do Paraguai. Mesmo nesse aspecto, o Espírito Santo concorre com os estados do nordeste, para onde vem convergindo atividades criminosas de exportação de entorpecentes, como apontam pesquisas e investigações policiais. Sintomático que o piloto do “Helicoca” apareça em uma investigação acerca do tráfico internacional de entorpecentes no estado de Pernambuco8.

Apontar esses elementos não significa ignorar a presença das grandes facções criminosas no estado, em especial na Região Metropolitana da Grande Vitória, como indicam investigações, pesquisas e a própria convivência com indivíduos ligados ao “mundo do crime”9. Inobstante sua descrição territorial, populacional e econômica, o Espírito Santo figurou durante anos como um dos estados mais violentos do Brasil, ocupando com frequência o segundo lugar no ranking nacional de homicídios por unidade federada, realidade que somente começou a seguir trilha inversa no ano de 2009. E cair significativamente. Quando observamos apenas a taxa de homicídios entre jovens homens entre 15 e 29 anos, constatamos que o estado saiu de absurdos 202,8 homicídios por 100 mil habitantes nessa faixa etária, em 2008, para ainda absurdos 115 em 2018. A título de comparação, tomando como referência os mesmos anos e faixa etária, Minas Gerais teve no período uma redução de 74,2 por 100 mil/hab. Para 59 por 100 mil/hab. (Atlas da violência, 2020, p. 8).

A trajetória de queda consolidada de quase uma década nas taxas de homicídios foi interrompida em 2017 no episódio da paralisação das atividades da polícia militar em fevereiro daquele ano10. Segundo dados do Atlas da violência (2020), a taxa de homicídios que em 2016 havia sido de 32 por 100 mil habitantes pulou para 37,9 no ano seguinte, ainda assim abaixo das taxas anteriores a 2014. Em 2018 voltou a cair, chegando a 29,3 por 100 mil/hab. Os dados do fórum brasileiro de segurança pública (Anuário, 14/2020) apontam um quadro diferente no ano de 2020. Comparando os dados do primeiro semestre de 2019 com os dados do primeiro semestre de 2020, o aumento dos homicídios dolosos foi de 19,1% em relação ao número absoluto de vítimas (p. 20). Na classificação “mortes decorrentes de ação policial” a variação positiva foi de 44%. Já em “mortes violentas intencionais”,classificação que nos dá uma visão mais completa do quadro geral, a variação indica um aumento de 18,5%, atrás apenas da Paraíba, com 19,2% (p. 19). Manchetes de um dos principais jornais do estado já começam a sinalizar o temor do retorno do “fantasma da violência”: “ano fecha com aumento de 11,5% no índice de homicídios no ES”11; e “triste rotina: ES inicia o ano com mais de 100 assassinatos”, detalhando em letras menores que “em janeiro, houve aumento de 15,79% nos crimes dolosos em relação ao primeiro mês do ano passado”12.

No plano das hipóteses para explicar esse aumento dos homicídios em terras capixabas, não se pode ignorar os efeitos da pandemia de covid-19. As quedas na comercialização de entorpecentes decorrentes das medidas de isolamento físico e social são apontadas por especialistas como possível causa de maior conflito entre traficantes e como resultado de mais homicídios13. Ainda em relação ao Espírito Santo, a permanência dos efeitos da paralisação das atividades da Polícia Militar, que se tornou conhecida como “greve da PM”, também pode ser uma hipótese a ser explorada. O ano da greve registrou uma taxa de homicídios fora da trajetória de queda que vinha sendo observada, com uma distribuição atípica das mortes pelo território capixaba quando comparado a anos anteriores. Paralisações de policiais militares foram registradas em outros estados da federação e em alguns casos com consequências mais graves, como no Ceará. Eventos dessa natureza estão dentro do escopo do retorno do pensamento abertamente autoritário ao palco principal da política nacional. A PM é, hoje, um espaço privilegiado de disseminação das ideias que sustentam esse novo pensamento abertamente autoritário.

O elevado número de homicídios no estado do Espírito Santo até 2009 pode ser explicado por uma combinação de vários fatores: um histórico de violência na região; baixa capacidade do estado para implementação de políticas públicas de todos os tipos, inclusive de segurança; periferias que surgiram em uma época de grandes investimentos industriais e que acabaram abandonadas com o fim desses ciclos de investimento; forte atuação de grupos de extermínio; e um período de forte desorganização da máquina pública e das estruturas de segurança contaminadas pela atuação de membros do crime organizado (Costa, 2016). O quadro de 2020 sugere realidades diferentes. Os capixabas atualmente vivem sob normalidade institucional e equilíbrio econômico, apesar das afetações diversas geradas pela pandemia de covid-19. Além das influências das grandes facções nacionais, das disputas de territórios e pontos de droga, demanda mais estudos a hipótese muito plausível de que a guerra, conforme descrito nas periferias de Belo Horizonte,  também seja um elemento considerável no porcentual total de homicídios. No dia a dia entre presos e principalmente internos do sistema socioeducativo, o termo guerra é costumeiramente utilizado para explicar episódios de violência de maneira muito fiel à descrita por Rocha (2015) e Zilli (2011a).

A LETALIDADE POLICIAL E O PAPEL DO ESTADO NAS MORTES DE JOVENS

Outro elemento central quando se discute a vitimização de jovens por violência letal no Brasil é a letalidade das polícias e o papel do Estado em uma parcela dessas mortes. Tanto o Estado do Espírito Santo como o de Minas Gerais registraram um aumento significativo nos números de mortes decorrentes de intervenções policiais na última década, ainda que, como visto, os demais homicídios estejam em redução nestes estados.

A letalidade policial no Espírito Santo é um tema de ampla discussão. Os dados no mínimo confusos relativos a mortes perpetradas por policiais registradas em diferentes órgãos, por diferentes processamentos, somados aos números elevados de “mortes por causas externas cuja intenção é indeterminada”, obscurecem a compreensão da questão e geram insegurança, tendo em vista, ainda, um histórico de forte atuação de grupos de extermínio compostos de policiais, mais bem exemplificados na famigerada Scuderie Le Cocq, organização muito presente em diversas investigações sobre o crime organizado no estado no início dos anos 2000, quando o governo federal cogitou uma intervenção federal no Espírito Santo. Bittencourt e Dadalto (2017, p. 193) sugerem que a violência policial entre os capixabas possui “uma face clandestina, uma cifra oculta”. Considerando dados oficiais de mortes decorrentes de intervenção policial de policiais civis e militares em serviço e fora de serviço, o Espírito Santo contabilizou 46 vítimas em 2017 e 47 em 2018. Mas, em 2017, 25 dessas mortes resultaram da atuação de policiais militares fora de serviço. Bastante curioso que, no que se refere a policiais militares em serviço, nesse ano, foram 17 mortes. Já em 2018, a lógica se inverte. São 27 vitimados por policiais militaresem serviço e 16 fora de serviço (Anuário 2019, p. 56). Enquanto isso, as mortes violentas por causa indeterminada aumentaram 75,2% no Espírito Santo entre 2008 e 2018. Em 2017, foram 143 mortes, enquanto em 2018 foram 261 (Atlas 2020, p. 82). Sem distinguir policiais em serviço e fora de serviço, houve um aumento de mortes decorrentes de intervenção policial da ordem de 44% entre o primeiro semestre de 2019 e o mesmo período de 2020, o que condiz com um maior número de operações da Polícia Militar com o objetivo de conter o crescimento dos homicídios (Atlas 2020, p. 24). Por outro lado, o número de mortes decorrentes de intervenção policial em 2018, que no Anuário 2019 registra 46 mortes, no Atlas 2020 encontramos 30, que é o valor que condiz com os dados do observatório da Segurança Cidadã do Instituto Jones dos Santos Neves, autarquia do governo capixaba. Segundo dados desse instituto, 2020 fechou com 41 mortes decorrentes de ação policial. O maior valor nos últimos cinco anos segundo dados do instituto, mas não do Anuário. Ainda segundo dados do Observatório de Segurança Cidadã do Instituto Jones, entre 2016 e 2020, 82% das mortes decorrentes de intervenções policiais foram de jovens entre 15 e 29 anos.

De tudo isso, podemos concluir dois pontos: existem problemas quanto à confiabilidade dos dados de vítimas decorrentes de intervenções policiais no Espírito Santo e, independentemente dos números corretos ou não, os jovens capixabas são significativamente mais vitimados por essas intervenções.

Se no Espírito Santo os dados sobre a letalidade policial são processados e acompanhados por várias instituições, o que torna esses dados palcos de debates e disputas, em Minas Gerais o problema é o oposto. As ocorrências de letalidade e vitimização policial são sistematizadas e analisadas pelo Observatório de Segurança Pública Cidadã (OSPC), que, apesar de produzir relatórios e bases de dados sobre ocorrências de letalidade policial, compartilha esse material apenas com entidades da área da segurança pública em Minas Gerais. Ou seja, ao contrário de todos os outros estados da região sudeste, Minas Gerais não disponibiliza nenhum dado sobre letalidade policial para consultas ou análises públicas.

Em uma temática como a letalidade policial, à qual as instituições policiais são geralmente refratárias, a não divulgação de dados oficiais sobre mortes cometidas pelas polícias dificulta enormemente a realização de pesquisas e levantamentos. Ainda assim, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública tem conseguido acesso aos dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp/MG), que apontam que as polícias mineiras em 2018 mataram 151 pessoas, uma taxa de 0,7 morte por 100 mil habitantes, inferior às taxas de letalidade policial dos outros três estados do sudeste.

Em pesquisa recente com dados da própria Sesp/MG, Zilli e demais pesquisadores apontam que Minas Gerais registrou 821 mortes decorrentes de intervenções policiais entre os anos de 2009 e 2017. No período analisado, as mortes cometidas pelas polícias no estado saltaram de 50 no ano de 2009 para 170 mortes por intervenção policial em 2017, um aumento de 240% em um intervalo de nove anos.

A região metropolitana de Belo Horizonte concentrou na última década o maior número de ocorrências de letalidade policial no estado. Três áreas especificamente concentraram a maior parte das mortes cometidas por policiais: as regiões norte e centro-sul de Belo Horizonte, assim como toda a extensão da divisa entre Belo Horizonte e o município de Contagem (Zilli et al.; 2020). Os pesquisadores também apontam que, nas ocorrências de letalidade policial analisadas, 32% dos mortos e feridos em decorrência de intervenções policiais em Minas Gerais foram atingidos por disparos de arma de fogo nas regiões das costas e da cabeça, o que pode indicar não um cenário de confronto, mas de mortes cometidas em situação de fuga ou, ainda, execuções. Frente a esse dado alarmante, é essencial reforçar a importância de publicização de dados das mortes cometidas por policiais militares e civis em Minas Gerais, informação essencial para que a sociedade civil possa acompanhar e debater a legitimidade das estratégias de segurança pública adotadas no estado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De forma geral, até recentemente Espírito Santo e Minas Gerais se encontram em uma situação relativamente similar. Os dois estados vêm de uma intensa queda nos homicídios na última década, e possuem dinâmicas de homicídios e da criminalidade violenta em geral que respondem mais às configurações dos  grupos e dos mercados ilegais locais do que a disputas pelo controle de rotas e outros elementos estratégicos para a disputa entre facções, que marcou grande parte das periferias brasileiras desde a ruptura entre o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital em 2016 (Manso & Dias, 2018). Chega a ser irônico que o Espírito Santo e Minas Gerais tenham sido menos afetados pela atuação das facções do Rio de Janeiro e São Paulo do que estados muito mais distantes, como Amazonas e Ceará.

Espírito Santo e Minas Gerais também possuem em comum um intenso aumento da letalidade de suas forças policiais, em consonância com grande parte dos estados brasileiros (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2019). Talvez por existirem unidades da federação nas quais as polícias matam ainda mais pessoas por ano, pouca atenção tenha sido dada ao aumento da letalidade das forças policiais nos dois estados, mas gostaríamos de destacar a intensidade do aumento das mortes cometidas por policiais em ambos os estados. A intensidade do aumento da letalidade das polícias, de 44% entre 2019 e 2020 no ES, e de 240% entre 2009 e 2017 em MG, indica que possa haver tanto um descontrole por parte dos governos estaduais sobre a atuação de suas polícias, como uma naturalização das mortes cometidas por seus agentes, majoritariamente contra jovens pretos e pardos moradores de bairros periféricos (Zilli et al., 2020).

No ano de 2020, marcado pela pandemia de covid-19, os índices de homicídios dos dois estados seguiram trajetórias distintas. Enquanto Minas Gerais manteve a tendência de queda, com redução de 6,4% no número de assassinatos em 2020 em comparação com o ano anterior, o Espírito Santo teve um aumento de 12% no número de homicídios14. São necessários mais estudos para que possamos compreender como a pandemia e as medidas de isolamento social para combatê-la afetaram as dinâmicas de homicídios e dos mercados ilegais. As trajetórias opostas das mortes violentas intencionais em Minas Gerais e Espírito Santo durante o primeiro ano da pandemia de covid-19 evidenciam como um mesmo fenômeno pode ter efeitos distintos em dinâmicas criminais que, ainda que sejam parecidas em determinados pontos, apresentam características e configurações locais muito específicas.

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