Favela é cidade - a emergência imagética da cidade periférica: mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Edição das 18h21min de 12 de maio de 2019

“Morte afeta imagem da cidade”, dizem especialistas após o assassinato da turista espanhola, cometido pela polícia do Rio de Janeiro na favela da Rocinha (O Globo, 23/10/17). Essa, sem dúvida, é uma expressão da radicalidade da cidade, quando sua diversidade e pluralidade explicitam sua potencialidade e fragilidade. 

Na verdade, a existência da favela está na origem do projeto urbano que é sintoma do modelo de desigualdade que rege a sociedade.

Pode-se dizer que ela surge, há mais de cem anos, no Rio, no contexto da revolução industrial atrasada e da influência cultural ainda da escravidão, que marca a passagem do Brasil rural para o urbano, na formação do “exército industrial de reserva”, para os polos industriais, especialmente, dos maiores centros urbanos, sobretudo da Região Sudeste.

No caso do Rio, há a singularidade da imagem invertida do espelho, na medida em que entre Gávea e São Conrado está a Rocinha, para o Leblon tem o Vidigal, o Cantagalo para Ipanema, Cabritos e Guararapes para Copacabana, Babilônia e Chapéu Mangueira do Leme, Santa Marta para Botafogo e Borel, Formiga e Salgueiro no grande anel em torno da Tijuca.

Tal contexto sócio-histórico da economia e da política exige cuidado muito particular para cada palavra usada na disputa desse universo. Encabeçando alguns exemplos, pode-se falar de tolerância, segurança e poder paralelo, todas estas usadas na tradução do combate à violência. São conceitos usados, via de regra, na busca de se naturalizarem sistêmicas de dominação, sustentados pelos meios de comunicação de massa. Assim, tolerância implica uma falsa concessão para desviar do foco que é a liberdade. Implica também a existência de pessoas ou instituições “superiores” que concedem, como se o processo de conquista da autonomia e da independência fosse inercial e não exigisse esforço e luta. Claro que, nessa direção, segurança se reduz cada vez mais à intervenção policial, limitada ao conflito urbano (que a mídia chama de “guerra”) contra o tráfico de drogas, equivocadamente chamado de poder paralelo, pois se trata de poder econômico, aliás a terceira economia do mundo.

Os tiroteios da cidade são, portanto, provocados pela disputa dessa força acampada no território da ilegalidade, onde está, aliás, o álibi de seu lucro, na agenda do proibido. Ou há outra razão armada? Senão vejamos: quem é central na produção do maior espetáculo cênico do mundo, expresso no Sambódromo, e apenas comparável aos grandes estádios de futebol, onde a ginga do movimento afro incendeia a disputa em forma de drible e gerador do gol?!? Samba, religião e futebol atravessando a avenida, a rua e a praça e o espetáculo.

E a madrugada do amanhecer que coloca em cena a construção do funcionamento laboral e orgânico da cidade, desce de onde?

Sem falar do mutirão da solidariedade, expressão coletiva na busca de solução para a ausência sistêmica do Estado, sobretudo, em seu projeto neoliberal de ser “mínimo”, pois a vocação ampliada do Estado democrático está sendo golpeada.

E então, favela e periferia não são centro? Portanto, cidade que será também cidadania, democracia, quando acesso e direito forem comuns e públicos, da educação básica à saúde preventiva, bem como a cultura da moradia e do ir e vir.

Se o poder das cidades está em grande parte nas favelas, que no Rio de Janeiro representam cerca de 1/3 da população, é urgente a análise dos fatores geradores da desigualdade social nesse tecido urbano. Em que pese o grande esforço da mídia de massas, embora a “guerra” estabelecida entre tráfico de drogas e polícia atinja mais diretamente os empobrecidos, presentes no território de embate, suas consequências, porém, se estendem e se expandem, como diz a manchete do início deste artigo acerca da morte da turista espanhola.  Favela é cidade e é, sobretudo, um grande desafio para a Justiça, para a política e para a gestão pública. O território da ilegalidade permite a instalação da economia ilegal da venda de drogas. Portanto demanda consumo, vendas e conflitos, que são um pacote do tecido urbano. Nesse sentido, a legalização das drogas, parte do contexto da legalidade da favela, na verdade, da cidade. Tais conflitos atingem, antes de tudo, os moradores.

Dos seis milhões e quatrocentos mil habitantes do Rio de Janeiro, cerca de dois milhões estão nas favelas aguardando a legalidade que lhes garanta o mesmo acesso da cidade.

Esse é o debate técnico-jurídico e político em torno da margem da urbanidade.

Autor: Adair Rocha.