Favelas na obra de Lima Barreto (artigo)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Autoria: Romulo Costa Mattos[Notas 1][Notas 2].

O objetivo deste artigo é analisar o discurso de Lima Barreto sobre as favelas cariocas. O conto “O moleque”, de 1920, é visto como exemplar no sentido da valoração positiva dos moradores das favelas, enquanto as crônicas publicadas na revista Careta, entre aquele ano e 1921, são tratadas como amostras da face mais crítica do intelectual, que censurou os poderes públicos pelas condições de moradia de tais habitantes

Lima Barreto e as favelas[editar | editar código-fonte]

Lima Barreto foi um dos escritores da Primeira República que mais defenderam os moradores das favelas em seus textos. O curioso é que até 1920 o escritor não havia demonstrado muito interesse por tal paisagem. O que o teria levado a dispensar atenção ao tema das favelas a partir desse ano?

Em primeiro lugar, no censo publicado em 1920, foram observados “muitos habitantes em alojamento assaz impróprios e nas mais precárias condições de habitabilidade, tais como (...) casas cobertas de sapé, palhoças, barracões de madeira e até mesmo verdadeiras tocas” (apud: RIBEIRO, 1997: 195,196). Assim, o número de “barracos” na então capital federal era estimado em 2.500 pelos observadores (LOBO, CARVALHO, STANLEY, 1989: 106). Isso porque, entre 1910 e o ano em que tal recenseamento foi divulgado, haviam surgido diversas favelas no tecido urbano carioca, que apresentavam em comum a localização nas encostas dos morros e a proximidade de importantes fontes de emprego. Na década de 1920, o processo de favelização na cidade tornou-se “multidirecional e incontrolável” (ABREU, 1994: 38), tendo sido esse fenômeno incrementado pela compra de lotes pelo trabalhador suburbano para a realização da chamada autoconstrução (RIBEIRO, 1987: 197,198). Portanto, não foi sem razão que Lima Barreto passou a tratar essas moradias como sendo a representação por excelência da pobreza na capital, condição essa que, nos decênios anteriores, reservara às casas de cômodos – conforme é possível verificar em livros como Memórias do Escrivão Isaías Caminha1, de 1909, e Triste Fim de Policarpo Quaresma2, publicado em folhetim em 1911 e editado em livro no ano de 1915.

Em segundo lugar, ao longo de 1920, o Correio da Manhã empreendeu uma campanha pela construção de casas populares, na qual empregou discursos  bastante pejorativos contra a população que vivia nas habitações coletivas e nas favelas. Dessa forma, não teria sido coincidência o fato de o intelectual boêmio ter tratado dos “casebres” e dos “barracões” quando a questão da habitação explodiu na grande imprensa. Levando-se em consideração a forte rivalidade que havia entre a aludida empresa de comunicação e o escritor – além, é claro, da própria “função crítica, combatente e ativista” de seus escritos (SEVCENKO, 1999: 162) –, é tentadora a hipótese segundo a qual esse último tenha entrado em franca concorrência com aquele jornal. Nesse caso, o seu objetivo seria o de apresentar uma imagem mais digna dos moradores das favelas.

Em “O Moleque”, Lima Barreto enfocou as favelas do subúrbio de Inhaúma, que preservara o seu nome tupi numa época em que a febre modernizadora levava os logradouros da cidade a serem rebatizados com “nomes banais de figurões ainda mais banais”. Se em sua obra os subúrbios guardariam valores éticos universais pouco praticados no centro e na zona sul por conta da busca pela “civilização”, o que dizer de um lugar que, além de suburbano, resguardara a sua denominação indígena? No mínimo, que ele portaria uma dimensão cultural altamente resistente, em oposição ao artificialismo reinante naquelas áreas privilegiadas pelos poderes públicos.

Nessa perspectiva, Inhaúma seria um alentado refúgio cultural. Não obstante, esse subúrbio teria outros esconderijos ainda mais protegidos, que guardariam crenças e valores condenados pelo Rio de Janeiro que se civilizava:

Fogem para lá [Inhaúma], sobretudo para os seus morros e escuros arredores, aqueles que ainda querem cultivar a Divindade como seus avós. Nas suas redondezas, é o lugar das macumbas, das práticas de feitiçaria com que a teologia da policia implica, pois não pode admitir nas nossas almas depósitos de crenças ancestrais (grifo nosso).

 

Argutamente identificada por Lima Barreto, essa intolerância policial com os resquícios de uma ordem social tida como ultrapassada – dentre os quais figuravam as religiões afro-brasileiras – remetia à conjuntura da Regeneração, que se expressava nos seguintes fatores: a condenação dos hábitos relacionados à sociedade tradicional, a negação da cultura popular, a expulsão das classes pobres do centro da cidade e a promoção do cosmopolitismo (SEVCENKO, 1999: 30).

Vimos que o cronista constatou a abundância das práticas associadas à cultura proveniente dos povos africanos em Inhaúma e em seus morros. O que Chalhoub (1990: 186) definiu como sendo a “cidade negra” no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, na verdade, sobreviveu ao pós-abolição. Se antes ela se espraiava por toda a capital, a gestão reformista de Pereira Passos acabou criando redutos de negros e pobres em geral, que passaram a se concentrar em lugares como a região portuária, a Cidade Nova, os subúrbios e as favelas (ALVITO, 2001: 271).

Outra observação certeira de Lima Barreto foi a de que o “barracão é uma espécie arquitetônica muito curiosa e muito especial àquelas paragens da cidade”. De fato, no período de 1920 a 1933, as circunscrições que reuniam a maior quantidade de casas de madeira e “casebres” eram: Engenho Novo, Méier, Piedade, Madureira, Realengo e... Inhaúma. Recuando para o momento de 1906 a 1920, constatamos que o maior índice de crescimento de construções também ocorrera na zona suburbana ou, mais particularmente, nas freguesias de Irajá e, novamente, Inhaúma (RIBEIRO, 1997: 183,196).

Lima Barreto estava atento às transformações espaciais ocorridas no Distrito Federal. O que existe de mais marcante em seu texto é a recusa aos estereótipos relacionados às favelas e aos seus moradores. Assim, esclareceu que o “barracão” não era “a nossa conhecida choupana de sapê e de paredes ‘a sopapos’. É menos e é mais. É menos, porque em geral, é menor, com muito menos acomodações; é mais, porque a cobertura é mais civilizada; é de zinco ou de telhas”. Aqui cabe dizer que, diferenciando o “barracão” da choupana de sapê, o autor aliviava os habitantes da primeira forma habitacional da recorrente associação à população interiorana, cuja imagem podia ser bastante pejorativa nesse período.

Essa comparação ao interior do Brasil através da arquitetura popular assumia um caráter demeritório porque, de acordo com os discursos da classe intelectual, o seu morador típico seria o Jeca Tatu. Lembre-se que, pouco antes de 1920, Monteiro Lobato passara a apresentar essa personagem não mais como o resultado de uma formação mestiça, mas como o fruto de doenças epidêmicas

– o que apontava para a importância de uma educação sanitarista (SCHWARCZ, 1993: 249). Certa vez, o médico Castro Peixoto, referindo-se ao aspecto dos morros, declarou: “Para maior irrisão, vêm juntar-se àquele as choças do nosso interior – de sapê e paredes de ‘sopapo’, ou seja, as mesmas em que por lá vivem os nossos Jecas, como se prolongassem até aqui o seu habitat”.

Negar a unidade de formas entre as casinhas de sapê e os “barracões” podia trazer benefícios simbólicos aos habitantes desses últimos, que, dessa maneira, eram poupados dos estereótipos segundos os quais viveriam sem cuidados sanitários e não integrariam o mundo civilizado. Essa conclusão, logicamente, não autoriza o pensamento de que Lima Barreto partilhava das visões negativas a respeito dos moradores do interior do Brasil. Tanto que, em 1919, criticara firmemente o arrazoado de Monteiro Lobato sobre a falta de hábitos higiênicos das gentes da roça, ao dizer que esse problema seria antes de natureza econômica e social do que de ordem médica. Vale a pena ressalvar que o escritor carioca mantinha uma relação cordial com o criador do Jeca Tatu...

Na continuação da passagem em que diferenciava o “barracão” da choupana de sapê, o intelectual boêmio se dedicou a um expediente comum entre os repórteres, que era a detalhada descrição do primeiro tipo de construção aqui mencionado. Por um lado, essa atitude expressava certo estranhamento: “o ‘barracão’ é uma espécie arquitetônica muito curiosa”. Por outro, significava uma denúncia, o que combinava perfeitamente com a natureza ativista de seus escritos: “Há alguns com dois aposentos; mas quase sempre, (...) só possui um. A cozinha é feita fora, sob um telheiro tosco, um puxado no telhado da edificação, para aproveitar o abrigo de uma das paredes da barraca; e tudo cercado do mais desolador abandono”.

Mas Lima Barreto afastava-se dos intelectuais da Regeneração por não descrever os “barracões” e os seus moradores de forma homogênea – e na época a generalização em torno das favelas era bem difundida. Quanto ao referido estilo arquitetônico, esclarecia: “Há duas espécies. Em uma, as paredes são feitas de tábuas; às vezes, verdadeiramente tábuas; em outras, de pedaços de caixões”. E seguia evitando a uniformização: “O barracão de Dona Felismina era de um só aposento, mas o da vizinha, Dona Emerenciana, tinha dous”. A moradia de Antonia, por sua vez, “era a mais modesta: as paredes do seu barraco eram de taipa”. Já a Baiana, que era “rica”, habitava “uma das poucas casas de tijolo da Rua dos Espinhos”.

Acima de tudo, o literato evitava criticar a arquitetura de tais moradias. Não encontramos no conto “O Moleque” condenações à suposta promiscuidade, à precária condição sanitária e à presença de contraventores nas favelas – o que é fácil de localizar na grande imprensa. Ao contrário, as personagens subalternas são donas de “uma dignidade superior e universal” (SEVCENKO, 1999: 168, 169),  sendo  essa  característica  sublinhada  em  sua  obra.  Assim,  “Dona Emerenciana era casada com o Senhor Romualdo, servente ou coisa que o valha em uma dependência da grande oficina do Trajano. Era preta como Dona Felismina e honesta como ela”.

Ao dizer que Dona Felismina e Dona Emerenciana eram negras e honestas, o escritor contradizia o reiterado discurso de que os negros e os moradores das favelas, além de desprovidos de moral, pertenceriam às “classes perigosas”. Outro ponto interessante foi a inclusão da profissão do Senhor Romualdo em sua apresentação ao leitor. De certo modo, o autor negava que tais pessoas seriam dignas de um processo por vadiagem. Aliás, é notável que a maioria dos habitantes dessa área tomada por “barracões” tivesse uma ocupação profissional.

Dona Felismina, “respeitada por sua honra e virtude”, lavava para fora e era dona de uma pequena pensão que seu marido deixara de herança. Esse, por sua vez, trabalhara como guarda-freios da Estrada de Ferro da Central do Brasil, tendo morrido em um desastre – logo, um acidente de trabalho. Colaborador  de jornais  operários  –  e  simpatizante  de idéias socialistas e anarquistas –, Lima Barreto devia saber que uma das principais reclamações contidas naqueles veículos de comunicação referia-se aos acidentes no trabalho – sendo esses um item relevante na experiência da exploração cotidiana vivida pela classe trabalhadora (MATTOS, 2005: 47, 48). Não obstante, a maior parte da população ocupada em transportes concentrava-se nos distritos centrais e também em Inhaúma, onde estavam situadas as oficinas da Central (LOBO, CARVALHO, STANLEY, 1989: 112).

Até a venda local era freqüentada por “carroceiros, verdureiros, carvoeiros, de passagens; habitués do parati, como os há na cidade de chopps, gente sem ter que fazer que não se sabe como vive, mas que vive honestamente; um ou outro degradado da sua condição anterior ou nascimento”. Aqui Lima Barreto falava sobre trabalhadores com profissões formais e outros que se entregavam à viração diária, sem utilizar meios ilícitos para se sustentarem. Possivelmente, abordava o que João do Rio chamara de “pequenas profissões exóticas”, ao inventariar as diversas ocupações subterrâneas de um Rio de Janeiro desconhecido das elites. Isso porque o trabalho informal em Inhaúma devia ser bastante praticado, levando-se em conta que esse era o distrito da cidade com o maior número de desempregados (LOBO, CARVALHO, STANLEY: 111).

Os indivíduos inativos também foram citados – “um ou outro degradado da sua condição anterior ou nascimento”. Nesse trecho, o autor aludia aos ex-escravos e aos negros em geral que não conseguiram vencer as dificuldades advindas do forte preconceito racial existente na capital federal, e que os tornava vítimas preferenciais da teoria da “suspeição generalizada” – sendo essa a essência da expressão “classes perigosas” (CHALHOUB, 1996: 20, 29). Lembremos que, diferentemente do que Lima Barreto pregava nesse conto, a imagem da incapacidade inata do trabalhador negro – que teria sido agravada pelo período do cativeiro – era muito difundida entre as classes dominantes. Assim, a noção de os que negros e os mulatos se encontravam em um estado de anomia no pós-abolição se explicava pela herança do escravismo (cf. SCHWARCZ, 1987).

A discriminação com base na raça foi uma barreira que o protagonista do primeiro romance publicado por Lima Barreto, o escrivão Isaías Caminha, conseguiu ultrapassar após inúmeros desgostos e privações. Talvez a legitimidade do seu discurso residisse na recusa à idealização de que todos os moradores das favelas viveriam o mais de acordo possível com a ideologia do trabalho, nos moldes desejados pelas classes dominantes. Por isso, incluiu em sua história a prostituta Antonia, aquela que morava na casa mais modesta da Rua dos Maricás – nome que alude à presença de habitações construídas com a madeira dessa árvore de pequeno porte. Apesar de sua estigmatizada profissão, essa mulher contava com a ajuda de seus vizinhos: “Todos da Rua dos Maricás (...) conheciam-lhe a vida, mas com a piedade e compaixão próprias à ternura do coração do povo humilde pela desgraça, tratavam-na como se outra fosse ela e a socorriam nas suas horas de maiores aflições”.

No trecho acima vemos mais uma característica da obra do literato: as fortes relações de solidariedade existentes entre as camadas pobres. O interessante é que somente um homem nas redondezas não perdoava o comportamento da rapariga Antonia, sendo ele o Antunes, o dono daquela venda freqüentada por trabalhadores das mais diversas profissões. Considerava-a simplesmente como “Uma vagabunda”. Mas havia uma explicação para o comportamento dissidente do comerciante. Batia em seu peito um “empedernido coração de futuro grande burguês”. Para entendermos melhor o sentido dessas palavras, devemos lembrar que a moral popular podia funcionar de modo diferente da moral burguesa (cf. ESTEVES, 1989). Portanto, nada mais sugestivo: enquanto os vizinhos humildes da prostituta encontravam-se imersos em uma inegável rede de solidariedade e socorriam essa mulher nos seus momentos de maior dificuldade, o homem que nutria elevadas pretensões burguesas a condenava peremptoriamente.

Não deixa de ser curioso o detalhe de que esse senhor intolerante fosse conhecido como o Antunes, e não Seu Antunes ou Senhor Antunes, como no caso das pessoas pobres. Talvez Lima Barreto tenha achado que esse comerciante com “coração de futuro grande burguês” não merecesse compartilhar a dignidade superior das pessoas simples e altruístas. Esses pronomes de tratamento, que colocavam as personagens nos lugares sociais que lhes eram reservados, pareciam ser o título de nobreza das personagens subalternas, como no caso de Dona Felismina e Dona Emerenciana. Isso não quer dizer que no subúrbio de Inhaúma as relações de solidariedade não superassem as diferenças sociais, principalmente se um indivíduo mais privilegiado tivesse enfrentado desgraças domésticas – como era o caso da história do Coronel Castro, mais conhecido no bairro como Seu Castro.

Esse empregado aposentado da Alfândega simpatizava bastante com o moleque Zeca, a quem admirava pela ajuda que prestava à mãe, Dona Felismina. Certo dia, Seu Castro resolveu segui-lo “até aquele barracão, naquela modesta rua, bordada de um lado e outro de sebes de maricás e de ‘pinhão’ (...)”. Lá chegando, propôs à mulher que colocasse o menino em um asilo, a fim de que esse pudesse aprender a ler e a escrever. Se não bastasse, a mãe poderia trabalhar na casa do próprio benfeitor, sem precisar se matar de tanto labutar:

 

Titubeou a rapariga e o velho funcionário compreendeu, pois desde há muito já tinha compreendido, na gente de cor, especialmente nas negras, esse amor, esse apego à casa própria, à sua choupana, ao seu rancho, ao seu barracão – uma espécie de protesto de posse contra a dependência da escravidão que sofreram durante séculos.

 

Aqui Lima Barreto contradizia a tradição de pensamento que apontava para o servilismo e a dependência dos negros, que seriam naturais devido a sua suposta inferioridade racial. Em relação às mulheres negras que residiam em favelas, a sua visão destoava fortemente daquilo que o jornalista Orestes Barbosa defendeu em 1923:

 

Negras de longas mamas balançando entre quatro trapos de corpinho, com a saia sungada nas nádegas, mostrando toda a perna, passam o dia na tagarelice das vendas sórdidas – que são os bars chics dali – ou nas pocilgas, deitadas em esteiras descosidas, praticando o vício. (...) As amantes dos moradores da Favela vivem, de dia, quase em ociosidade.

 

A despeito desse tipo de discurso que colocava as moradoras negras das favelas como indolentes – em outra continuidade da época da escravidão – ou mesmo amásias de malandro, a possibilidade de as mulheres pobres arrumarem serviço com mais facilidade as colocava em posição de relativa independência diante de seus companheiros (CHALHOUB, 2001: 204). Além disso, a utilização do trabalho feminino constituía um elemento fundamental na organização social e na acumulação de riqueza, considerando aqui o trabalho doméstico e a participação no processo produtivo (SOIHET, 1989: 178).

Mencionada pelo cronista de Todos os Santos, a necessidade de independência demonstrada pelos negros era uma característica marcante desde a vigência da escravidão. Chalhoub (1990: 235, 236, 238) decifrou os dois componentes centrais do “viver sobre si” dos cativos: a possibilidade de morar  fora da casa dos senhores e o desejo de certa autonomia nas atividades produtivas às quais se dedicavam. Sendo que senhores, escravizados e magistrados achavam que o “viver sobre si” se ligava à condição de pessoa livre. E o mais importante disso tudo é que, atuando dessa forma, os negros contribuíram para desconstruir os significados sociais que propiciavam a continuidade da escravidão.

Na Primeira República, é possível identificar essa lógica na organização dos trabalhadores negros do porto do Rio de Janeiro. A herança de práticas advindas da escravidão contribuiu para a concretização do ambicioso projeto daquele grupo: a autonomia e o fechamento do mercado de trabalho, através de sindicatos closed shop consolidados. Isso se ligava diretamente ao que os carregadores reivindicavam nos manifestos da greve de 1906: “o direito” e “a nossa liberdade”. Nesse caso, o que eles não queriam mesmo era ser vistos como “negrada” – ou seja, “libertos” –, e sim como homens livres no sentido pleno do termo (CRUZ, 2000: 288).

Sem dúvida, a recusa de Dona Felismina era informada por uma longa tradição de valorização da autonomia pelos negros. Apesar da luta cotidiana, ela parecia orgulhosa com o que conquistara, conforme seu nome sugeria. Seja como for, a atitude de Seu Castro, no sentido de visitá-la em seu “barracão”, era uma evidente rejeição ao discurso de que as favelas seriam uma “outra cidade” incrustada no Rio de Janeiro. Assim, Lima Barreto driblava um forte estereótipo que se encontrava no mito de origem das favelas.

Uma outra passagem, mais poética, negava a idéia de que os moradores dos “barracões” viveriam alheios às transformações culturais da Primeira República. Vejamos que o sonho do garoto Zeca era o “Engenho de Dentro e o seu cinema”: queria “Ter dinheiro, para ir sempre a ele, ver-lhe instantaneamente as ‘fitas’ que os grandes cartazes anunciavam e o tímpano a soar continuamente insistia no convite de vê-las”32. Esse desejo alimentado pelo menino é significativo: ao privilegiar a velocidade, a ação, a arte cinematográfica representava as mudanças no ritmo da vida cotidiana, sendo uma das expressões mais fortes da modernidade (SEVCENKO, 1992: 92, 93).

A abordagem de Lima Barreto dos moradores das habitações populares era bem diferente daquela propagandeada pelos entusiastas da “civilização”. O protagonista de seu conto se encantava com o cinema, que era um dos símbolos dos tempos modernos. Porém, um cronista como Olavo Bilac, em 1908, preferira falar que “há nesses morros muita gente que nada sabe do que se passa cá em baixo, e cujo espírito só tem como horizonte vital o espaço limitado por duas ou três ladeiras tortuosas ou sujas” (BILAC, 1926: 204).

Não era à toa que esse texto intitulava-se “Fora da vida”. Enquanto o “príncipe dos poetas” versava sobre pessoas que viveriam à margem da “civilização” desenvolvida na mais esplendorosa urbs brasileira, Lima Barreto parecia louvar o esforço, a solidariedade e a resistência das classes pobres.No conto analisado, as mulheres negras que viviam naquela parte favelizada de Inhaúma trabalhavam incansavelmente e superavam as dificuldades do dia-a-dia. Aliás, na resistência das personagens afligidas, apareciam “as aspirações através das quais [elas] buscam rumos alternativos para a remodelação da prática social” (SEVCENKO, 1999: 181).

A mãe do sonhador menino Zeca, Dona Felismina, era um exemplo de resistência  e  solidariedade  naquelas  redondezas.  A  competir  em  termos  de respeito e admiração com ela, somente a Baiana, tida como “rica” por ser dona de uma casa feita de tijolo. Isso era raro na Rua dos Espinhos, nome que fazia alusão às condições de vida de seus moradores. Vale assinalar que sua residência fora comprada com o dinheiro proveniente do suor de seu trabalho: “Vendedora de angu, em outros tempos, conseguira juntar alguma cousa e adquirira aquela casita, a mais bem tratada da rua”. Aqui devemos mencionar a capacidade  de  economia dos africanos, em especial os minas, que  trouxeram da África Ocidental uma forte tradição mercantil. Certa vez, o alufá Julio Ganan afirmou a João do Rio:

– (...) Africano tem resistência, menino, africano pagou seu corpo. Eu juntei, vintém a vintém, um conto e oitocentos para me comprar e houve escravas, como a mãe de Henriqueta, que juntaram dinheiro para comprar o próprio corpo e mais o das filhas. (...) Trabalhando, nos aluguéis, no café, vendendo santos ou doces na rua e com auxílio do feitiço. (...) Hoje os africanos daquele tempo estão ricos.

 

Vemos que o comércio de comida no espaço público era uma forma de arrecadação de dinheiro pelos africanos, que tinham como horizonte a compra da alforria. Portanto, Lima Barreto pode ter dado a entender que a sua personagem Baiana estava imersa nessa tradição, uma vez que “em outros tempos” fora vendedora de angu37; e não custa lembrar que figurava entre os projetos não realizados do intelectual a elaboração de uma história da escravidão.

Na biografia dessa migrante negra da Bahia percebemos a valorização dos laços solidariedade, que ultrapassavam as barreiras raciais. Afinal, ela criava uma menina branca que achara embrulhada na rua. Essa característica dos moradores daquela área favelizada de Inhaúma e de seus arredores foi abordada pelo literato em outros momentos do conto. Vemos que a prostituta Antonia era branca e contava com o apoio dos vizinhos, cuja maioria era negra. Assim como Seu Castro era branco e nem por isso deixou de tentar ajudar Dona Felismina e seu  filho  Zeca,  ambos  negros.  Dona  Felismina  era  ainda  simpatizante  do espiritismo38  e  freqüentava  as  sessões  organizadas  pelo  Seu  Frederico, “um antigo colega de seu marido, mas branco, que morava adiante, um pouco acima”.Ressaltemos que o autor evitou maiores idealizações no tocante à questão racial, tendo lembrado o preconceito de que os afro-brasileiros eram vítimas. Quando a filha postiça de Baiana passava em frente à venda, o caixeiro costumava lhe falar, em tom de  brincadeira: “– Baianinha, tua mãe é negra”. Ao que respondia irritada: “– Negra é tu, ‘seu’ burro!”. O menino Zeca, por sua vez, ouvia dos meninos: “ó moleque! – ó moleque! – ó negro – ó gibi!". Não por acaso, esse conto intitulava-se “O moleque”, que era a forma como os escravos eram conhecidos quando crianças.

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 Notas[editar | editar código-fonte]

  1. Rômulo é Bacharel e licenciado (2001) em História pela Universidade Federal Fluminense, mestre (2004) e doutor (2008) em História Social pela mesma instituição. Atualmente é professor do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil República, atuando principalmente nos seguintes temas: urbanização e habitação popular, imprensa, música popular brasileira e História do Rio de Janeiro.
  2. Publicado originalmente na Revista URBANA: Revista Eletrônica Do Centro Interdisciplinar De Estudos Sobre a Cidade.