Fala um líder da República de Paraisópolis (entrevista)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Autoria: Gilson Rodrigues (entrevistado) e Douglas Vieira (entrevistador)[Notas 1].

Introdução[editar | editar código-fonte]

O Brasil passa dos 80 mil mortos por Covid-19 e, nas casas da classe média, as pessoas discutem se vão ou não para a rua. Os dados mostram que os números do isolamento social caem e, logo nas primeiras frestas, um grande número de pessoas decide que a rua é um lugar seguro outra vez. Quem não se lembra do tal bar no Leblon, que no dia 3 de julho aparentava a rotina de uma noite comum de verão, com mais de uma centena de pessoas aglomeradas nas calçadas? A rotina começa a procurar os rastros do novo normal. Dez dias depois, em 13 de julho, o relógio marcava 14h56 quando Gilson Rodrigues pediu para interromper por um minuto a conversa telefônica que estava tendo com a “Cult”.

“Boa tarde, comunidade. Primeiro, muito obrigado por terem vindo até aqui. Aqui é o Pavilhão Social, uma das seis bases de atuação nossa aqui na comunidade. Ali, acontece o projeto Mãos de Maria, são mais de 10 mil marmitas sendo distribuídas por dia. Ali fica a coordenação, ali embaixo fica a ambulância, e ali do lado uma fábrica de máscaras…” A interrupção durou cerca de oito minutos, tempo em que ele explicou aos moradores de Paraisópolis, uma das favelas mais conhecidas e populosas do Brasil, detalhes da estratégia local de enfrentamento à pandemia.

Na zona sul de São Paulo, a comunidade conta com cerca de 100 mil habitantes – apenas 324 municípios dos 5.570 que formam o Brasil ultrapassam essa marca, segundo dados de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Não é estranho, portanto, descobrir que, para os moradores de Paraisópolis, Rodrigues é o “prefeito”. Aos 36 anos, ele está em seu terceiro mandato, ou há 10 anos, à frente da União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis, fundada há 35 anos. Porém, diante dessas mais de três décadas, é agora que a visibilidade da associação foi amplificada – no momento em que o Brasil, sem atuação do Ministério da Saúde no enfrentamento, atravessa uma pandemia.

Fruto dessa ausência, o trabalho que Paraisópolis tem feito repercute inclusive no exterior, em jornais como The Washington Post. Rodrigues explica que foram 34 dias para pôr de pé toda a operação, que, além das ações assistenciais – como distribuição de cestas básicas, marmitas e material de higiene e de proteção –, conta com uma infraestrutura de saúde. Para as duas frentes, há um grande número de pessoas. “A gente tem hoje 1.450 pessoas voluntárias de dentro de Paraisópolis, 201 pessoas voluntárias de fora e 311 pessoas com algum tipo de remuneração, seja bolsa auxílio ou salário – sendo que 95% delas são da comunidade. Além disso, tem um trabalho a nível nacional, em 14 estados, que também demanda nossa coordenação aqui, com uma orientação para o trabalho ou para a captação de recursos, distribuição de materiais”, conta Rodrigues.

O resultado é uma estrutura em Paraisópolis que conta com uma ambulância permanentemente à disposição dos moradores – já foram três, no início da pandemia –, dois médicos, quatro enfermeiros e dois socorristas. Todos eles são serviços contratados pela União dos Moradores e do Comércio, que também converteu duas escolas da comunidade em centros de acolhimento para receber pessoas sintomáticas que não têm como se isolar dos outros moradores de suas casas. 

Iniciativas como a casa de acolhimento impressionam inclusive quem vem da área da saúde, como o médico sanitarista Arthur Chioro, mestre e doutor em saúde coletiva e professor da Escola Paulista de Medicina, da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp): “Deixa eu explicar a importância do que eles fizeram. Eu tenho atendido na unidade de Covid do Hospital São Paulo e diagnostiquei um caso leve, estava no terceiro dia e precisava completar os 14 de isolamento. Eu falei assim: ‘Você vai tomar líquido, comer bem, ficar de repouso em casa até completar mais 11 dias. Estou te dando um atestado e você vai ficar em casa, isolado em um quarto, tira todo mundo de perto, pega toalha separada, utensílios domésticos…’. O cara olha para mim e diz: ‘Doutor, você está de sacanagem? Morando oito pessoas em casa, não tem nem como. É uma sala, quarto, tem mais um banheirinho e a cozinha, não tem como’. Essa é a situação”, diz Chioro, que foi Ministro da Saúde (2014-15) no segundo mandato de Dilma Roussef.

Nas ações de Paraisópolis, assim como ocorre em todas as favelas e bairros periféricos do Brasil, o desafio não é atravessar a pandemia. É saber, segundo as palavras de Rodrigues, que lá não existe um “novo normal” à espera: “Neste momento em que são criadas hashtags como #onovonormal, nós ainda estamos buscando o nosso normal, porque não é normal que na favela falte água, que o serviço do Samu [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência] não venha aqui, que a gente esteja sofrendo mais nessa crise com a questão do desemprego e da fome e que isso tenha aumentado a violência na favela. Nós sofremos para além das questões da saúde, e vamos continuar sofrendo, porque falta por parte do poder público criar uma política efetiva para a favela”. 

Entrevista[editar | editar código-fonte]

Quando e como vocês começaram a se preparar para enfrentar a pandemia em Paraisópolis?

Nós iniciamos um processo no dia 19 de março e demoramos 34 dias para colocar todas as operações de pé, desde a contratação de ambulâncias até a transformação de duas escolas em casas de acolhimento para isolar as pessoas com Covid. Começamos distribuindo 50 marmitas e hoje estamos distribuindo 10 mil, montamos um projeto de telemedicina, outro de apoio a refugiados, fizemos um conjunto de suporte para o comércio local e distribuímos mais de 32 mil cestas básicas e cartões de vale-alimentação. Criamos uma condição mínima para que o morador pudesse se proteger. E a gente constatou efetivamente o abandono do Estado – nada aconteceu a não ser mensagens de parabéns, que, se fosse fisicamente, seria aquele tapinha nas costas. 

Como vocês definiram as ações? 

Fomos olhando para a nossa realidade. Paraisópolis é um território muito grande, são 100 mil pessoas. Sou chamado de prefeito e nossa primeira perspectiva é que, diante de uma pandemia em que não poderíamos fazer reuniões, aglomerações, teríamos que ter mais “prefeitos”, mais gente para cuidar uns dos outros. Então montamos uma grande rede de solidariedade mapeando todo o bairro e identificando voluntários que pudessem ser o que chamamos de “presidentes de rua”. Cada um monitora 50 casas, são 656 presidentes. Foi uma coisa de intuição, do que foi acontecendo a partir da nossa necessidade de organização e, depois disso, a gente somou esforços com os agentes comunitários de saúde [profissionais do Sistema Único de Saúde, SUS, que atuam cobrindo determinado território dentro do próprio bairro, visitando a casa e monitorando a saúde dos moradores]. Percebemos que já existia um trabalho de acompanhamento nas casas onde a rede do SUS cobre, e que trabalhar em conjunto com eles facilitaria, porque os agentes já sabem onde estão os idosos e os doentes crônicos e ter essa informação nos ajudaria no monitoramento. 

Os hospitais eram um recurso apenas quando era um paciente realmente grave?

Sim, temos três Unidades Básicas de Saúde (UBS) e uma Assistência Médica Ambulatorial (AMA) na região de Paraisópolis e estabelecemos uma parceria com elas e com a instituição que administra, que é o Hospital Albert Einstein, parceiro também no projeto da casa de acolhimento. A gente contou com o apoio das unidades e dos profissionais de saúde, sempre contamos com eles no nosso dia a dia. 

Quantas pessoas cabem nessas casas de acolhimento? 

Somando as duas, 520 pessoas. Não sei o número hoje, mas deve ter uns 40, 50 acolhidos e não chegou a estar lotado em nenhum momento.

É inevitável pensar em como esta pandemia, para além das questões sanitárias, expôs de maneira angustiante a desigualdade social. 

A situação da população das periferias é de muito mais vulnerabilidade, mas também de muito mais solidariedade do que na sociedade em geral. A gente não consegue se proteger da mesma forma que a população com casas mais organizadas, com acesso a boas condições de higiene, produtos de limpeza. O álcool em gel era praticamente um produto de luxo em um primeiro período, e as máscaras eram inviáveis de serem compradas. A população precisava escolher se comprava comida ou se buscava proteção. E a maioria na periferia sofre com falta de água. A população está muito exposta e de várias maneiras.

As máscaras distribuídas são vocês mesmo que fazem? 

Nós temos um projeto, o Costurando Sonhos Brasil, que capacita em corte e costura as mulheres em vulnerabilidade. Na pandemia, elas estão fazendo máscaras, distribuímos mais de 70 mil. Nesta semana, vamos distribuir mais 100 mil. Nós atendemos, por semana, 45 presidentes de rua e suas famílias. É uma rotina bastante intensa, com 6 mil mensagens diárias no WhatsApp. Mas a gente está feliz porque está dando resultados.

Como vocês receberam o slogan “Fica em casa”? 

A gente faz parte de uma população em que a maioria trabalha em serviços essenciais. Ou seja, durante o fechamento, essa população precisou trabalhar – quem não foi demitido – e lotou os ônibus e metrôs deste país. A periferia estava indo trabalhar para garantir que aqueles que estavam em casa pudessem continuar lá. É uma grande contradição. Neste momento em que são criadas hashtags como #onovonormal, nós ainda estamos buscando o nosso normal, porque não é normal que na favela falte água, que o serviço do Samu não venha aqui, que a gente esteja sofrendo mais nessa crise com a questão do desemprego e da fome e que isso tenha aumentado a violência na favela. Nós sofremos para além das questões da saúde, e vamos continuar sofrendo, porque falta por parte do poder público criar uma política efetiva para a favela. 

Tem um novo normal para emergir nas favelas? 

A gente continua mais vulnerável e, passada a questão do coronavírus, não acreditamos em uma pós-pandemia que não tenha começado agora. Para mudar a realidade da favela, teríamos que ter começado já, porque depois vem uma crise e tudo se justifica. São dois países: um Brasil que fala de Alphaville e um que fala de Alfavela, um de pessoas que podem ter acesso e outro em que falta água e as pessoas moram em córregos, um que quer dividir a cidade em muros e outro que só quer ter a vontade de usar um parque. Esse novo normal, na favela, é fake news, assim como o “Fica em casa”, a quarentena e o home office

E daí a necessidade de uma estratégia própria de enfrentamento… 

A favela foi largada à própria sorte, então tínhamos que achar alternativas. O que vimos foi que a maioria das pessoas que morreu morava em favelas e, neste momento, existe um relaxamento da quarentena e a abertura do comércio. Dá, mais uma vez, a sensação de que as 14 milhões de pessoas que vivem em favelas neste país não valem nada. Não acredito em uma pós-pandemia de pessoas mais conscientes. Muita gente descobriu a favela, a periferia e seus problemas. Mas continuam em suas bolhas. Temos que sair das redes sociais e começar a praticar, fazer com que as coisas aconteçam, senão vira um discurso bonito e só. A favela precisa do apoio da sociedade, é disso que mais precisamos. O próximo período é de agravamento da situação social, e é aí que a favela está inserida.

Consegue enxergar algo bom na tragédia atual? 

O principal legado que fica é o posicionamento das favelas como potência – econômica e também de organização, mobilização e criação das suas próprias soluções. As soluções da favela vão sair de dentro para fora, e não de fora para dentro, é isso que estamos mostrando quando a iniciativa começa em Paraisópolis e é replicada em mais de 14 estados. E tem outras ações pelo Brasil. Aqui, em Paraisópolis, fica também a organização das comunidades em que, na pandemia ou não, as pessoas vão poder contar com seus presidentes de rua, com os brigadistas que foram formados. Fica a política de organização, de o morador ser agente da própria transformação, dessa rede de solidariedade em que um pode contar com o outro.

Onde está a raiz dessa atuação de 35 anos da associação? 

Paraisópolis é uma comunidade com um histórico de mobilização e de luta por melhoria. Ninguém foi morar na favela, em cima do córrego e para passar dificuldade, por ter vontade. As pessoas querem morar em um bairro e ter espaço para crescer, se desenvolver. Mas, por ausência de Estado, a gente se tornou a segunda maior favela de São Paulo. Nós não acreditamos que o governo tem criado soluções, então agora, por exemplo, estamos criando um conjunto de iniciativas com o apoio da Fundação Dom Cabral. Nosso principal projeto se chama Pra Frente G10, que é um conjunto ações de formação voltadas para empreendedorismo, para qualificar pessoas para que possam montar seus negócios, suas redes de produção, cooperativas e assim fazer girar cada vez mais recursos dentro da própria comunidade. Temos agora mais de cem dias de combate à pandemia e não há uma solução efetiva dos governos para as favelas. Então, estamos construindo. 

Quando você percebeu sua vocação para líder comunitário? 

Eu não percebi, aconteceu. Nunca quis ser líder de bairro, não era essa a perspectiva que eu tinha para a minha vida. Eu só queria ser gente. Sou filho de uma mulher surda-muda, que teve 14 filhos, que foram adotados. Fui dado para um casal de italianos, mas em seguida minha avó materna me pediu de volta. Fui criado por ela e, depois, pelas minhas tias. Tive contato com minha mãe, mas ela morreu quando eu tinha sete anos. Fui criado de mão em mão e as pessoas diziam que os filhos da muda iam crescer e virar bandidos. Não queria aceitar essa predestinação e resolvi estudar. E aí, na minha escola, acabei me envolvendo em um processo de melhoria. Era uma escola muito ruim e decidi, com outros amigos, criar um grêmio estudantil.

O que vocês fizeram na escola? 

Conseguimos implantar uma biblioteca, uma sala de informática, uma rádio… Fizemos um jornal, fomos um grupo muito ativo. E aí, por conta dessa gestão, outras quatro escolas pediram para a gente ajudar a organizar grêmios, com um outro grande grupo de jovens muito mobilizados. Nisso, vimos que dava para construir ações para o bairro. Até então, o objetivo era a escola. Percebemos que o sonho de morar em um bairro e parar de dizer que morava no Morumbi era possível. Daí criamos um plano para divulgar e transformar Paraisópolis e ajudamos a construir o maior projeto de urbanização que existiu aqui, asfaltando todas as ruas, construindo duas escolas e criando espaços de moradia.

Você tinha quantos anos quando iniciaram o grêmio? 

Tinha 16 anos. E foi a partir desse trabalho que fui parar na União dos Moradores e do Comércio, que tem 35 anos. Fui eleito presidente há 10, estou no terceiro mandato. A eleição se dá pelo voto direto da população. 

Você chegou a trabalhar em outra coisa antes de ser líder comunitário? 

Dei aula de informática, trabalhei em lava-rápido. Com 9 anos, eu já trabalhava e aos 11 tinha três empregos: era catador de bolinha em uma quadra de tênis, também trabalhava em um ferro-velho e aos sábados em uma feira.

Você também é um dos fundadores do G10 Favelas. Como é a atuação nessa frente? Foi a partir dela que replicaram o modelo de Paraisópolis em outros estados? 

Sim, pegando um pouco desse exemplo. Fundamos o G10 Favelas em 2018 e falávamos do potencial de consumo dessas dez maiores favelas, que em 2018 e 2019 faturaram 10 bilhões de reais no seu comércio interno. Nós nos inspiramos no G20 e no G7, dos países mais ricos, e decidimos nos intitular como favelas ricas que podem se transformar através do empreendedorismo. Acreditamos na favela como potência, e não como coitadinha, como marginal. A gente quer dar o protagonismo para o morador ser o agente da própria transformação.

 Notas e referências[editar | editar código-fonte]

  1. Artigo extraído do Outras Mídias pela Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco e publicado originalmente na Revista Cult.