Favelas e Comunidade Política – A partir dos anos 1960

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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O presente verbete é uma parte do capítulo 06 do livro “A sociologia do Brasil urbano”, intitulado “Favelas e Comunidade Política: a continuidade da estrutura de controle social”. O capítulo é de Anthony Leeds e Elizabeth Leeds e o livro é publicado pela Editora Fiocruz. A utilização do texto foi gentilmente acordada entre a Editora Fiocruz e a equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco.

A Era do Controle Renovado, da Erradicação e da Repressão

Os  meses  restantes  de  1962  assistiram  a  uma  completa  reorganização dos  serviços  sociais  do  Estado. O  Serfha  foi  desfeito  e, em  agosto, suas  funções  passaram  ao  Serviço  Social  das  Favelas  e  suas  atividades  físicas  para o  Departamento  de  Recuperação  de  Favelas  (CRF).  O  Serviço  Social,  por  sua vez, autorizou  cada  administração  regional  a  tratar  de  suas  próprias  favelas, exceto  em  caso  de  presença  da  Fundação  Leão  XIII,32   que  Lacerda,  por  sua série de manobras, havia transformado em dezembro de 1962 de seu estatuto 1960 de pessoa jurídica privada operando sob o controle e financiamento do   Estado   em   uma   subordinada   inoperante   da   Companhia   de   Habitação Popular  do  Estado  da  Guanabara  (Cohab),33   e  em  1964  em  um  órgão  estatal semiautônomo   subordinado   à   Secretaria   de   Serviços   Sociais   (entrevista com   Josefina   Albano,   1966).   Também   foram   incluídos   sob   a   secretaria, na   ampla   reorganização   posterior   da   administração   do   estado   feita   por Lacerda,34  em dezembro de 1962, a Cohab, o Departamento de Recuperação de Favelas e o antigo Serviço Social.

A  criação  da  Cohab  inicia  uma  era  de  erradicação  na  política  relativa  à favela  tanto  estadual  quanto  nacional,  apesar  dos  objetivos  expressos  da Cohab de assistência às favelas para melhorar, construir casas e, com a ajuda da   subordinada   Fundação   Leão   XIII,  urbanizar.  A   criação   de   uma   autoridade  de  construção  habitacional  de  baixo  custo  podia  apenas  significar  uma intenção de construir casas de baixo custo em grande escala. Sugeriu-se que a   Cohab   foi   criada,  em   parte,  para   arrecadar   uma   soma   considerável   de dinheiro por meio do Acordo do Fundo de Trigo Estados Unidos-Brasil, dando assim  ao  orçamento  do  estado  da  Guanabara  um  auxílio  significativo  em dinheiro isento de tributação. Essa observação é de especial interesse em vista da  criação  do  Conselho  Federal  de  Habitação,  em  25  de  junho  de  1962,  pelo governo Goulart (Decreto Federal n. 1, 281, 1962).

As cláusulas do decreto parecem orientar-se, em primeiro lugar, para a abertura de canais ao pobre (art. 2, I e X, art. 3, parágrafo 4), provavelmente uma continuação do populismo getulista bem como parte da tentativa multifacetada do presidente Goulart de lançar uma base política  firme  no seio do proletariado urbano, especialmente durante o período em que foi bloqueado pela  imposição  do  parlamentarismo.  Segundo,  parece  orientar-se no sentido do estabelecimento do controle  federal  sobre  o dinheiro  vindo  do exterior, uma característica importante nas jogadas de poder político no Brasil, quando era possível aos governadores estaduais – como Lacerda e Aluísio Alves – agir como chefes de países soberanos para a obtenção de empréstimos de outras nações soberanas (os Estados Unidos) (ver art. 2, III, XIII, parágrafo único). O Conselho Federal de Habitação deveria também encorajar a pesquisa habitacional (art. 2, VII, VIII) e criar pessoal técnico.

A  criação  da  Cohab  pode  ser  vista  como  uma  resposta  à  criação  do  Conselho  Federal  de  Habitação  e  suas  cláusulas  porque,  em  um  sentido  formal, foi  organizado  para  fazer  exatamente  as  coisas  estabelecidas  pelo  decreto federal.  Ao  mesmo  tempo,  ela  criava,  em  um  sentido  informal,  um  corpo independente   sob   o   controle   de   Lacerda   (cujo   vice-governador,  Rafael   de Almeida  Magalhães,  e  o  genro,  Flexa  Ribeiro,  controlavam  49%  da  percentagem  permitida  a  acionista  privados)  com  acesso  direto  às  massas  proletárias  urbanas  que  ele  tentava  mobilizar  desde  a  “Batalha  do  Rio”,  em  1948. A Cohab, que, por seus estatutos, podia receber subsídios, forneceu uma base organizacional  para  a  constituição  de  uma  oposição  às  forças  de  Goulart. Essa  base  foi  fortalecida  e  expandida  pela  captura  e  incorporação  da  Fundação  Leão  XIII  ao  aparato  do  Estado  nos  vários  movimentos  de  1960,  1962 e  1964.  O  Serfha,  como  expressão  dos  regimes  de  Kubitschek  e  de  Quadros (sendo  que  com  o  partido  do  último, a  UDN, Lacerda  havia  também  chegado ao poder como governador), representava uma base remanescente da ameaça das massas urbanas ao controle político de Lacerda. Ele foi desfeito, uma vez que  sua  política  significava  uma  crescente  independência  e  participação  do proletariado  nas  decisões  políticas  e  socioadministrativas,  um  desenvolvi- mento  antagônico  aos  interesses  representados  por  Lacerda:  partido,  Igreja, negócios e os seus próprios.

Voltemos ao acordo do Fundo do Trigo. Os termos do acordo entre Lacerda e  a  AID  especificavam  que,  conforme  o  título  1  da  Lei  480  da  República  dos Estados  Unidos  da  América,  um  bilhão  de  cruzeiros  (US$  2.857.000)  obtidos pela  venda  de  produtos  agrícolas  ao  Brasil  seriam  usados  para  a  urbani- zação parcial de algumas favelas, para a urbanização completa de uma grande favela, para a construção de 2.250 casas de baixo custo, para a “reacomodação” dos moradores das favelas e para a construção de um grande posto de saúde em  uma  distante  região  do  estado.  O  estado  da  Guanabara  também  contri- buiria com 3% de sua renda anual (Usis, 1962). Deve-se observar que um pedido anterior  de  dinheiro  ao  BID, feito  em  maio  de  1961, não  havia  sido  aceito  na época do acordo com a AID (Fundação Leão XIII, 1962).

A jogada de Lacerda para a obtenção de apoio internacional e a tentativa, à qual se deu grande publicidade, de reconstrução em grande escala das favelas e sua posterior remoção devem ser vistas no contexto da política nacional brasileira pré-golpe, nos inícios dos anos 60. Interessado na Presidência, Lacerda, o ex-jovem jornalista radical, julgou oportuno seguir uma linha mais conservadora nos anos 60. Rios (1964: 168) observa:

 

A candidatura de Carlos Lacerda para a Presidência da República, num contexto claramente antirreformista e de direita, mobilizando grandes recursos, parece anunciar... a fusão de partidos do centro em torno de seu nome, numa reformulação das posições conservadoras que tendem a ir para os extremos de modo a facilitar o ataque aos adversários.

 

A coincidência parece sugerir que Lacerda já buscava a Presidência desde os fins de 1961, ou em 1962 (ver Skidmore, 1967: 274, passim).

Apesar  de  sua  atribuição,  nos  termos  do  Acordo  do  Fundo  do  Trigo  da AID  (ver Apêndice  II), de  reconstruir  e  urbanizar  assim  como  de  erradicar  as favelas,  declarações  em  documentos  da  Cohab  criticam  as  administrações anteriores  por  não  terem  pensado  em  termos  de  erradicação,  sugerindo  ser esta a única política realista:

Depois de 1955, o Estado voltou seus olhos mais uma vez para o pro- blema.  Criou  vários  órgãos  e  instituições  que  tentaram  por  várias formas e meios minimizar os efeitos das pressões socioeconômicas que atuaram sobre a população favelada. Nenhum deles tinha como objetivo a erradicação dessas aglomerações. O atual governo (Lacer- da) foi o primeiro a enfrentar o problema em termos de erradicação (Estado da Guanabara, Cohab, 1963-65: 4).

 

A  política  de  erradicação  ganhou  amplo  apoio  econômico  e  institucional com a criação, em 1964, após o golpe militar, do Banco Nacional da Habitação (BNH),  com   Sandra   Cavalcanti,  primeira   secretária   de   Serviços   Sociais   de Lacerda,  como  sua  primeira  presidente  (Lei  4.380,  21  de  agosto  de  1964). A orientação do BNH era decididamente a da escola monetarista do ministro da  Fazenda  Roberto  Campos  (que, em  conexão  com  o  Instituto  de  Pesquisas Econômicas  e  Aplicadas,  Ipea,  e  conselheiros  americanos,  propôs  a  ideia  de um esforço habitacional maciço como forma de dar impulso à economia e foi instrumento  da  criação  de  um  banco  da  habitação);  os  monetaristas  basea- vam  o  planejamento  e  a  ação  predominantemente  em  políticas  fiscais  mais do que nas institucionais, características especialmente dos anos Kubitschek e de economistas como o ministro do Planejamento Celso Furtado, ex-diretor da   Superintendência   de   Desenvolvimento   do   Nordeste   e   ex-membro   da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), órgão das Nações Unidas.

O banco, operando no interior desse quadro, argumentava que colocando grandes    somas   de   dinheiro,   como   política   fiscal   de   investimento,   na habitação iria (a) criar muitos empregos; (b) contribuir para elevar os níveis de qualificação dos trabalhadores, e consequentemente a produtividade;

(c) estimular a indústria nacional;35 (d) estimular a indústria do aço; (e) rea- tivar o mercado de capitais, que durante um longo período antes de 1964 estivera notadamente em depressão, por causa da manutenção das leis de controle de aluguel pela administração  federal  – ambas  medidas  populistas e tentativas de manter suficientemente baixos os custos da habitação dispo- nível para acomodar a contínua migração para as cidades.  O  efeito  havia  sido, todavia, o de desencorajar novas construções – uma combinação de circunstâncias. O BNH, assim, argumentava que a construção de habitações em massa resolveria o “problema da favela” e contribuiria poderosamente para o renascimento da economia – em má situação, segundo  o BNH, desde  as desastrosas políticas de João Goulart (e mesmo em razão delas), mas segundo economistas como Werner Baer, desde os fins dos anos 50, por causa dos processos a longo prazo de superexpansão das capacidades de produção em relação aos mercados consumidores. Para alcançar esses objetivos, percebia-se também como essencial a eliminação da duradoura inflação – o monstro monetarista –, cuja abrupta subida em 1963 foi também atribuída a Goulart e tem sido  enganosa  e sistematicamente  utilizada  como  base  para  a comparação de cada administração desde 1964. Enquanto a inflação estava sendo controlada, instituições especiais, tais como a “correção  monetária”, que mantinha o valor dos capitais investidos, foram utilizadas pelo BNH.

Pouca reflexão e ainda menos pesquisa foram dedicadas à capacidade dos moradores da favela de pagar pelo “embrião” construído pela Cohab, ou pelas casas mínimas nos projetos habitacionais como a Vila Kennedy. A capacidade de  pagar  era,  e  ainda  é,  concebida  como  uma  simples  função  percentual  da renda familiar, e não como uma complexa política de alocação a longo prazo levada  adiante  pela  família.  Assim,  por  exemplo,  a  inclusão  da  “correção monetária”  –  uma  contínua  correção  na  soma  paga  sobre  amortizações  das casas-embrião  e  dos  apartamentos,  baseada  na  taxa  de  desvalorização  do dinheiro  –  nos  pagamentos  de  amortização  produziu  mais  ou  menos  um acréscimo de 60% nos pagamentos dessas casas mínimas, porque as políticas de financiamento a longo prazo para pessoas de baixo nível de renda sempre consideraram a queda tanto dos custos absolutos quanto dos custos relativos dos pagamentos onde não houvesse “correção” em um sistema de pagamento por prestação. O problema tornou-se mais grave em virtude do fato de que, desde 1964, os aumentos salariais não foram concedidos nem na mesma época, nem na mesma medida em que o custo de vida aumentava.

Essa situação deriva diretamente do salário nacional, do controle da infla- ção e das políticas de investimento dos governos militares na forma como são realizadas, no  caso  em  questão, por  intermédio  do  órgão  estatal  da  Cohab  e, mais tarde, por intermédio deste e da Coordenação de Habitação de Interesse Social  da Área  Metropolitana  do  Rio  de  Janeiro  (Chisam)  (ver  adiante), ambas capazes  de  usar  a  política  ou  a  força  militar  quando  necessário.  Os  interes- ses imediatamente ligados a essas políticas eram os da indústria da constru- ção  e  do  mercado  de  capitais,  ambos  tendo  apoiado  vigorosamente  Lacerda e as políticas nacionais.

Além  disso,  nem  a  Cohab  nem  Lacerda  refletiram  sobre  o  fato  de  que remover  famílias  faveladas  para  enclaves  proletários  isolados,  distantes  dos mercados  de  trabalho  da  cidade,  criaria  uma  forte  pressão  econômica  sobre famílias  cujos  orçamentos  já  eram  esticados  até  o  limite  máximo.  Produzi- riam  também  fortes  pressões  sociais  devido  ao  tempo  de  transporte  neces- sário    para    chegar    ao    trabalho,   de    modo    que    os    homens    geralmente permaneceriam  na  cidade  durante  a  semana.  Muitas  famílias  removidas  de favelas  para  vilas  desfizeram-se,  tendo  os  homens  encontrado  novas  famí- lias,  voltando  a  inchar  outras  favelas,  e  suas  mulheres  ficado  isoladas,  sem trabalho e com crianças, ou também voltado para favelas na cidade.

Nessa última etapa da história da relação favela-administração, as favelas são  novamente  vistas  como  aberrações  sociais  nocivas, devendo  ser  removi- das do playground de elite da “gente boa” (ver nota 9, itens d, e, f, e a discussão sobre  texto  da  Fundação  Leão  XIII  adiante).  As  poucas  tentativas  de  oposi- ção   a   essa   política   encontraram   vigorosa   e   efetiva   reação   por   parte   dos órgãos  governamentais  tanto  a  nível  estadual  como  federal,  como  descre- veremos abaixo.

As realizações mais notáveis da Cohab  encontram-se na área da remoção e transferência das populações das favelas e da construção das vilas Kennedy, Aliança,  Esperança   e   Cidade   de   Deus   (!!),  embora   tenha   havido   algumas tentativas   ao   longo   de   1965   de   urbanização   in   loco   de   algumas   poucas favelas.36   Uma  das  duas  primeiras  favelas  a  serem  removidas  pela  Cohab  foi a do Morro do Pasmado, localizado em uma área turística por excelência com vista  para  a  baía  de  Guanabara.  Correu  amplamente  o  rumor  de  que  essa favela  extraordinariamente  visível  foi  removida  para  dar  lugar  a  um  hotel Hilton,  e,  com  efeito,  o  Relatório  Geral  da  Cohab  lista,  entre  seus  projetos, “Morro  do  Pasmado  –  construção  do  Hotel”  (Estado  da  Guanabara,  Cohab, 1963-65: 27).

A reação da população favelada às remoções iniciais  e  à  ameaça  de novas remoções foi muito negativa. Estudo de Salmen feito em 1966  relata um grau significativo de insatisfação por parte dos moradores da favela remo- vidos para as vilas Kennedy e Aliança (Salmen, 1969). O fracasso do candi- dato de Lacerda na eleição governamental de 1965, Flexa Ribeiro, seu con- traparente, parece ser, em grande parte, atribuível a essa reação negativa.

O maior  número de  votos  contra  Flexa  Ribeiro  foi  sistematicamente das áreas proletárias que incluíam o maior número  de favelas. A distribui-  ção estatística reforça as impressões que tivemos em algumas favelas com base em entrevistas, sendo praticamente todas explicitamente anti-Lacerda, contra o governo nacional militar a quem  ele  e  as  dificuldades  econômi-  cas estavam associados, a seu ver, e, evidentemente, contra o “pupilo” de Lacerda, Flexa Ribeiro.37

O resultado da eleição de 1965 na Guanabara levou ao poder Negrão de Lima, um governo que, apadrinhado pelo PTB-PSD, tornou-se oposição ao governo federal e, consequentemente, a suas políticas expressas a nível estatal. Este reagiu imediatamente, em crise, suprimindo todos os velhos partidos políticos e criando a miragem do aparente sistema bipartidário atual.

As privações, que atingiram não apenas os entrevistados no estudo de Salmen mas também os milhares de removidos desde 1966, são de natureza econômica, social e emocional. Um breve estudo de caso de duas espécies de problema tipicamente encontradas ilustrarão essas dificuldades. A  família que descrevemos está talvez em melhor situação do que muitas retiradas à força das favelas, mas seus problemas são típicos. Sua favela situava-se em uma área de elite do Rio, mas com um pequeno enclave de indústrias com salários comparativamente bons e algumas embaixadas que requeriam trabalho doméstico. Eduardo, 29 anos, ia a pé para o seu trabalho em uma fábrica têxtil; trabalhava das 16 horas à meia-noite, ganhando três salários mínimos na fábrica. Esse horário lhe permitia ter uma série de trabalhos secundários (biscates, ver Silberstein, 1969) como pintor de casas em suas horas vagas pela manhã. Vilma, sua mulher, 26 anos, ia também  a  pé  para seu trabalho matinal como empregada em uma embaixada, o que deixava livres as suas  tardes  para  dar almoço  ao marido  e tomar  conta  do filho de  4 anos e da sogra idosa e doente que morava com eles. Não pagavam aluguel, tendo construído a casa, e, com o salário  de ambos  e uma pequena  pensão  de sua mãe, podiam apenas se virar, gastando principalmente com alimenta- ção, abastecimento doméstico, remédios, peças de vestuário ocasionais e alguma ajuda à mãe de Vilma. Em março de 1966, a favela foi removida e a população colocada em um conjunto habitacional  em  um  distante  distrito do Rio, o que exigia duas horas de viagem de ônibus de ida e duas de volta, oito passagens por dia (cerca de 50-60% de um salário mínimo), pagamento de cuidadora para o filho, de uma amortização mais cara do que eles podiam arcar e a redução dos biscates de Eduardo devido às dificuldades de horário,   e aumentava a tensão emocional entre marido e mulher porque seus horários só coincidiam aos domingos. Para muitas outras famílias, tal mudança signi- ficou também a perda de uma parte ou de todo o salário da mulher, uma vez que os empregos domésticos mais bem pagos encontram-se apenas na distante Zona Sul, longe dos novos conjuntos habitacionais. Além disso, significou a perda do dinheiro de reserva obtido pelas crianças como carregadores  para  as matronas de classe média nas feiras da Zona Sul, ou como engraxates ou meninos de recado nas áreas comerciais da cidade.

A  era  de  erradicação,  controle  e  repressão  é  também  bem  exemplificada pela   história   e   atividades   da   Fundação   Leão   XIII   nos   anos   60   e   por   sua subsidiária de curta vida, o Bemdoc (Brasil-Estados Unidos – Movimento para o Desenvolvimento e Organização de Comunidades).

Nos   fins   da   década   de   1950   e   início   dos   anos   60,  a   fundação   estava moribunda,  tendo  as  suas  atividades  e  muitas  outras  sido  englobadas  pelo Serfha e pela Coordenação de Serviços Sociais dirigida por Rios. Toda a ativi- dade que a fundação desenvolveu havia sido, em sua maior parte, financiada pelo Estado (Berson, 1964: 28). Assim, na verdade, ela já era instrumento do Estado, embora ainda existisse como pessoa jurídica privada sob a influência conservadora de dom Jaime de Barros Câmara e possuísse ainda oficialmente centros em um grande número de importantes favelas, como assinalamos anteriormente.

Esse estatuto permaneceu durante os primeiros dois anos do governo Lacerda na Guanabara. Ainda não desemaranhamos completamente a teia política que lhe permitiu conquistar essa estrutura organizacional em 1960, porém ela envolve, entre outros, os elementos que se seguem. Lacerda  já havia sido  intimamente  ligado  à Igreja  e ao seu chefe  da ala direita  no Rio, o cardeal Câmara, em muitas questões políticas, especialmente no concernente às batalhas em apoio às escolas paroquiais sob a nova lei nacional de educação (Maciel de Barros, 1960: 442, 504-522), enquanto era ainda deputado federal (ver também Skidmore, 1967: 200, 299, com seus  pontos  de vista semelhantes).

Em segundo lugar, Lacerda assegurou a candidatura de Quadros à Presidência da República, em 1959, pela legenda da UDN. O próprio Lacerda – talvez, em parte, às custas de Quadros – obteve a vitória sob a legenda da  UDN, embora essa aliança, como tantas de Lacerda, fosse provisória. Assim, Lacerda foi pioneiro em uma arena  política nova – a cidade-estado do Rio  de Janeiro, não mais um apêndice nacional como o Distrito Federal, mas     um estado autônomo, maduro, política e administrativamente igual aos demais estados.

Dessa forma, Lacerda chegou ao poder com o múltiplo apoio, por um lado, da ala direita  da Igreja  e dos interesses  corporativos  de grandes  empresas, e por outro de um certo populismo, derivado das posturas de Quadros no governo e na campanha, e das próprias declarações anteriores de  Lacerda que pediam reforma administrativa, bom  governo  e  maiores  benefícios  para o povo. A história dos cinco anos do seu governo pode  ser entendida  nos termos da predileção bastante clara de Lacerda pelo  primeiro  conjunto de interesses, conexões e influências; da crescente e dissonante oposição  entre os dois conjuntos de interesses a nível federal durante os regimes de Quadros e Goulart; do explícito e abrupto movimento em direção ao  primeiro conjunto, começando com o golpe de 1964 (no qual – como na queda e Quadros – Lacerda, esperando alcançar a Presidência, desempenhou um papel ativo), e de sua tentativa, entre 1964 e a posse de Negrão no cargo, em 1966, de fixar raízes permanentes de poder na ampla população urbana, e especialmente proletária, da Guanabara.

A  Fundação  Leão  XIII  tem  uma  história  interessante  com  relação  a  essa sequência.  Como  dissemos,  ela  foi  originalmente,  e  permaneceu  até  1962 (ver  Decreto  [GB]  n. 1041, 7  de  junho  de  1962)  como  uma  instituição  privada, escorada  pela  Igreja, para  o  bem-estar  social. Como  o Apêndice  II  indica, por volta  de  1961  ela  havia  se  tornado  –  em  virtude  do  amplo  apoio  financeiro estatal  e  da  “compreensão”  do  cardeal  Câmara  –  um  órgão  estatal  de  facto. Lacerda escolheu esse órgão ambiguamente situado para representar o Estado e  para  ser  o  canal  para  a  verba  da AID  fornecida  pelo  acordo. A  fundação  foi também  designada  como  órgão  responsável  por  desenvolver  atividades  de urbanização.  Assim,  a   organização   privada,  religiosa,  de   bem-estar   social, estabelecida  originalmente  com  o  objetivo  principal  de  combater  a  influência  comunista  e  ainda  supervisionar  34  favelas  importantes,  tornou-se,  por curto  período,  o  instrumento  oficial  de  urbanização  e  o  receptor  dos  fundos internacionais concedidos ao estado.

Na   reforma   administrativa   geral   de   agosto-dezembro   de   1962,   depois da  extinção  da  Coordenação  e  da  criação  da  Secretaria  de  Serviços  Sociais, a  Fundação  Leão  XIII  foi  absorvida  pela  então  recente  Companhia  Estadual de  Habitação  Popular  da  Guanabara,  ou  Cohab.  Documentos  da  época  são rotulados   “Cohab   –   Fundação   Leão   XIII”   ou,   ocasionalmente,   vice-versa. No  intervalo  entre  a  assinatura  do Acordo  do  Fundo  do Trigo  e  sua  absorção pela  Cohab,  a  fundação  havia  começado  a  trabalhar  na  primeira  das  cidades proletárias – Vila Aliança –, cujo estabelecimento, sob a direção da Cohab, já  começara  no  início  de  1963.  Outros  “projetos”  de  “vilas”  e  o  de  urbanização da favela da Penha, listados no acordo, foram desenvolvidos sob a direção da Cohab.

A  Cohab  permanece,  hoje,  como  um  organismo  basicamente  habitacional. Sua relação específica com o Estado e, após 1964 – com a fundação do BNH e sua divisão a nível federal (também chamada Cohab) como autoridades em habitações  de  baixo  custo  –, com  os  governos  federais  mudou  muitas  vezes.

 

O  que  variou  nessas  mudanças  foram  suas  atividades  subsidiárias,  como serviço  de  bem-estar  social.  A  fundação  permaneceu  adormecida  por  cerca de  ano  e  meio, mantendo  serviços  médicos  e  sociais  muito  básicos  em  algumas   favelas   tradicionalmente   sob   seu   controle,   como   uma   espécie   de ramificação de bem-estar social da Cohab.

A renovação das atividades da Fundação Leão XIII começaram com a pro- posta da AID para um projeto de demonstração de desenvolvimento comunitário baseado em pesquisa supondo-se que (a) as favelas continuariam a existir por muito tempo; (b) a necessidade de fundos era inesgotável;

programas de desenvolvimento comunitário poderiam ser feitos para a diminuição dos custos em áreas pobres, e (d) com novas abordagens e práticas demonstrativas eles poderiam ter um efeito multiplicador significativo (Leavitt, em Leeds,  1966:  1).  A  proposta  foi,  eventualmente,  apresentada ao estado da Guanabara através da então secretária de Serviços Sociais de Lacerda, Sandra Cavalcanti, que lhe deu sua “entusiástica aprovação e subsequente apoio” – com o aval de Lacerda, ao que se supõe (ibid.).

É interessante observar que a primeira formulação da proposta foi feita em outubro de 1963 – em meio às intensas atividades populistas do presidente Goulart e do deputado federal Leonel Brizola, eleito pela Guanabara em 1962, embora tivesse poucas ligações neste estado, por um recorde de votos, na mesma eleição que trouxe ao poder Elói Dutra, “um franco opositor de Lacerda” (Skidmore, 1967: 230) como vice-governador da Guanabara. Brizola estava presumivelmente desenvolvendo seu Grupo dos Onze e preconizando mu- dança radical e atividades de esquerda no Brasil. Assim, do ponto de vista de Lacerda, de seus objetivos políticos e de sua política estatal, ele se confrontava com um vice-governador antagonista, um deputado federal radical, da Guanabara, aparentemente muito poderoso, ativo entre a população, e um presidente esquerdista que tentava radicalizar as massas urbanas. O “entusiasmo” de Sandra Cavalcanti, então, é mais do que compreensível, uma vez que a ela, como agente de Lacerda, se apresentava uma proposta de canalizar dinheiro para os cofres do Estado, de criar um organismo cujas realizações redundariam em  crédito  para  o  governador,  enquanto  neutralizariam o ônus das remoções de favelas já iniciadas e forneceriam um canal adicional de influência nas favelas, muitas da quais eram sabidamente ligadas às atividades inspiradas por Brizola e Goulart.

O  presidente  da  Fundação  Leão  XIII,  que,  já  havia  algum  tempo,  era  de algum  modo  subsidiária  da  Secretaria  de  Serviços  Sociais  (SSS),  induziu  a AID a se colocar sob a égide da fundação devido à sua flexibilidade e autonomia administrativa e financeira; porque ela executava “importantes planos da Secretaria  de  Bem-Estar  Social”;  e  devido  a  seus  longos  anos  de  ligação  com o problema das áreas pobres (carta à AID, 16/3/1964, apud Leavitt e em Leeds, 1966: 2). A fundação era também a escolha de Sandra Cavalcanti.

A   dotação   inicial   relacionada   à   Lei   480,   de   fundos   do   trigo,   era   de Cr$   424.000.000,   com   a   promessa   de   uma   soma   posterior   maior,   dependendo   de   uma   avaliação   ao   fim   de   dois   anos;   um   subsídio   adicional   de Cr$  270.000.000  era  concedido  (um  total  bruto  de  cerca  de  450.000  dólares na  época).  O  projeto  chamou-se  Bemdoc  e  iniciou  suas  operações  por  volta de outubro de 1964.

À altura de dezembro de 1966, o Bemdoc estava morto. Uma análise desse desaparecimento,  bem  como  dos  últimos  meses  do  regime  de  Lacerda  e  do primeiro  ano  do  governo  de  Negrão  de  Lima,  clarifica  a  continuidade  e  as alterações na forma do controle que é o tema do nosso trabalho. Esse último começou  de  modo  não  auspicioso  sob  a  ira  do  derrotado  Lacerda,  chuvas catastróficas,   crise   militar,38      repressão   dos   partidos   políticos,   tentativas de  se  iniciar  uma  investigação  policial  militar  contra  ele  e  acusações  de  corrupção e de brandura para com o comunismo.

O  Bemdoc  nunca  teve  estatuto  jurídico  de  instituição,  exatamente  como a   Fundação   Leão   XXIII,  que   permanecera   por   muito   tempo,  equivocada- mente, um órgão do Estado – e o era ainda quando a AID fundou o Bemdoc, sob sua supervisão. A fundação devia fornecer sede para o projeto, incluindo pessoal de secretaria e padres; manutenção de veículos e equipamentos; controle fiscal,  incluindo  a  manutenção  de  contas,  abertas  à  AID,  de  todas  as  operações  do  projeto.  Assim,  na  suprema  questão  financeira,  embora  a  AID  alo- casse   fundos   especificamente   ao   Bemdoc,   foram   abertos   canais   para   a utilização  por  parte  da  fundação  de  tais  fundos  para  objetivos  que  não  os do   Bemdoc.  O   fracasso   em   tornar   o   Bemdoc   juridicamente   independente deixou-o, na verdade, simplesmente como um programa desprotegido, muito rico, da fundação.

Toda   a   história   do   projeto   é   a   história   da   utilização   do   Bemdoc   pela fundação  como  um  veículo  para  se  autopromover  e  promover  os  interesses do Estado relativos às populações faveladas. O Bemdoc publicava um boletim informativo  para  divulgar  suas  atividades,  no  qual  a  fundação  insistia  em lançar comunicados sobre suas próprias ações. O Bemdoc, usando apropriada- mente os fundos da AID, conforme o acordo, fez vários tipos de melhoria nas favelas. A fundação fez com que estas lhe fossem creditadas por meio de sua presença nas cerimônias de inauguração e colocando placas com a ênfase no seu nome. Os exemplos eram inúmeros.

Além  de  se  promover,  a  fundação,  especialmente  em  1966,  começou  a pressionar tanto o Bemdoc como a AID para que o primeiro operasse em todas as  suas  favelas  –  contrariamente  à  intenção  e  à  carta  dos  objetivos  originários do projeto (ação-pesquisa piloto em duas a quatro favelas). Sendo a única parte  da  fundação  que,  na  época,  funcionava  efetivamente,  e  a  única  seção rica, essa  pressão  pode  ser  vista  como  um  esforço  importante  para  estender os laços de Bemdoc e sua influência substantiva (embora limitada, como real- mente  o  era)  nas  favelas  àquela  proporção  muito  importante  da  população favelada da Guanabara que sempre estivera sob o domínio da fundação.

Isso foi especialmente importante em 1966, quando Negrão precisou consolidar sua posição política na Guanabara pela erradicação do pessoal de Lacerda das posições de liderança, cultivando apoio real no seio da população favelada, e tudo isso ao mesmo tempo que evitava constantemente qualquer antagonismo com os segmentos médios e superiores, e acima de tudo não provocando nenhuma resposta do governo central e seus homens   de confiança (especialmente o secretário de Segurança Pública)  no governo do estado.

Assim,  em  1966  e  por  algum  tempo  mais,  a  Cohab  declinou  em  importância  e  se  restringiu  no  alcance  de  suas  atividades,  ao  passo  que  a  fundação expandiu suas atividades e renovou sua ação nas favelas através de todo o Rio, inicialmente tentando usar o Bemdoc e, depois do desaparecimento deste, por  sua  própria  conta. Começou  a  ter  crescente  controle  sobre  a  autorização  de melhorias habitacionais e outros problemas, reativou seus centros médicos e educacionais, e tentou exercer um controle sobre as organizações das favelas (ver Medina e Valadares, 1968: 204-5).

A extinção do Bemdoc teve como causa imediata a intransigência, por um lado, do pessoal do Bemdoc e da AID em insistir em que ele devia permanecer como   um   projeto-piloto   de   pesquisa   de   comunidade   operando   em   três ou   quatro   favelas,  ou   seja,  uma   operação   limitada,  experimental,  técnica. Por outro lado, deveu-se à intransigência da fundação, ou mais provavelmente de seu comando extraordinário, em insistir em que o Bemdoc expandisse suas atividades para muitas favelas, alterando a forma de suas atividades – ou seja, que ele se tornasse uma ampla operação política. Esse objetivo é coerente não apenas com as necessidades do governador de ampliar seu controle na época, mas também com os interesses de controle populista da facção de Yara Vargas no  PTB,  cuja  representante  no  governo  de  Negrão  era  Hortênsia  Dunshee de  Abranches,  então  secretária  de  Serviços  Sociais. A  intransigência  da  fundação   manifestou-se   em   uma   série   de   conversações   instigadoras   com   a AID,  levou  à  criação  de  facções  dentro  do  Bemdoc,  à  retenção  de  fundos para o pagamento de pessoal, e assim por diante. A AID finalmente encerrou o projeto em dezembro de 1966.

Em  um  sentido  amplo,  a  extinção  resultou  da  dissonância  de  um  novo contraponto  que  emergiu  com  a  eleição  de  1965:  aquele  entre  o  governo militar   cada   vez   mais   controlador   e   repressivo   e   o   governo   de   oposição de  base  populista  de  Negrão  de  Lima,  que  havia  sido  eleito  pela  coalizão PTB-PSD.    Por  volta  do  fim  dos  anos  60,  este  era  o  único  governo  nominal- mente  de  oposição  que  restava  no  Brasil,  uma  relação  dissonante  a  que voltaremos  abaixo.  A  extinção  do  Bemdoc  foi  função  do  contraponto  político que, na época governava a política relativa à favela.

É  interessante  observar  uma  tentativa  paralela  de  utilização  do  Bemdoc por   outro   organismo   estatal.   A   Comissão   Estadual   de   Energia   (CEE)   foi estabelecida por volta de 1963 durante o regime de Lacerda, oficialmente para fornecer eletricidade às favelas e para tratar de outras necessidades de energia do  estado  da  Guanabara  que  não  se  enquadrassem  nas  obrigações  legais  da companhia  privada, a  Light  canadense. A  CEE  deveria  também  tentar  acabar com a exploração dos moradores da favela (a “indústria das favelas”) por pessoas que possuíam relógios e redes de luz, moradores ou não das favelas, e cobravam taxas exorbitantes pelo uso dessa eletricidade.

Usando   como   base   muitas   das   favelas   organizadas   cujas   associações haviam  sido  estabelecidas  durante  o  período  de  Rios  no  Serfha,  a  CEE  pro- moveu  a  organização  nas  favelas  de  Comissões  de  Eletricidade  que  deviam ser   separadas   das   associações   de   favela   existentes.   Ela   optou   explicita- mente   por   esse   procedimento   e   também   pelo   controle   das   finanças   das comissões  por  meio  de  relatórios  financeiros  quinzenais  à  CEE,  de  forma  a evitar a corrupção que era sabidamente frequente nas associações dos mora- dores   de   favelas   (entrevista   com   o   coronel   Leitão,  diretor   da   CEE,  18   de novembro de 1969).

A implantação das Comissões de Luz foi entendida por muitos mora-  dores e líderes de favelas como uma tentativa  de  enfraquecer  ou  acabar  com as associações existentes, de modo a estender o controle estatal às favelas por meio da criação de dissidências e facções no interior das favelas (Primeiro Congresso de Favelas, 1964).39

Pode-se notar também que, além de pagar pela instalação do equipa- mento de eletricidade estatal (transformadores, postes, relógios etc.) com seu próprio dinheiro, os moradores das favelas tinham que pagar uma taxa extra de 20% sobre o total da conta de luz de cada favela (da Companhia Light), a ser depositada na conta de cada Comissão de Luz, aparentemente para serviços de manutenção. As contas deveriam  ser mantidas  no Banco  da Guanabara. As contas do banco estadual não precisam ser examinadas pelo Tribunal de Contas da União. Ao exigir que os fundos de manutenção fossem deposita- dos no banco estadual, o estado dispunha dos 20% acumulados da CEE e de outras fontes, como uma verba secreta a ser mobilizada para objetivos políticos não divulgados. Uma parcela significativa desses fundos estava sendo obtida pela exploração da necessidade de eletricidade dos moradores das favelas  e de sua necessidade de pagar mais por isso do que as pessoas de fora de favela.

Embora a CEE já houvesse estabelecido algumas Comissões de Luz por volta do fim de 1964 (Primeiro Congresso de Favelas, 1964), a mudança na administração  do  estado,  no  início  de  1966,  iniciou  um  período  de rápida irradiação da CEE nas favelas, processo paralelo à revivificação da Fundação Leão XIII.

Por  volta  de  meados  de  1966, a  CEE  dirigiu-se  ao  Bemdoc  requerendo  sua assistência  para  ajudá-la  a  persuadir  17  favelas  a  aceitarem  e  cooperarem com   a   CEE.  A   administração   do   Bemdoc   viu   o   pedido   como   um   desafio tanto  às  suas  capacidades  de  trabalho  social  como  aos  seus  objetivos  de desenvolvimento  comunitário. O  fato  de  esse  órgão  jamais  ter  trabalhado  na verdade  com  a  CEE  talvez  se  deva  à  rápida  deterioração  de  sua  posição  e  à sua  morte  iminente. Todavia,  o  episódio  é  mais  uma  vez  ilustrativo  da  tentativa essencialmente provocadora de usar a base técnica, o fundo e os objetivos sociais do Bemdoc para fins de controle político.

O empenho de Negrão para tomar em mãos todas as rédeas no início de 1966 podia ser também percebido na reconcentração do controle sobre as administrações regionais, mediante a reatribuição às repartições públicas centrais do governo do estado de tarefas que haviam sido transferidas às repartições regionais por Lacerda. Apenas mais tarde naquele ano, e  em  1967, houve novamente uma descentralização, acompanhada por uma reorganização, tendo já Negrão estabelecido suas linhas de comando.

Essas linhas de comando com relação às favelas são de especial interesse para  nosso  tema  do  contínuo  controle  sobre  essas  populações.  Os  elos  de comando  através  da  Fundação  Leão  XIII  e  da  CEE  já  foram  discutidos. Outro elo – a tentativa de vigiar a atividade política na favela – vinha da SSS, através de suas subdivisões semiautônomas em cada uma das repartições regionais, para  as  favelas.  Os  serviços  regionais  de  bem-estar  social  deviam  ajudar  a organizar as associações de favelas, supervisionar suas eleições, aprovar seus estatutos, aprovar  reparos  nas  construções, enquanto  as  associações  deviam ser  responsáveis  diante  deles  por  levantamentos  cadastrais  das  favelas, pelo controle  de  reparos  nos “barracos”, pela  prevenção  de  novas  construções  (!!) e  assim  por  diante  (Decreto  “N”,  n.  870,  15  de  junho,  1967,  Diário  Oficial  [GB], 19 de junho de 1967, ver Apêndice III).

Além disso, de acordo com essa  medida,  o  Estado  reconhece  apenas uma associação como o corpo representativo oficial da favela. Essa associação deveria representar mais do que 50% da população da favela. Se a associação  existente  age  de  má-fé  (por  exemplo,  deixando  de  apresentar quinzenalmente   relatórios   financeiros   ao   Estado   ou   não   depositando   os fundos  da  favela  especificamente  no  Banco  do  Estado  da  Guanabara),  a  secreta- ria  pode  designar  uma  junta  da  favela  de  sua  própria  escolha.  O  Estado, então,  tentou  exercer  controle  substancial  sobre  as  atividades  das  associações  de  favelas,  bem  como  sobre  suas  populações.  A  realização  da  medida, como  em  muitos  dos  planos  relativos  a  favelas,  foi  ineficiente  e  inconsistente,  mas  a  medida  em  si  mesma  é  indicativa  do  ponto  de  vista  de  que  as favelas devem ser controladas.

Os  administradores  regionais,  além  disso,  deviam  criar  um  conselho  de representantes   de   diferentes   categorias   sociais   (organizações   de   classe)   – uma  de  cada  negócio,  favela  ou  grupo  de  interesse.  Esses  conselhos  deviam ajudar a formular e a executar a política administrativa regional. Apenas dois ou  três,  como  na  região  de  Copacabana,  chegaram  a  funcionar.  Certamente, um  representante  de  todas  as  favelas  de  uma  administração  regional  era muito pouco representativo da diversidade de problemas, interesses, necessidades  e  objetivos  das  favelas  em  muito  diferenciadas  e  de  suas  populações igualmente  diversificadas  (ver  A.  Leeds,  1969).  Esse  solitário  representante parece  ter  sido  completamente  apagado  pelos  outros  grupos  representativos nos conselhos – nos poucos que funcionaram. Aqui, novamente, somos leva- dos  à  conclusão  de  que  o  objetivo  era  o  controle,  de  que  o  pretendido  era a   cooptação;   e   de   que   a   difusão   dos   interesses   políticos   do   Estado   para as  favelas  por  intermédio  desses  conselhos  era  desejado  pelo  governador  e seus conselheiros.

Nos últimos anos da década de 60 e nos primeiros da década de 70, sobre- pairam  a  ameaça  e  a  possibilidade  de  remoção  e  relocalização  forçada,  em massa,   contrárias   ao   desejo   enfaticamente   vociferado   e   insistentemente expresso  pelos  próprios  moradores  das  favelas  e  pela  Federação  das  Associações das Favelas da Guanabara (Fafeg), à qual voltaremos mais adiante.

O que é curioso, nessa atmosfera de coerção governamental e de violência desenvolvida na base da política nacional estabelecida pelo BNH com a – digamos, coagida – cooperação do governo estadual, é a contínua tentativa, em pequena escala, de oferecer uma solução alternativa à remoção pelo organismo experimental  do  Estado, a  Codesco  (Companhia  de  Desenvolvimento  Comunitário), criada no início de 1968.

A  Codesco  foi,  em  parte,  uma  continuação  ou  modificação  da  experiência  da  AID  com  o  Bemdoc.  Em  meados  de  1966,  três  especialistas  em  habitação (ver Wagner, McVoy e Edwards, 1966, doravante chamados “Plano Wagner”) trazidos  de Washington  pela  AID,  tendo  visitado  favelas  e  revisto  os  programas   urbanos   e   de   favelas,   propuseram   suas   ações   principais,   concebi- das  como  um  único  plano:  o  governo  deveria  (a)  promover  um  programa  de ajuda  mútua  de  desenvolvimento  habitacional-comunitário  e  (b)  criar  uma autoridade  da  área  metropolitana  para  tratar  de  todos  (e  não  apenas  da favela) os problemas do Rio de Janeiro e suas cidades-satélites mais ou menos importantes  (Nova  Iguaçu,  Nilópolis,  São  João  de  Meriti,  Duque  de  Caxias, Niterói,  São  Gonçalo,  cada  uma  com  400.000-500.000  habitantes,  e  algumas cidades  menores  como  Queimados,  Belford  Roxo  etc.)  com  uma  população, no total, de cerca de 3.000.000 de habitantes espalhada por ambos os lados da baía de Guanabara.

A AID levou ao governo do estado essas propostas. Depois de grande demora e de manobras consideráveis – que podemos entender como relacionadas às manobras  políticas  do  governador  no  tratamento  das  propostas  em  vista  de todo  o  contexto  político  que  circunscrevia  o  seu  acesso  ao  cargo  –,  Negrão designou os presidentes da Cohab e da Sursan (Superintendência de Urbanização e Saneamento), a CPO (Coordenação de Planos e Orçamento do Estado da  Guanabara, a  comissão  estadual  de  planejamento)  e  a  Copeg  (Companhia para  o  Progresso  do  Estado  da  Guanabara)  como  uma  comissão  para  avaliar essas propostas e considerar um estudo de viabilidade do programa de ajuda mútua de desenvolvimento comunitário.

Em suma, os três primeiros órgãos, como era de se esperar pelo que dissemos  antes  sobre  um  deles,  não  mostraram  interesse. A  Cohab,  nessa  época, estava  sob  o  controle  político  do  BNH,  apesar  do  fato  de  seu  presidente  ser designado pelo governador do estado. Nem a Sursan nem a CPO eram de forma alguma  órgãos  adequados  para  realizar  a  tarefa  proposta,  embora  fossem relevantes para alguns de seus aspectos. Foi a Copeg, da qual uma das funções principais  era  estimular  o  setor  privado  –  indústria,  finanças,  construção  e afins –, que encampou o projeto com interesse.

 

Isso é particularmente interessante em vista dos contrapontos que vimos discutindo,   porque   o   pensamento   econômico   orientador   da   liderança   da Copeg   era   institucionalista,   apesar   das   formas   monetaristas   e   dos   tipos de  operação;  seus  chefes  de  então  haviam  tido  importantes  ligações  com ambos  os  campos  do  pensamento  econômico  nas  épocas  em  que  estiveram no  poder  do  governo  federal. É  também  significativo  que  tenha  sido  a  Copeg a  tomar  para  si  essa  tarefa,  porque  (a)  a  Copeg  era  mais  livre  do  que  outros órgãos estatais que tinham uma ligação anterior com as forças agora controla- doras  do  governo  federal  e  (b)  seu  quadro  de  diretores  contava  com  o  governador  e  muitos  secretários-chave  de  seu  gabinete  (alguns  dos  quais  posteriormente forçados pelo governo federal a se retirar).

Esses pontos nos parecem importantes porque  todos  os procedimentos de Negrão quanto a essa  questão  são coerentes  com seus  esforços  de 1956 e 1957, e de seu governo de 1966-1970, para fazer algo útil para as favelas, mas no último período todas as possibilidades foram cada vez mais restringi- das pelo governo federal. Por exemplo, pelo seu controle direto sobre o secretário de Segurança de Negrão, França, que frequentemente contradizia diretamente as ordens e compromissos de Negrão, agindo cada vez mais de forma independente; ou pelas remoções de outros  secretários  por pressão do governo central; ou pela substituição sob pressão  do chefe  da Casa  Civil de Negrão, Luís Alberto Bahia, antigo populista de tradição mais ou menos getulista, por Carlos Costa, primo do então presidente do Brasil, Marechal Costa e Silva. Sob as condições políticas de então, fazer algo pelas favelas significava também a extensão do controle sobre elas – compreende-se assim a utilização de Negrão, como argumentamos, da Fundação Leão XIII e da CEE, seu Decreto n. 870 e sua presença na inauguração da Ação do Brasil.40

A  Codesco  foi  estabelecida  como  uma  subsidiária  autônoma  da  Copeg, com  membros  do  quadro  desta  última  ocupando  funções  de  presidente  e membros do seu quadro. Baseada no estudo de viabilidade de três favelas da Zona Norte (Brás de Pina, Mata Machado e Morro União), a Codesco, com alguns jovens  e  imaginativos  sociólogos  e  arquitetos,  começou  a  completar  planos de  urbanização  para  duas  das  três  favelas  estudadas,  e  outra  acrescentada posteriormente.41  A urbanização incluía regularização, pavimentação e iluminação  das  ruas,  instalação  de  redes  de  água,  esgoto  e  eletricidade,  auxílio financeiro  e  mínima  supervisão  da  reconstrução  de   casas   (geralmente em mutirão), além da administração da venda de terras que haviam sido expropriadas pelo Estado.

Do  ponto  de  vista  dos  moradores  da  favela,  o  programa  da  Codesco  tem rigoroso sentido econômico. Eles permanecem na área, ou com fácil acesso a seu mercado de trabalho, minimizando assim os custos de transporte. Podem construir  casas  sólidas  mais  apropriadas  a  seus  orçamentos  domésticos,  no ritmo de suas possibilidades econômicas; podem projetá-las de modo adaptado às suas necessidades domésticas e ao seu estilo de vida. Um estudo das atitudes dos  moradores  com  relação  à  tentativa  da  Codesco  de  urbanização  mostrou uma reação geralmente favorável ao programa.

[...]

O  plano  da  Codesco  está  intrinsecamente  em  contradição  com  as  suposições subjacentes e com os interesses imanentes nos tipos de cálculo envolvidos   nas   abordagens   monetaristas   do   governo   federal,   como   representado   pelas   políticas   e   ações   do   BNH,   com   relação   à   “habitação”   ou   ao “problema  da  favela”. Tal  plano,  baseando-se  em  grande  medida  nos  recursos   e   julgamentos   dos   moradores   das   favelas,   não   é   um   programa   que favoreça os interesses da indústria de construção civil, nem do BNH, embora este   último   tenha   financiado   em   parte   a   Codesco,   tampouco   das   instituições financeiras.

Inerente  a  essa  contradição,  nos  contrapontos  do  Estado  federal  e  nas dissonâncias   monetaristas-institucionalistas   que   temos   traçado,   estava   o surgimento   de   um   órgão   administrativo   federal   em   oposição   à   Codesco. É   uma   curiosa   ironia   que   a   Chisam   –   a   Coordenação   de   Habitação   de Interesse  Social*  da  Área  Metropolitana  do  Grande  Rio  de  Janeiro  –  se  tenha desenvolvido  a  partir  de,  ou  conforme  a,  segunda  recomendação  do  “Rela- tório  Wagner”,  aquela  relativa  a  uma  autoridade  metropolitana  para  tratar conjuntamente de alguns problemas em escala regional, inclusive favelas e suas causas. É claro que a tentativa do “Relatório Wagner” era um plano que envolvia dois níveis de ação baseados em um ponto de vista comum e em objetivos, estratégias e formas de implementação comuns. É claro também que o programa de favelas foi proposto não apenas  como  uma experiência de reabilitação, mas  como  modelo-base,  generalizável,  para  o  tratamento da maior parte das favelas dentro de um quadro de referência de planeja- mento metropolitano racional e reorganização regional.

A  Chisam,  criada  pelo  Decreto  Federal  n.  62.654,  de  3  de  maio  de  1968, quatro   meses   depois   da   criação   da   Codesco,   tinha   como   diretor-chefe nessa  época  o  então  ministro  do  Interior,  general  Afonso  de  Albuquerque Lima, sob cuja égide também ficou o BNH. Foi criada, ao que se disse (Chisam, 1967:  78),  em  função  do  reconhecimento  de  que  o  problema  da  favela  – encontrado  praticamente  em  toda  cidade  do  Brasil,  não  apenas  no  Rio  – é  um  problema  nacional, que  requer  ação  nacional  para  resolver  problemas criados   pela   falta   de   recursos,   pela   diversidade   de   órgãos,   por   políticas habitacionais  inadequadas  por  outros  fatores  que  contribuem  para  o  surgi- mento   de   favelas.   Reconhecia-se,   finalmente,   que   esses   problemas   não podiam   ser   resolvidos   em   nível   local,   municipal   ou   estadual,   mas   apenas  em  nível  nacional,  em  cooperação  com  entidades  estaduais  ou  municipais.   Em   parte,   as   soluções   pareciam   envolver   o   controle   dos   fluxos migratórios,  o  que  não  podia  ser  resolvido  no  nível  dos  governos  estaduais Não  ficou  claro  por  que  apenas  a  Chisam  foi  criada,  não  tendo  sido  criados organismos   análogos   em   outras   importantes   áreas   urbanas,   ao   que   nos consta.  As  razões  parecem  ser  principalmente  políticas,  como  indicamos, uma   vez   que   outras   cidades,  como   Recife   e   Salvador,  têm   conjuntos   de áreas  invadidas  por  posseiros  de  tamanho  comparável  às  do  Rio  e  geral- mente  em  piores  condições. A  criação  do  BNH  e  de  seu  Sistema  Financeiro da Habitação (ibid.: 7) abriu novas possibilidades, inclusive a da Chisam.

[...]

No  Rio  de  Janeiro,  existem  283  favelas,  a  maioria  delas  –  36  (sic!)  – localizada  na  6ª  Região Administrativa  [isso  está  errado;  havia  apenas 16 nessa região – ver Cedug, 1963, Apêndice 4: 60], que abrange os bairros de Ipanema, Leblon, Lagoa, Jardim Botânico e Gávea, precisamente a região mais aristocrática da Guanabara, onde se situam as casas mais luxuosas, as terras mais valorizadas e os clubes mais finos (...)

Mais adiante apresentamos um artigo de Gilberto Coufal, diretor do BNH e coordenador da Chisam, no qual são estudadas as discussões sobre urbanização e remoção, e se conclui afirmando que a política seguida  pelo  Governo  tornará  possível  a  modificação  do  programa físico e estético das áreas faveladas, integrando terras por elas ocupadas aos bairros em que se situam, e transformando a mentalidade de  seus  moradores  que, não  se  considerando  mais  como  favelados, serão também vistos pela comunidade como cidadãos normais.

 

Outro  ponto  que  vale  a  pena  assinalar  é  que  a  Chisam  estabeleceu  como política,  em  suas  primeiras  reuniões,  que  ela  seria  um  corpo  coordenador, porém não executivo dos trabalhos. A Chisam orientaria:

...  o  trabalho  conjunto  de  setores  do  Estado  de  tal  forma  que  suas tarefas  se  complementem  umas  às  outras.  Para  a  execução  des- sas  tarefas  específicas  deverão  ser  creditados  por  nomeação  dos governos dos dois estados [Rio de Janeiro e Guanabara] aqueles órgãos especializados  em  cada  setor  de  atividade  necessária  para  o  desenvolvimento  de  cada  tipo  de  programa  a  ser  executado  (Chisam, 1969: 13).

 

No  âmbito  dessa  política,  os  seguintes  organismos  foram  autorizados  a agir  na  esfera  social:  a  SSS  da  Guanabara, a  Fundação  Leão  XIII, a  Secretaria de  Trabalho   e   Serviços   Sociais   do   Rio   de   Janeiro   e  Ação   Comunitária   do Brasil. Para agir na criação de novas habitações: as Cohabs de ambos os esta- dos.  Para atuar na produção de casas nas favelas para a substituição dos barracos:  Codesco  (apenas  na  Guanabara;  nenhum  órgão  foi  designado  para  o estado  do  Rio,  o  que  indica  que  a  Chisam  não  tinha  intenção  de  prosseguir a urbanização lá).

[...]

Essas ações podem ser rapidamente resumidas. Elas consistem na remoção total de pelo menos as seguintes favelas – (todas na Zona Sul): Jóquei Clube (cerca de 200 pessoas), Rio Rainha (+ 200), Alto Solar (+ 600), Ilha das Dragas (+ 1.800), Babilônia-Chapéu Mangueira (+ 3.500), Macedo Sobrinho (+ 4.000), Praia do Pinto (+ 7.000), Catacumba (+ 12.000) e partes do Parque Proletário no 1 da Gávea – um total de cerca de 30.000 pessoas. Estas foram relocalizadas em projetos como a Cidade de Deus, no longínquo e inacessível distrito de Jacarepaguá; na Cidade Alta, no distante Cordovil; no conjunto do Guaporé, e outros. Aqueles que não tinham capacidade de pagar por essas unidades habitacionais eram mandados “temporariamente” para os Centros Habitacionais de Bem-Estar Social e para os mal equipados albergues.

Os efeitos dessas remoções e relocalizações – em todos os casos forçadas, contrárias  à  vontade  dos  moradores  e  em  alguns  casos  acompanhadas  de ação policial, tratores, fogo (que se dizia acidental) e outras formas de pressão, incluindo  ameaças  de  não  pagamento  das  indenizações  pelas  casas  (isto  é, propriedade privada dos moradores da favela) destruídas – foram a profunda desestruturação, para  um  grande  número  de  pessoas, de  sua  organização  de vida  e  um  desequilíbrio  nas  estratégias  domésticas  para  lidar  com  a  difícil estrutura  econômica  que  os  moradores  das  favelas  tiveram  que  enfrentar (ver  A.  Leeds,  1970:  243-48).  Particularmente  agudo  foi  o  declínio  na  renda, acompanhado  de  uma  desconcertante  alta  dos  custos,  especialmente  das amortizações e dos transportes.50  Os ex-moradores das favelas são engolfados por  uma  interminável  onda  de  novos  gastos, contra  a  qual  a  política  salarial do  governo  federal,  junto  com  a  correção  monetária  sobre  as  amortizações, torna  impossível  qualquer  reação  para  uma  grande  parcela  deles. Sua  única solução é voltar para as favelas, ou criar novas delas em outro lugar. A situação é vividamente descrita em um longo e detalhado artigo do Correio da Manhã51 (21/1/1971), que transcrevemos em parte:

[...]

Em   suma,  a   Chisam,  quando   criada   –   seja   deliberadamente   com   este fim  ou  não  –,  representou  de  facto  uma  proposta  oposta  à  ênfase  de  Negrão e  do  Estado  na  urbanização:  a  da  construção  habitacional  em  massa  para permitir  a  relocalização  dos  moradores  da  favela.52   A  oposição  das  aborda- gens foi claramente reconhecida pelo pessoal da Codesco (Machado e Santos, 1969: 55):

Os  dois  órgãos  responsáveis  pela  política  habitacional  das  favelas na   Guanabara   têm   poderes   básicos   e   princípios   diametralmente opostos.  Essa  situação  indica  não  uma  flexibilidade  e  adaptação  à realidade por parte do poder público [le Pouvoir], mas sobretudo sua ambiguidade.  E,  para  complicar  ainda  mais  os  dados  do  problema, a  plataforma  da  campanha  do  atual  governador  (eleito  em  1965) desenvolveu-se em torno da defesa da urbanização, ao passo que a Chisam, órgão do governo central, opta pela expulsão, muito embora de modo mais flexível do que os primeiros esforços da Cohab.

 

A criação de dois organismos, com um intervalo de poucos meses entre  um e outro, que tratam dos mesmos problemas, ainda  que  com  orientações radicalmente diferentes e bases de apoio tão nitidamente diferentes, é um fenômeno muito revelador não apenas com relação à favela, ou, em um âmbito mais geral, com relação à política social e econômica, mas do conflito nas  políticas  nacionais  brasileiras. A  criação  da  Chisam,  um  braço  do  BNH  e do  Ministério  do  Interior,  reflete  a  institucionalização  a  nível  nacional  das políticas  econômicas  e  sociais  e  uma  ideologia  que  funciona  para  intensificar   o   controle   exercido   pelas   elites,  servir   a   seus   interesses   políticos   e econômicos, concentrar a riqueza em poucas mãos e para controlar e reprimir qualquer   pessoa   que   busque   impedir   esses   desenvolvimentos.  A   política relativa à favela é um espelho de todas essas institucionalizações, operações, controles  e  repressões;  na  área  do  Rio,  a  Chisam  é  o  agente  da  hierarquia nacional, como o BNH o é para o país como um todo.

Como  um  toque  final  desse  processo  de  controle  e  repressão, crescente  e centralizado, e  a  correspondente  política  relativa  à  favela  em  âmbitos  nacional  e  estadual, podemos  voltar  rapidamente  à  Fafeg. A  Fafeg  reagiu  asperamente  às  políticas  da  Chisam,  como  reagira  às  do  CEE  e  do  Decreto  n.  870. A  Federação  das  Associações  das  Favelas  do  Estado  da  Guanabara,  a  única confederação  de  favelas  existente  em  âmbito  estadual, foi  fundada  em  1964. Por volta de 1968, depois de alguns altos e baixos, ela se tornara um corpo cada vez mais articulado e de peso, representando ao menos cem favelas do Rio.

[...]

Coerente  com  as  posições  tomadas  no  congresso,  a  Fafeg  tratou  imediatamente  de  impedir  a  ação  contra  a  primeira  favela  (Ilha  das  Dragas, próxima  a  um  clube  social  de  elite  na  lagoa  Rodrigo  de  Freitas, na  Zona  Sul) a  ser  ameaçada  de  remoção  pela  Chisam,  que  agia  por  intermédio  de  seus órgãos  executivos  subordinados. Quase  que  imediatamente, todos  os  direto- res   foram   presos   em   uma   ação   policial   que   incluiu   sua   localização   nas favelas e grande coordenação para que a pressão anterior de um não permitisse aos  outros  escaparem. Estava  bastante  claro  que  a  polícia  estava  muito  bem informada  com  relação  às  identidades  dos  líderes  (nunca  ocultadas),  suas atividades  e  localização  em  momentos  específicos.  Obviamente,  os  líderes foram  mantidos  incomunicáveis  por  alguns  dias,  e  ameaçados  de  severas consequências  caso  a  oposição  continuasse.54    Os  homens  foram  soltos  por causa da pressão da ala mais liberal da Igreja católica no Rio, que, com outros setores da Igreja por todo o Brasil orientados para a ação social, só começaram a ser severamente reprimidos pelo governo federal em 1969.

Desde  a  prisão  em  massa,  as  atividades  públicas  da  Fafeg  praticamente cessaram   e   não   houve   nenhuma   tentativa   de   impedir   as   remoções   em andamento  das  favelas  da  Zona  Sul. Se  tal  esforço  tivesse  sido  feito, aquelas tentativas   de   impedir   tal   remoção   teriam   sido   enfrentadas   por   soldados armados  com  revólveres,  como  aconteceu  em  1964  quando  o  pessoal  da Fafeg  tentou  impedir  a  expulsão  do  Morro  do  Pasmado,  a  primeira  favela a ser removida pela Cohab (reportado nos jornais da época).

Conclusão

Os fatos e as relações apresentados neste trabalho para as favelas da Guanabara são, em certo sentido, apenas um diagnóstico da progressão de modelos maiores de eventos e relações na estrutura social brasileira como um todo.

O recente enfraquecimento da Fafeg, as remoções de favelas que prosseguem, as intervenções legais e administrativas de órgãos estatais, tudo isso acelerou o processo de eliminação dos meios pelos quais as favelas podem se comunicar com os níveis administrativos do Estado. A situação reflete as atuais tendências políticas elitistas nas quais a comunicação se tornou unilateral, de cima para baixo, para todo mundo. A coerção e repressão dos moradores de favela, assim como de seus líderes, e a erradicação das próprias comunidades, em um total desrespeito pela vontade explícita das pessoas envolvidas e pela consideração de alternativas, equipara-se com a coerção e a repressão, com o uso amplamente documentado de tortura, dos camponeses e suas ligas e sindicatos, dos sindicatos operários, dos estudantes e suas entidades, da Igreja e seus membros socialmente ativos, dos intelectuais e suas organizações e meios de expressão, dos jornais, dos negócios, das tribos indígenas (cujo etnocídio é justificado pelo interesse nacional por leis recentemente promulgadas que permitem remoções forçadas e ressocialização não diferentes daquelas impostas aos moradores de favela).

O esboço da história dos últimos trinta anos mostrou a correlação próxima entre forma, conteúdo e modalidades operacionais do governo federal com seus representantes em dado momento e as políticas administrativas dos governos locais (por exemplo, o Estado) com relação às favelas. Como a forma, as ideologias e os modos de operação, também mudaram as políticas administrativas locais. Assim, onde houve mudanças no que se chama “populismo controlado” (Estado Novo de Vargas; as fases iniciais do governo Jânio Quadros), “populismo democrático” (governo Vargas, 1951-54; Kubitschek; a segunda fase do governo de Quadros; o governo Goulart), o “elitismo nacionalista” (a presidência de Dutra) e o “elitismo de favorecimento dos interesses estrangeiros” (todos os governos desde 1964), essas mudanças têm seu paralelo em nível local, como mostramos.

 Conforme a orientação do governo central exigiu mais ou menos controle sobre as massas, assim se manifestou essa exigência mutável em várias formas e operações de política e de ação com relação às favelas. Contudo, em qualquer governo, por mais populista e “democrático” que seja, um forte elemento de controle e manipulação sempre foi importante por pelo menos três razões. Primeiro, em pequena escala, o controle e a manipulação foram  necessários por simples razões táticas e políticas, isto é, eleitorais. Segundo, o controle foi cada vez mais necessário porque as populações faveladas sabidamente já representavam uma ameaça à ordem política e social estabelecida. Terceiro, o controle e a manipulação foram necessários em termos da manutenção das fronteiras de classe por parte daqueles que têm acesso aos governos federal e estadual, dos quais todos, praticamente sem exceção, foram membros de uma ou outra facção de elite das classes superiores no Brasil. Em determinados momentos e locais, o controle tem sua rationale estabelecida com base nas várias combinações dessas razões, embora com pesos diferentes, dependendo do modelo político vigente na época.

Assim, as oscilações entre as várias formas de governo – às vezes abrindo superficialmente maiores possibilidades para as populações faveladas, em outras fechando-as novamente – deixaram as favelas e, mais geral e precisamente, o proletariado sem uma voz significativa nas decisões sobre seus próprios destinos.

Todas as tentativas feitas nesse período de trinta anos para garantir um grau de liberdade ou responsabilidade aos moradores de favelas ou ao proletariado como um todo têm se deparado sempre com o simples abandono ou falta de continuidade, ou com a oposição direta na forma de políticas e ações opostas que serviram, ambas, para anular essas iniciativas. Dada a falta generalizada de resposta e responsabilidade governamentais, os moradores da favela são forçados a continuar procurando melhorar sua condição através dos canais racionalmente elaborados, paternalistas, individualistas, para a obtenção de favores e a satisfação de interesses mediante a troca de benefícios. Quando tentativas de articulação de interesses das massas são tão sistematicamente reprimidas, o avanço pessoal, da favela ou da classe deve se desenvolver em níveis menos ameaçadores, até que a remoção de barreiras permita um fluxo ascendente de comunicação acerca de valores, opções e decisões, e um fluxo descendente de reconhecimento, serviços e bens.

 

Referência

LEEDS, Anthony; LEEDS, Elizabeth. Favelas e Comunidade Política: a continuidade da estrutura de controle social. In: LEEDS, Anthony; LEEDS, Elizabeth; LIMA, Nísia Trindade (org.). A sociologia do Brasil urbano. 2ª edição – Editora Fiocruz. Rio de Janeiro, 2015.  p. 243 – 325.

Veja também