Favelas Chapéu-Mangueira e Babilônia

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Introdução

As favelas Chapéu-Mangueira e Babilônia localizam-se na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro e foram, nos últimos anos, favelas estratégicas para diversas intervenções públicas.

À sua volta estão o Bairro do Leme e de Botafogo, com vista para o Atlântico, por um lado, e o Morro da Urca, por outro. Contabilizadas a partir do último Censo de 2010, as duas favelas, em conjunto, possuem área de 1,1797 km², densidade demográfica de 3379,62 hab/km² e população em torno de 3.987 habitantes, com um total de domicílios de 1.178.

O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) da Unidade de Desenvolvimento Humano (UDH) em questão é 0,684, em 2010. Esse valor situa a UDH na faixa de Desenvolvimento Humano Médio (IDHM entre 0,600 e 0,699). A dimensão que mais contribui para o valor do IDHM da UDH é Longevidade, com índice de 0,809, seguida de Renda, com índice de 0,688, e de Educação, com índice de 0,574. A área está a menos de 200 metros da praia e também está próxima do monumento natural do Pão de Açúcar. A comunidade Chapéu-Mangueira está localizada na encosta do Morro da Babilônia, pertencente a uma Área de Proteção Ambiental (APA dos Morros da Babilônia e São João).

 

Índice de Desenvolvimento Humano Municipal e seus componentes - Chapéu Mangueira / Babilônia - RJ

IDHM e componentes

2000

2010

IDHM Educação

0,411

0,574

% de 18 anos ou mais com ensino fundamental completo

37,42

52,13

% de 5 a 6 anos frequentando a escola

75,17

97,66

% de 11 a 13 anos frequentando os anos finais do ensino fundamental

54,63

77,74

% de 15 a 17 anos com ensino fundamental completo

29,35

40,48

% de 18 a 20 anos com ensino médio completo

13,27

25,02

IDHM Longevidade

0,762

0,809

Esperança de vida ao nascer (em anos)

70,71

73,51

IDHM Renda

0,659

0,688

Renda per capita (em R$)

482,36

580,41

Com base no levantamento comparativo de 2000-2010 com o principal bairro do seu entorno, o bairro do Leme, é possível observar que houve um crescimento populacional numa taxa média anual de 0,10% da população do bairro do Leme, enquanto, de forma a levar em consideração, a população das favelas Chapéu-Mangueira e Babilônia cresceu numa taxa média de 0,53% na década. O nível de distribuição de renda e a taxa de desigualdade também se fazem importantes como análise: enquanto que no Leme teve um aumento significativo de renda per capita de R$ 2.698,34, a população das favelas teve um aumento per capita de apenas R$ 98,05, recebendo, em 2010, em torno de R$ 580, 41 (em comparação aos R$ 6.522,52 dos moradores do Leme) – considerando também que esta última realidade passou por um crescimento populacional mais intenso. Ou seja, mesmo com políticas como o Bolsa Família e aberturas de facilidade do crédito, em vigor a partir do governo em atuação na década aqui analisada, o nível de renda e de acumulação de capital econômico foi apenas considerável para as camadas da cidade que já estavam assim incluídas no que se considera como “classe média”  – tais categorias serão melhor analisadas no próximo capítulo. Um outro dado interessante para esta comparação é a taxa de vulnerabilidade social, na variável da pobreza: no Chapéu-Mangueira/Babilônia, mesmo que em decréscimo na última década, 21,48% estão vulneráveis à pobreza; no Leme, apenas 0,58%.

De alguma forma – mesmo que não generalizante –, há nesta base de observação estatística uma tendência a considerar uma distância social, mesmo que em proximidade espacial, da relação bairro-favela.  O território/espaço, porém – e sua população territorializada –, é feito de redes, de modos de circulação e acessibilidade, transterritorialidades. 

Isto posto, se uma favela invade um bairro de classe média alta, como o bairro do Leme, na Zona Sul carioca, duas situações se tornam possíveis: a) traçar-se-á um perímetro que englobe ambas as áreas, delimitando-se assim uma única área; b) traçar-se-á duas áreas, uma dentro da outra, ambas tendentes à segregação (2001:150). E, neste caso, a relação do espaço intra-urbano entre bairro e favela é um aspecto importante da realidade carioca.

Com a combinação do processo de urbanização da cidade, também se faz presente, enquanto demanda, a inserção e integração dessas populações aos usos da cidade e a seus bens e serviços públicos, como moradia, transporte, saúde, saneamento etc, trazendo novas disputas interclassistas e inter-étnicas. De acordo com os projetos e planejamentos dessa cidade, os interesses e agenda de políticas destes territórios segregados se tornam cada vez mais conturbados - um exemplo disso são as diversas interveções públicas nas áreas de urbanização, habitação e segurança que passaram as favelas de Chapéu-Mangueira e Babilônia no período da agenda de realização dos megaeventos na cidade do Rio de Janeiro.

As favelas Chapéu-Mangueira e Babilônia, além de favelas localizadas na Zona Sul da cidade, no entorno do bairro do Leme, em pontos de orla e apropriação diferenciada do espaço urbano (VILLAÇA, 2001), também possuem importante relação ecológica, visto que seu território – principalmente o território da Babilônia, propriedade de militares do Exército durante décadas – está na extensão do Morro da Babilônia, importante área de preservação ambiental (APA) da cidade do Rio de Janeiro. Toda a história de sua ocupação, como já bem documentada, passou pela disputa deste território durante a ditadura e que, até hoje, vem resistindo a processos de apropriação. A favela do Chapéu-Mangueira, por outro lado, mesmo também marcada pela presença do Exército a partir da fronteira do Forte Duque de Caxias, representa uma favela moderna, de ocupação mais recente por trabalhadores urbanos, de resistência política frente à ditadura e às constantes ameaças de remoções.

A questão urbana – e fundiária – nas favelas do Chapéu-Mangueira e Babilônia se pauta, em seu campo e contexto, em ao menos três pontos: 1) a proximidade e dominação do Exército, através da localização do Forte Duque de Caxias, no Leme, que, desde o início do século, é responsável por contenções territoriais, privilegiando um discurso contra a expansão por questões de “segurança” do Forte – com isso, inclusive, contribuíram para a implementação da UPP, em sua nova intervenção urbanística; 2) a presença da Área de Proteção Ambiental (APA), no alto do Morro da Babilônia, responsável por “separar” os territórios, mas que, por esse caso, passou a ser um elemento importante da luta pela proteção vinculada aos moradores da comunidade , enquanto que, por outro lado, em alinhamento com o próprio Exército, sustenta um discurso de preservação; 3) as remoções realizadas no contexto da política pública de habitação e urbanização, Morar Carioca, a partir de 2010, como veremos mais especificamente adiante, dentro do que é denunciado por muitos, incluindo moradores e gestores das próprias comunidades, como processo de “gentrificação” da favela.

Portanto, a mudança no espaço urbano de ambas as comunidades, frente às diversas intervenções do poder público em atendimento e serviços, inclusive, encontra uma disputa por diferentes interesses, visto a atuação de diversos agentes em associação com lideranças locais em ambas as comunidades. Muitos programas e projetos em implementação nas últimas décadas, por exemplo, tiveram proeminência na diversidade histórica e política da Babilônia, visto seu reconhecido alinhamento com o governo e partidos e participação particular de atores chave, em contraposição ao Chapéu-Mangueira, historicamente reconhecido como oposição.

Mito de origem e formação social da favela

 

De princípio, Chapéu-Mangueira e Babilônia não possuem a mesma história e nem as mesmas características atuais na versão de seus moradores, apesar de pertencerem ao mesmo espaço geofísico. O que há de semelhança entre os diferentes discursos é exatamente a afirmação constante de que, pelo fato de cada uma das comunidades terem tido histórias distintas, suas condições atuais também são particulares, o que se traduz na relação direta e determinante entre passado e presente. Essa dualidade marca não somente o discurso sobre o passado, mas também, as explicações sobre as relações estabelecidas atualmente com o poder público, o mercado e o entorno.

A favela da Babilônia é considerada a mais antiga, ainda possuindo traços rurais, e é marcada por uma população oriunda especialmente do Norte e Nordeste do país, que tem uma condição socioeconômica mais pobre e que está associada a uma memória de afinidade política com o Exército e o período da Ditadura Militar brasileira. Já Chapéu-Mangueira é representada coletivamente como o extremo oposto: representa uma favela moderna, de ocupação mais recente por trabalhadores urbanos, de resistência política frente à ditadura e às constantes ameaças de remoções, construção de associação de moradores ligados a partidos políticos comunistas e construção de bens públicos sobreviventes até os dias atuais.  

Entre fatos, documentos e memórias, há uma disputa de versões discursivas sobre o surgimento das favelas da Babilônia e do Chapéu-Mangueira, situadas no Morro da Babilônia, bairro do Leme. Fontes bibliográficas  indicam que as primeiras moradias no Morro da Babilônia surgiram ainda no período colonial, em 1776, com a chegada dos militares e a instalação do Forte Duque de Caxias, mais conhecido como Forte do Leme, antigo Forte do Vigia. Até final do século XIX, o Leme abrigava apenas algumas instalações militares que visavam a proteção da costa brasileira, acessados pela Ladeira do Leme, que foi durante muito tempo uma das únicas ligações diretas entre Botafogo e Copacabana .

De acordo com os moradores mais antigos de ambas as comunidades, os primeiros habitantes ocuparam o morro a partir da segunda metade do século XIX, na região onde é atualmente a área da Babilônia, em sua parte mais alta.  Essa versão coincide com registros documentais, que indicam concessões de títulos a militares, tal como o decreto de 1934: [...] a existência de documentos que comprovam a concessão, a título precário, em 1872 e 1889, a ex-praças do exército, de tratos de terras, na zona em questão, demostra que, sempre que se tornou oportuno, fez o Ministério da Guerra valer os seus direitos (Decreto Nº 24.515 de 30 de Junho de 1934) .

Até o início do século XX, a área de Copacabana e do Leme era conhecida como um recanto de pescadores. Copacabana se beneficiou dos investimentos realizados durante a Reforma Passos, que transformou o centro da cidade entre 1904 e 1908. Os novos bairros se consolidaram, ajudados por investimentos da Prefeitura dentro da política de “embelezamento” e melhorias das áreas nobres. O executivo municipal chegou a revogar a legislação que permitia a construção das casas rústicas, que inicialmente ocupavam a área, para garantir um alto padrão de moradias e evitar o acesso de classes de renda inferior ao bairro. 

A abertura da Avenida Beira Mar facilitou a ligação com o centro e, em 1906, as aberturas do Túnel do Leme (atual Túnel Novo), pela Companhia Jardim Botânico , e da Avenida Atlântica, completaram a integração – espacial – do bairro com a cidade. Em 1907  a imprensa carioca denunciava a existência de diversas habitações irregulares no Morro da Babilônia. A ocupação vizinha, do Chapéu-Mangueira, estaria ligada a esta nova demanda de trabalho, tendo, portanto, uma origem mais recente . Desde o início, desenvolveu-se na parte mais baixa do morro, voltada aos fundos dos lotes da Rua Gustavo Sampaio, por estar mais ligada a estas novas famílias de trabalhadores do que ao exército.

Com a abertura dos túneis que transformaram o acesso aos novos bairros, a consequente ligação por bondes e o crescimento de construções, a presença de moradias provisórias destes trabalhadores foi estimulada, enquanto durassem as obras. No entanto, no século XX, com a evolução do bairro, tais instalações se tornaram permanentes, entre outros motivos, pela necessidade de serviços domésticos nas casas das famílias abastadas que foram pouco a pouco substituindo o trabalho nas obras.

De acordo com Silva (2006), apenas na década de 1910 a favelização dos morros ganhou força, e em 1907, há notícias na imprensa carioca da existência de moradias no morro da Babilônia. O Censo populacional de 1920 constata a existência de seis favelas no Rio de Janeiro. Contabilizava-se à época, 839 domicílios e seis casas de negócios no Morro da Providência, 190 casebres no Morro do Salgueiro, seis no Morro da Arrelia, 16 no Morro do Cantagalo, 59 no Morro da Babilônia e 63 no Morro de São João (STORINO, 2000). Ainda na década de 1920, a expansão das favelas tornou-se um fenômeno incontrolável. Mesmo sem uma sistematização confiável de dados, é possível estimar, de acordo com Goulart (1957), que na Babilônia houve um crescimento de 59 casas em 1920 para 73 em 1933.

Até meados do século XX a ocupação avançou basicamente através de três acessos, que se tornaram condutores de seu desenvolvimento. O primeiro pela Ladeira do Leme e o acesso ao posto dos telégrafos. O segundo, através do qual a favela Babilônia se expandiu pela encosta oeste, voltada para a Avenida Princesa Isabel, o acesso era feito a partir de uma escadaria de serviço, que existiu até a década de 1940 na entrada do Túnel Novo. E o terceiro se formou a partir de caminhos provenientes da área do Forte, que possuíam ramificações em direção às instalações militares na Praia Vermelha e a pequenos núcleos de ocupação no topo da Pedra do Urubu e no caminho da Pescaria. A ocupação, portanto, se organizava a partir da sua localidade mais alta, se estendendo pelos caminhos oriundos dos extremos opostos do morro. Foi apenas em meados do século XX que a ocupação se deslocou em direção a Ladeira Ary Barroso (MARQUARDT, 2003), que atualmente consiste no principal acesso utilizado pelos moradores, mas não o único, como se observou durante a pesquisa de campo.