Ser mulher - episódio 17 (programa)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Papo na Laje é um programa disponível em plataformas virtuais, como o Youtube, e na TV fechada (canal 6, Claro/NET) desenvolvido pelo Brasil de Fato em parceria com a TV Comunitária do Rio de Janeiro.

Autoria: Patrícia Ferreira, Clara Polycarpo, Clara Bastos, Gabriel Nunes e Sonia Fleury.
Ingridy Maura e Thamires Moreira relatam os dilemas da maternidade para a apresentadora Dani Câmara - Stefano Figalo, Papo na Laje

No episódio "Ser Mulher" da série "Papo na Laje", as convidadas Thamires Moreira, auxiliar de cozinha da zona oeste, e Ingridy Moura, cabeleireira e manicure de Benfica, bairro da zona norte conversam com a atriz e apresentadora Dani Câmara sobre a sobrecarga física e mental do cuidado com os filhos e dos afazeres domésticos. Tudo isso ao mesmo tempo em que buscam realizar os sonhos que foram adiados pela gravidez na adolescência.

Análise discursiva[editar | editar código-fonte]

O Grupo de Análise do Discurso do Dicionário de Favelas Marielle Franco trabalhou a análise das principais formações discursivas identificadas nesse episódio, considerando o discurso como uma prática social e não como atividade meramente individual de quem o enuncia. Assim a estrutura social se manifesta, delimita e molda o discurso, como também é por ele modificada.

Participantes: Thamires Moreira e Ingridy Moura.

Local e data: Complexo do Alemão, 2022.

Ser mulher, ser mãe[editar | editar código-fonte]

Nesse episódio, induzidas pela questão inicialmente colocada pela entrevistadora, a partir da condição de ser mãe. Ao tratar ser mulher e ser mãe como equivalentes,  ocultam-se as representações de outras formas de existência da mulher.

No entanto, ser mulher e ser mãe é a realidade de muitas jovens nas favelas e periferias.

Para parte dessas jovens, a realidade que se apresenta cedo vem na ordem “namorar, engravidar e a vida desandar”, assim falam as entrevistadas  que se tornaram mães ainda na adolescência e, para elas, ser mãe foi deixar os sonhos para trás.

“Eu tinha o sonho de ser atriz!”

Esse pode ser um sonho comum em uma adolescência vivida no Rio de Janeiro, influenciada por uma ideia de glamour do universo do espetáculo na cidade que é um polo de produções artísticas no Brasil. As relações entre sonho e realidade aparecem nos discursos e evidenciam as impossibilidades dos sonhos diante da realidade quase predestinada.

O episódio apresenta duas visões distintas da maternidade: a mãe que tem que ficar com os filhos sempre, na qual o cuidado dos filhos é sua responsabilidade praticamente exclusiva;  e, a mãe que é apartada dos filhos pelo medo de lhes tirar as oportunidades, que o pai, com melhores condições financeiras, supostamente pode prover.

De um lado, temos o peso da responsabilidade com os filhos sobre a mãe:  “O filho é sempre da mãe”. Por outro lado, o peso da dor, da saudade e a necessidade de proteger os filhos de vivenciar agressões à mulher proferidas pelo pai.

Outro elemento importante que aparece é a necessidade de uma rede de apoio ao cuidado dos filhos. O emprego formal se torna uma impossibilidade pela falta de uma rede de apoio para o cuidado dos filhos. O cuidado é compartilhado por parentes, vizinhas, amigas para dar conta da carência da rede formal (creches) que não cobrem efetivamente os horários comerciais. A manutenção financeira da família se torna uma luta diária, na qual o trabalho tem que ser feito em casa para dar conta do sustento e do cuidado com os filhos.

Nos dois casos, as oportunidades criadas pelas entrevistadas para o trabalho acabam se configurando no universo do cuidado que vem com a maternidade -  a necessidade de cuidar, de alimentar, de limpar, esse outro que é dependente de você.

A Thamires conta que se vira com vários tipos de trabalho para buscar o sustento da casa, mas que o seu encontro é no universo que  envolve o preparo de alimentos, no qual ela passa a entender a comida como prazer,  querendo investir na formação em Gastronomia, elaborando outra forma de desejo de crescimento pessoal e profissional.

A Ingridy, por sua vez, vive separada dos filhos, e dentre os “corres” que faz, cuidar dos outros é a sua principal fonte de renda. Ela relata que, por falta de suporte jurídico e a ideia de que poderia tirar as oportunidades dos filhos, perdeu a guarda deles para o pai. Que o seu sonho é estar com os filhos e seu desejo é ser técnica em enfermagem, profissionalizando esse fazer. O cuidar torna-se desejo.

Os discursos evidenciam a distância entre vontade e realidade, entre sonho e desejo.  

A centralidade do cuidado na vida das mulheres pretas[editar | editar código-fonte]

Ao tratar a questão de gênero (“ser mulher”) com as expectativas, portanto, do que é “ser mãe”, as entrevistadas - conduzidas pela entrevistadora como argumento - colocam o “cuidado” como central em suas rotinas e perspectivas de vida. Na verdade, quando falamos de maternidade, o cuidado é, de fato, central: cuidar dos filhos, cuidar da casa e, sob um casamento, do próprio marido. É o que reforça Thamires ao considerar as imposições dos papeis de gênero em nossa sociedade: “Na próxima encarnação, eu quero ser pai. Por mais que o pai seja ótimo, cumpra com todas as obrigações, o filho sempre é da mãe. Isso é fato. Quando a gente é mãe, está o tempo todo cuidando”.

Em razão dessa centralidade considerada, o cuidado passa a fazer parte não apenas da rotina da casa, mas também das relações com o exterior e consigo mesmas. Como relações de trabalho, por exemplo, Thamires se identifica atualmente como manicure e pedicure, profissão que tem como atividade o cuidado de outras pessoas a partir da relação com a higiene e a beleza. Ingridy, por sua vez, expressa que o cuidar se tornou sua profissão, formando-se técnica em enfermagem para atendimento a idosos, profissão intrinsecamente relacionada aos cuidados com a saúde. Ao cuidar dos outros, seja seus próprios filhos ou não, as mulheres se mantêm fixadas ao espaço doméstico, seja sua própria casa ou a casa para quem elas estarão prestando serviço, e limitam seus próprios mundos a atender a terceiros.

Neste sentido, o cuidado também lhes é sentido como uma falta. Apesar de redes de apoio, com marido, familiares e amigos, Thamires, por exemplo, sente falta de ser cuidada. Em um relato emocionante, conta como teve que dar conta de um filho doente enquanto ela também estava doente na correria de hospitais, se sentindo exausta. De tanto cuidar de todo mundo, parece que ninguém cuida de fato dela. O que é uma constante ao considerarmos as relações de gênero no casamento e na maternidade sob o patriarcado. Por outro lado, a Ingridy não cuida diretamente dos seus filhos, pois que a Justiça também não cuidou dela ao retirar a sua guarda. Mesmo que de longe, toda a sua vida é construída para que um dia possa estar com eles e, assim, cuidar de seus próprios filhos. Com isso, o cuidado se faz central também pela sua própria ausência.

Território[editar | editar código-fonte]

Ao se referirem ao seu território de moradia, as duas entrevistadas utilizam nas suas falas noções positivas em relação a esses espaços, contrastando com os discursos hegemônicos que são utilizados na mídia tradicional quando se fala em territórios favelados e periféricos.

Ingridy, moradora de Benfica, na Zona Norte do Rio de Janeiro, diz sentir segurança onde mora: "Gosto de morar aqui, porque eu me sinto em casa. [...] quando eu pego meu ônibus e chego em Benfica, no Manguinhos, na Zona Norte eu fico bem tranquila". Ela ainda pontua que existe um “lado ruim” do território - sem dizer qual é - mas o seu discurso dá ênfase para as noções positivas do lugar, como as pessoas acolhedoras. Usando de referência os discursos da mídia tradicional, que destacam a insegurança, episódios de tiroteio e outros crimes no território, a fala de Ingridy é completamente oposta e joga luz nos aspectos positivos de se morar em Benfica.

Um outro aspecto que as entrevistadas destacam é a rede de apoio que ambas possuem, com amigos, vizinhos e familiares que as ajudam quando é necessário. Thamires, que mora recentemente em Curicica, Jacarepaguá e morou por muitos anos no Complexo do Alemão ressalta a solidariedade que existem nesses territórios entre os moradores: “[...] as pessoas são mais 'povão', elas se preocupam mais com a gente, porque elas vivem a mesma coisa que a gente".

Sonho e Desejo[editar | editar código-fonte]

Adolescentes têm sonhos comuns a esta faixa etária, como o de ser atriz, por mais distante que isso esteja da realidade de quem vive nas favelas e periferias. A gravidez precoce, fruto dos desejos e afetos, vem exterminar os sonhos e substituí-los pela dura realidade de se tornar responsável pela casa e pela vida dos filhos, pelo cuidado da família. Essa realidade muitas vezes vem acompanhada por agressões e violências, pela falta de apoio para buscar uma saída, seja da parte do Estado, seja por parte de familiares e conhecidos. Ao contrário, muitos tentam convencer essas jovens mulheres que já não tem mais jeito, não há saída para ela e para seus filhos, sua sina já está traçada.

Reencontrar o desejo é um processo de reencontro consigo mesma, muitas vezes fruto da separação que rompe com o domínio masculino. Outras vezes, esse reencontro se dá como parte da trajetória mesma da maternidade e das lutas pela sobrevivência.

Diferentemente do sonho adolescente que foi interditado, o desejo da mulher que se constrói nas suas lutas é algo que se coloca como uma perspectiva, uma possibilidade que exige esforço e dedicação para ser alcançada. Se o desejo é da esfera do real e os sonhos do âmbito da fantasia, ambos nunca deixam de existir, sendo permanentemente reconstruídos, em qualquer fase da vida.

Silêncios - O que não foi dito no episódio…[editar | editar código-fonte]

O episódio tem como pauta a temática principal "ser mulher". As participantes trouxeram discussões profundas e válidas sobre questões como a maternidade, mas percebemos que, de modo geral, o percurso dessas discussões excluiu inúmeras questões importantes, como por exemplo: debates sobre o papel social da mulher, problematizações quanto aos padrões impostos sobre a ideia de feminino e até mesmo tópicos feministas sobre os direitos das mulheres. Com isso, fica implícito que, no episódio, a questão da mulher fica resumida a uma antiga ideologia sociohistórica que atrela a ideia de ser mulher à ideia de ser mãe.

Pensamos, então, que houve certos assuntos ausentes ao longo do episódio. Através dos discursos, é notável que a vivência dessas mulheres está relacionada a um desamparo que se faz presente através de micro agressões e de sentimentos como impotência, insegurança, etc. Porém, existe, ainda, uma ausência estatal muito forte que não foi mencionada ao longo do episódio. Apesar do enfrentamento de diversas dificuldades cotidianas, as discussões não mencionam nenhum tipo de auxílio governamental que poderia ser propício para estas mulheres, e esta ausência produz um silenciamento assumido pelo Estado. Um exemplo disso se faz presente no relato de Thamires, que, em um posto de saúde com seus filhos, revela não se sentir amparada ou cuidada em momento algum.

O silêncio aqui aparece como uma possibilidade de trabalharmos a incongruência presente nos discursos das mulheres brasileiras, visto que, ao não trazerem questões que remontam uma insatisfação sociopolítica, percebemos como estas faltas também produzem significados e têm consequências reais em suas vidas, como desamparo, apagamentos e silenciamentos constitutivos. Pensamos, então, que estes silêncios estão constituindo sentidos de naturalização de diversos tipos de desamparo. A omissão estatal muitas vezes é naturalizada e estas problematizações são apagadas dos discursos femininos. As questões que foram deixadas de lado ao longo do episódio aparecem como não-ditos que também constituem parte das lutas diárias dessas mulheres periféricas.

O episódio[editar | editar código-fonte]

Ficha Técnica[editar | editar código-fonte]

Direção Colegiada: Moysés Corrêa

Sistema Brasil de Fato RJ

Coordenação Geral: Rodrigo Marcelino

Coordenadora Editorial: Mariana Pitasse

Produção Executiva: Amanda dos Santos Costa

Direção e Roteiro: Dieymes Pechincha

Produtora de Conteúdo: Sintropia Produções

Direção de Fotografia: Chico Brun

Edição: Tuany Zanini

Som e Trilha Sonora: Chico Brun

Still: João Victor Portugal e Stefano Figalo

Programação visual: Giulia Santos e Juliana Braga

Pesquisa: Clivia Mesquita

Reportagem: Jéssica Rodrigues

Operadores de câmera: Chico Brum e Tuany Zanini

Operador de Drone: Gabriel Moncada

Assistência de câmera: Rafaela Miranda

Correção de cor: Chico Brum

Designer de som: Chico Brum

Produção de locação: Amanda dos Santos Costa

Motorista: Pedro Freitas - Trips Tour

Conselho Político: Breno Rodrigues, Caroline Barbosa Rufino, Otavio Cleverson Portilho, Dieymes Pechincha, Dulce Pandolfi, Fernando Veloso, Itamar Silva, Leonardo Nogueira, Nilza Valéria, Ricardo Pinheiro, Rodrigo Marcelino, Taiso Motta, Tayane Cardoso e Tuany Zanini

Associação Lima Barreto

Educação e Comunicação Captação de projetos: Fernando Veloso

Coordenação Administrativa: Aline Bernardino

Agradecimentos: Instituto Raízes em Movimento e Espaço Teto Verde Favela

Ver também[editar | editar código-fonte]