Favela Cruzada São Sebastião

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Inserido pela Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco

Sobre

A Cruzada São Sebastião é um conjunto habitacional de influência modernista localizado à margem oeste do Jardim de Alá, no bairro do Leblon, na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, no Brasil. Do conjunto, fazem parte a igreja dos Santos Anjos e a escola municipal Santos Anjos, que foram tombados pela Secretaria Extraordinária do Patrimônio Cultural em 2008.

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História

Foi inaugurada em 29 de outubro de 1955, por iniciativa de dom Hélder Câmara, então secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que convenceu o então presidente da república, Café Filho, a firmar um convênio para construir o conjunto habitacional. O objetivo era fazer, dali, uma espécie de plano piloto, um pontapé inicial para a meta de dom Hélder de acabar em dez anos com as 150 favelas existentes na cidade naquela época.[3] A chave para o primeiro morador foi entregue em 3 de janeiro de 1957.

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Os primeiros moradores eram oriundos da vizinha favela Praia do Pinto, que viria a sofrer um incêndio em 11 de maio de 1969 e seria substituída pelo condomínio Selva de Pedra, em frente ao Paissandu Atlético Clube e à associação Atlética Banco do Brasil. O conjunto de dez prédios e 945 apartamentos foi financiado num prazo de quinze anos, em pagamentos mensais de quantias que correspondiam, nos maiores apartamentos (de dois quartos), ao correspondente a quinze por cento do salário mínimo.

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Cruzada São Sebastião: documentário

Cruzada São Sebastião: da remoção da favela na Lagoa à especulação imobiliária

De: Acervo O Globo

Por Clarissa Stycer*

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“No futuro, não haverá ‘favelados’, não haverá a diferenciação ‘moradores do Leblon’ e ‘moradores da praia do Pinto’. Serão todos, apenas, moradores do Leblon”, afirmou Dom Hélder Câmara, no dia 9 de dezembro de 1955, do alto de uma armação de madeira improvisada no canteiro de obras onde se ergueria a Cruzada de São Sebastião. Por meio de um convênio firmado com o governo federal, então regido pelo presidente da República Café Filho, o bispo não media esforços para levantar o conjunto habitacional localizado entre a Rua Afrânio de Melo Franco e o Jardim de Alah, idealizado para abrigar os moradores da favela Praia do Pinto.

Fincada onde hoje é o condomínio Selva de Pedra, na fronteira dos bairros mais nobres da cidade, Leblon e Ipanema, a comunidade já havia sofrido com um incêndio misterioso em 1956 — esse desastre a atingiria mais duas vezes, em 1957 e em 1969, sendo totalmente destruída no último. A área era alvo de intensa especulação imobiliária, assim como outras favelas da Zona Sul, de onde os moradores eram despejados para ocuparem os subúrbios. Essa finalidade desagradava a Dom Hélder Câmara, que, para atingir a sua meta de tornar o Rio de Janeiro uma metrópole sem favelas até o IV Centenário da cidade, em 1º de março de 1965, defendia a integração e urbanização das comunidades.

— Por eles e por nós. Por eles, porque são em sua maioria domésticas, lavadeiras e operários do bairro. Homens e mulheres que ganham o pão de cada dia nas vizinhanças de suas casas. Como iríamos jogá-los em Vicente de Carvalho ou Parada de Lucas, numa cidade que não tem transportes coletivos adequados? — indagou Dom Hélder em discurso na Praça Antero de Quental, no Leblon, registrado pelo GLOBO em 31 de outubro de 1955, citando bairros da Zona Norte da cidade — Por que haveríamos de querer afastar de nosso convívio os trabalhadores? Por que criar nossos filhos longe deles? A sociedade de hoje precisa combater esse aburguesamento, evitando esse perigoso abismo com a classe operária.

Assim, na sua inauguração, em 3 de janeiro de 1957, chegaram as primeiras famílias das 910 que tinham lugar reservado no conjunto, articulado em dez blocos com sete andares cada um. Construídos com a ajuda dos moradores qualificados da Praia do Pinto, os edifícios tinham cozinha, banheiro, um quarto independente e um quarto e sala, equipados com luz elétrica, fogão a gás e sistema de água e esgoto. No total, 3 mil pessoas foram abrigadas.

— Nós não tínhamos nada e de repente ganhamos casa e escola para nossos filhos. Éramos tão abandonados que tivemos que aprender até a usar o sanitário. Meus filhos hoje têm curso superior — lembrou Maria Regina Cardoso dos Santos, uma das primeiras moradoras da Cruzada, em reportagem publicada no GLOBO em 13 de fevereiro de 2005, quando o conjunto completava cinco décadas do começo de sua construção.

A ideia é que, quando um barracão fosse abandonado na favela, ele fosse destruído. De acordo com o bispo, que mandou o engenheiro Luís Onofre Pinheiro Mendes construir também uma igreja, uma escola, um mercado e um centro social, o requisito para o deslocamento foi baseado em “famílias relacionadas” e preparadas psicologicamente para tal. Além disso, havia uma seleção rigorosa para garantir que “malandro não mora no Bairro de São Sebastião”, como expressou o sacerdote, apelidado de “bispo vermelho”. Perseguido na ditadura militar, o regime teria o impedido de continuar com a sua meta de replicar o modelo da Cruzada em outras áreas da cidade.

Com o tempo, a falta de manutenção dos prédios e o tráfico de drogas ilícitas contribuíram para a degradação do conjunto, que enfrentou a discriminação dos entornos elitizados, como mostrou a reportagem especial “906 famílias — uma pequena cidade — tentando melhorar de vida”, do jornal em 12 de agosto de 1979, que reuniu relatos de racismo e revelou que algumas escolas da região não aceitavam moradores da Cruzada. Com o aumento do número de furtos e assaltos nos entornos do bairro, os policiais da Delegacia de Vigilância-Sul pediram, em 1974, a remoção dos moradores.

— As condições de higiene dos apartamentos (principalmente blocos 4 e 5), é lamentável (sic). Moram, em espaço mínimo, 18 e 20 pessoas, muitas vezes. Em alguns apartamento há animais domésticos, como cabras e galinhas. Em outros, há plantações de tomates em vasos sanitários — justificou o delegado Armando dos Santos Pereira, redator do ofício que requeria a desapropriação da Cruzada.

Apesar dos esforços contrários, em 1982, os residentes conseguiram as escrituras de seus apartamentos. Nos anos seguintes, observou-se uma crescente valorização imobiliária do espaço. Outro perfil de morador, mais próximo da classe média do que os habitantes originais da Praia do Pinto, passou a ocupar os quartos com vista para a Praia do Leblon e Lagoa Rodrigo de Freitas. Na série Cidade em Transe, publicada no GLOBO em outubro de 2013, foi avaliado que o processo de gentrificação na área — quando o tipo de população de uma região passa por uma transformação, sendo ocupada por pessoas de maior poder aquisitivo em relação ao grupo anterior — ajudou a valorizar em 135% o preço dos imóveis em menos de dois anos.

Na história da Cruzada, um dos moradores mais notórios é Adílio, o craque do Flamengo, nascido e criado no bairro. Desde pequeno, jogava bola no Clube AABB, na Lagoa, e treinava no Flamengo, onde se consagrou como um dos melhores meio-campos da história do clube. Ao lado de Zico e Andrade, compunha o chamado Esquadrão Imortal, formação que lotava o Maracanã. Conquistou o Campeonato Mundial Interclubes, a Copa Libertadores da América e o Campeonato Carioca, todos em 1981, além dos Campeonato Brasileiros de 1980, 1982 e 1983. Chegou a ser convocado para a Copa da Espanha de 1982, mas acabou não sendo chamado para jogar, o que cancelou uma grande festa na Cruzada. A comunidade foi o primeiro lugar a receber o Gol de Placa, projeto que teve Adílio como um dos fundadores e que forma jovens jogadores de futebol em outras áreas da cidade.

Entre as personalidades retratadas nas páginas do GLOBO em tantos anos de Cruzada, destaca-se também Maria Flauzina Rodrigues, que tinha 112 anos quando foi entrevistada para reportagem de 16 de agosto de 1982. Antiga moradora da Praia do Pinto era a residente mais antiga do conjunto habitacional, e exibia um tesouro carregado de memória: um chapéu de filó azul-claro, que dizia ter ganho de presente da princesa Isabel.