Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 19h38min de 17 de março de 2019 por Marco Pestana (discussão | contribs)

O período de existência formal da Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara se inicia com a fundação em julho de 1963 e se encerra com a transformação em Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ), em maio de 1975, a qual continuou sua trajetória com uma base territorial ampliada. Ao longo de quase doze anos de existência, a FAFEG priorizou a luta contra a política de remoções sistemáticas de favelas, implementada na Guanabara a partir de meados de 1962. A sintomia dessa linha de atuação com as preocupações da maioria dos moradores de favelas do período, é evidenciada pelo fato de que as 28 associações fundadoras em 1963, se tornaram, já em 1968, cerca de 80 entidades filiadas1.

A filiação de novas associações tinha importância crucial, pois significava a possibilidade de expansão do alcance da Federação. Afinal, seus estatutos eram organizados a partir da lógica da representação por favela. Às associações locais eram atribuídas todas as responsabilidades, direitos e deveres no âmbito da FAFEG, e não a indivíduos. Eram elas que se filiavam à federação, que contribuíam financeiramente e que votavam nas eleições e nas assembleias gerais. A lógica federativa manifestava-se, até mesmo, na organização das chapas que concorressem à diretoria, nas quais era vedada a inscrição de mais de um morador de uma mesma favela2.

Em diferentes momentos, a entidade se valeu de distintas táticas e métodos de atuação, que eram combinados de formas variadas. Essa variação, em larga medida, pode ser explicada pelos limites impostos pelas oscilações da situação política na qual os favelados precisavam atuar. Entretanto, igualmente importantes foram as disputas internas à FAFEG. Tais disputas se organizaram em torno de dois polos fundamentais: enquanto um deles propunha a compreensão da luta dos favelados como parte do conjunto de questões relativas ao cotidiano da classe trabalhadora, o outro defendia que a temática das favelas deveria ser tratada em sua especificidade. Nos tópicos a seguir, apresentarei uma síntese da trajetória da FAFEG estruturada a partir dos embates entre essas duas perspectivas.


Da fundação à diretoria provisória


A fundação da FAFEG inaugurou uma nova fase no movimento de favelados carioca. Entretanto, a escassez de fontes dificulta a determinação do sentido exato da ruptura produzida. Conforme destacou Juliana Oakim, existem numerosas versões para explicar a criação da entidade: para alguns, seria um esforço de superação dos currais eleitorais que políticos profissionais estabeleciam em favelas da cidade, controlando as associações locais; para outros, se tratava de buscar alternativas ao que se entendia como um indevido envolvimento das demais federações de favelados com a política partidária (como a União dos Trabalhadores Favelados e a Coligação dos Trabalhadores Favelados – UTF e CTF, respectivamente); outros ainda indicam o predomínio de uma articulação a partir de um movimento conservador intitulado Movimento Rearmamento Moral (MRM), o qual era ligado a grupos que atuavam pela deposição do presidente João Goulart3.

O mais provável é que, em alguma medida, todos esses elementos estivessem presentes em uma complexa combinação. Indícios dessa possibilidade são encontrados já nos estatutos da entidade. No parágrafo 1o do artigo 27o, por exemplo, afirmava:


“É condição essencial para concorrer às eleições da F.A.F.E.G. para a Diretoria, ou ser nomeado para os departamentos, que o candidato resida efetivamente em uma favela do Estado da Guanabara, sendo destituído do cargo todo o Diretor da F.A.F.E.G. que deixar de residir numa favela”4.


Considerando-se o panorama do movimento de favelas naquele período, esse requisito pode ser lido como uma tentativa de evitar que se configurasse um cenário como a da União dos Trabalhadores Favelados, em que o advogado Antoine de Magarinos Torres, sem residir em nenhuma favela, ocupava cargos de grande importância na diretoria. Já o artigo 7o, apresentava como um dos deveres das filiadas o de “não discutir política partidária, religião ou ideologia na F.A.F.E.G.” (itálico meu)5, o que, por sua vez, pode ser compreendido como uma rejeição ao papel cumprido pela cúpula do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) na organização da CTF, ou mesmo às interferências de políticos clientelistas sobre inúmeras associações locais de favelas.

Por fim, também há indícios capazes de validar, em certa medida, a hipótese que conecta a fundação da FAFEG à atuação Rearmamento Moral. Na composição da diretoria provisória, empossada na fundação da entidade, havia, pelo menos, um militante cujos laços com o MRM naquele período são incontestes, Etevaldo de Oliveira. O quadro abaixo apresenta a toda a composição da diretoria:

Quadro 3.1 – Diretoria provisória da FAFEG de 10/08/1963 a 04/19646 Cargo Diretor Favela Presidente Amaro Júlio Martins Telégrafos 1o Vice-presidente Antônio Almiro de Souza Borel 2o Vice-presidente Etevaldo Justino de Oliveira Bispo 117 1o Tesoureiro João Miguel da Silva Manguinhos 2o Tesoureiro José Luiz da Silva Manguinhos 1o Secretário Feliciano da Silva Neves Barreira do Vasco 2o Secretário Francisco Xavier de Farias

3o Secretário José Maria Ventura Telégrafos


Tendo conhecido o líder do MRM no Rio de Janeiro em princípios de 1963, Etevaldo desemprenhou importantes tarefas para o movimento nos anos seguintes, inclusive, representando-o em outros estados. Para além disso, frequentou cursos de formação de sindicalistas organizados pela Confederação Brasileira dos Trabalhadores Cristãos (CBTC). Naquele momento histórico, tais instituições alcançaram uma articulação política e ideológica por meio do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), que desempenhou papel-chave no golpe que derrubou João Goulart e na estruturação do regime ditatorial então instalado7.

Os vínculos do campo que orbitava em torno do IPES com a FAFEG assumiram, também, contornos institucionais. Nesse sentido, é possível mencionar tanto o patrocínio de empresas ligadas ao IPES (McCann Erikson, CDTC e Ducal) ao programa de rádio mantido pela Federação no período 1963-1965, quanto o fato de que a primeira sede da entidade foi instalada em espaço pertencente à CBTC, a qual recebia financiamento direto do próprio IPES8.

Mesmo com todo o aparato mobilizado, não foi possível a esse bloco estabelecer um controle direto sobre as ações da FAFEG. Em novembro de 1963, a diretoria da entidade esteve representada em reunião do Departamento de Favelas do Comitê Nacional JK-65. Tal comitê era parte do esforço de construção da candidatura presidencial de Juscelino Kubitschek, que concorreria nas eleições previstas para 19659. Embora não se tratasse de um radical, ou mesmo de um candidato claramente identificado com a esquerda, JK um aliado preferencial do bloco organizado em torno do IPES, inserindo-se em outra tradição política ligada às classes dominantes.

A existência dessa pluralidade de forças políticas na FAFEG não impediu que a diretoria provisória se posicionasse unitariamente contra a remoção da favela do Pasmado, a primeira grande intervenção realizada pelo governador Carlos Lacerda (União Democrática Nacional – UDN). Apesar disso, ainda em seus primeiros momentos de existência, a Federação não teve destaque nessa mobilização, que seria derrotada com a realização da remoção a partir de dezembro de 1963.

Poucos meses depois, com o golpe de 1964, estariam dadas novas condições para o aprofundamento da política remocionista. Em paralelo, a FAFEG entraria em nova fase.


A afirmação da Doutrina Social Cristã


Imediatamente após o golpe que depôs João Goulart, o presidente da FAFEG, Amaro Martins, apresentou sua carta de renúncia e abandonou a militância na Federação, provavelmente, por temor da repressão posta em movimento pela ditadura recém-instalada. A partir de então, a presidência da entidade foi assumida por Etevaldo Oliveira, que completou o mandato da diretoria provisória na companhia de uma nova equipe:

Quadro 3.2 – Diretoria da FAFEG de 04/1964 a 01/196510 Cargo Diretor Favela Presidente Etevaldo Justino de Oliveira Bispo 117 1o Vice-presidente Tupan Bento Coroa 2o Vice-presidente Hélio Luiz Martins Catacumba 1o Tesoureiro Sílvio Alcântara Barbosa Catumbi 2o Tesoureiro


1o Secretário Maurílio José Rosa Catumbi 2o Secretário Aquilino Alves Pereira

3o Secretário Sebastião Alfredo dos Santos

Diretor Social* José Pereira

Coordenador* Germano Cordeiro

Coordenador* Joel Pinto da Fonseca

Coordenador* Luiz Florêncio da Silva

  • Cargos não previstos nos estatutos.

Com a ascensão de Etevaldo e a presença de outros militantes ligados ao Rearmamento Moral, como Tupan Bento, as linhas de ação da entidade passariam a expressar mais diretamente as concepções do próprio MRM e da CBTC. Essas concepções ficaram claras em declaração dada por Etevaldo durante o I Congresso da FAFEG, realizado em outubro de 1964:


“O presidente da FAFEG, sr. Etevaldo Justino de Oliveira, declarou: ‘Visamos, por todos os meios, ao bem-estar das pessoas humildes, moradoras em favelas, e que a sociedade condena e humilha. Queremos mostrar que o favelado não pode ser julgado como um bicho, só porque outros habitantes dos morros são marginais’”11.


Conforme fica claro, a base desse posicionamento é a dimensão moral, secundarizando a perspectiva política. Assim, os favelados são apresentados simplesmente como “pessoas humildes”, não havendo nenhuma relação entre a sua condição de classe, como trabalhadores, e a precariedade enfrentada nos locais de moradia. A condição social dos favelados seria definida unicamente pelo fato de habitarem em favelas, o que colocava em primeiro plano a dicotomia favela/asfalto. Em decorrência dessa compreensão, a sua mobilização era encarada como sendo voltada para a obtenção do mesmo tratamento dispensado às demais pessoas. A urbanização reivindicada era, portanto, compreendida como o caminho para a restauração de sua “dignidade”, o que significaria uma afirmação plena de sua humanidade. Em lugar do embate entre classes sociais, tal como proposto pela UTF, por exemplo, surgia a imagem de uma humanidade idealmente unida.

Mesmo valendo-se dessa retórica conciliadora, o I Congresso (que foi materialmente apoiado pelo MRM e pela CBTC) tomou algumas decisões importantes, com destaque para a defesa da priorização da urbanização das favelas e a rejeição das remoções. Sustentada por esse posicionamento coletivo, a diretoria da FAFEG atuou de maneira mais incisiva frente à nova onda de remoções do governo de Lacerda no final de 1964. Assim, nessa conjuntura, se a entidade teve pouca participação na mobilização dos moradores de Brás de Pina, que conseguiram impedir a remoção total, por outro lado, esteve na linha de frente da resistência da favela do Esqueleto.

Foi nessa favela que a Federação começou a desenvolver o repertório de práticas que seria mobilizado, com algumas variações, em outras oportunidades. Nesse roteiro, a atuação começava pelo estabelecimento de contato direto com a diretoria da entidade local, junto à qual era organizada uma assembleia. A partir da assembleia, eram detonadas duas vias principais de ação: enquanto um grupo estruturava um plano viável de urbanização local para ser apresentado às autoridades e à imprensa, outros ficavam responsáveis pela organização de um plebiscito, no qual todos os moradores da favela poderiam optar entre remoção e urbanização. Dessa forma, buscava-se conferir um embasamento técnico à reivindicação, ao mesmo tempo em que se buscava fortalecê-la politicamente pela demonstração da coesão da população local, via plebiscito.

No início de dezembro, entretanto, esses esforços foram interrompidos pela prisão de Etevaldo na saída da rádio onde gravava o programa da FAFEG. Levado por agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), ele permaneceu incomunicável por dias, até que foi liberado sem acusação formal. Intimidados por esse procedimento e por ameaças que receberam, os demais líderes da resistência no Esqueleto abandonaram o projeto do plebiscito e a remoção da favela se consumou em 196512.

Com essas ações, a ditadura indicava claramente que toda mobilização popular – independentemente da orientação política de suas lideranças – era vista como potencialmente perigosa para o regime e, portanto, indesejável. Ainda assim, os laços mantidos por Etevaldo com instituições que haviam apoiado o golpe de 1964 não foram inteiramente desconsiderados, na medida em que as declarações de líderes do MRM e da CBTC, que abonavam a sua conduta pessoal, foram consideradas pela polícia política em sua decisão de liberá-lo13.


Luta de classes e oposição à ditadura


Em janeiro de 1965, pouco após a prisão de Etevaldo, a nova diretoria da FAFEG foi escolhida em uma eleição. Com a situação dividida em duas chapas, a vitória coube ao setor oposicionista. A composição da nova diretoria está expressa no quadro a seguir:

Quadro 3.3 – Diretoria da FAFEG de 01/1965 a 01/196714 Cargo Nome Favela Presidente João José Marcolino Catumbi 1o Vice-Presidente João Pereira da Silva Pavão 2o Vice-Presidente Vicente Ferreira Mariano São Carlos 1o Tesoureiro Almir Ricardo Prazeres 2o Tesoureiro Lázaro Franco Salgueiro 1o Secretário Valdevino do Nascimento Querosene 2o Secretário Jamildo Mendonça Formiga 3o Secretário José Maria Galdeano Bispo 117

Dentre os eleitos, chama a atenção a presença de inúmeros militantes (Marcolino, Vicente, Almir e Galdeano) que, em 1963, compunham a diretoria da Coligação dos Trabalhadores Favelados, outra entidade federativa do movimento de favelas. Embora inicialmente marcada por uma atuação bastante discreta – centrada no envio de documentos às autoridades estaduais –, a partir de 1966, a nova gestão começou a indicar mais claramente o sentido da ruptura que buscava imprimir na condução da FAFEG. Assim, em resposta ao fortalecimento do discurso remocionista – que se valia dos desabamentos causados pelas chuvas para voltar à carga após o término do governo de Lacerda –, a diretoria da Federação passou a defender a urbanização das favelas enfatizando a condição de seus moradores como membros da classe trabalhadora. Dessa forma, as suas mobilizações eram apresentadas como uma manifestação da luta de classes, assumindo, também, uma posição de crítica mais aberta à ditadura.

Esse posicionamento ficou ainda mais forte nas duas gestões subsequentes, eleitas em 1967 e 1969, nas quais Vicente Ferreira Mariano assumiu a presidência da FAFEG. A composição dessas diretorias é apresentada a seguir:

Quadro 3.4 – Diretoria da FAFEG de 01/1967 a 01/196915 Cargo Nome Favela Presidente Vicente Ferreira Mariano São Carlos 1o Vice-Presidente Amilton Marcolino

2o Vice-Presidente Antônio Cavalcante

1o Tesoureiro Maurílio José Rosa Catumbi 2o Tesoureiro Jamildo Mendonça

1o Secretário José Maria Galdeano Bispo 117 2o Secretário Reinaldo Ruffino

3o Secretário Marcolino Luís da Silva


Quadro 3.5 – Diretoria da FAFEG em 08/197016 Cargo Nome Favela Presidente Vicente Ferreira Mariano São Carlos 1o Vice-Presidente Lúcio de Paula Bispo Chapéu Mangueira 1o Tesoureiro José Batista Lira Borel 2o Tesoureiro Miguel Geraldo Brás de Pina 1o Secretário Maurílio José Rosa Catumbi 2o Secretário Neusa Mendonça Babilônia

O momento de maior riqueza na formulação da perspectiva política que conectava o movimento de favelados à luta de classes foi o II Congresso da entidade, realizado em novembro e dezembro de 1968. Já na sua convocatória, a nova retórica era evidente, conforme indicado pelo documento abaixo:


“Com o trabalho do homem, a cidade cresce, o progresso aproxima-se das áreas onde você habita, crescendo a cobiça desses lugares, já valorizados. Embora a lei seja igual para todos, sempre vence o mais forte, e surgem as remoções para lugares longínquos, trazendo vários transtornos para o homem que vive de salário. O que será do trabalhador quando a cidade chegar em Vila Aliança e Cidade de Deus? Para onde você vai?”17


Nesse texto, cujo tom é claramente distinto do pronunciamento da diretoria liderada por Etevaldo, a identificação dos favelados como componentes da classe trabalhadora traz consigo a afirmação da existência de um conflito de interesses. Trata-se da apropriação dos frutos do trabalho de uns, materializado no desenvolvimento urbano, por outros. Para a resolução desse conflito, não bastaria confiar na lei escrita, uma vez que os opositores dos favelados possuiriam meios de dobrá-la a seu favor, o que indica a percepção da associação do Estado ditatorial a determinados interesses sociais.

Em paralelo a esse reenquadramento do sentido da luta pela urbanização, a FAFEG atuava, também, para aproximar o movimento de favelados de outros setores da classe trabalhadora e de outras iniciativas política oposicionistas. Nesse sentido, é importante ressaltar que o II Congresso teve sessões realizadas em espaços cedidos pelos sindicatos dos metalúrgicos e dos condutores de veículos rodoviários. Indo além, a Federação também participou da organização do ato de 1o de maio de 1968 ao lado de diversas entidades sindicais e estudantis, e de intelectuais e parlamentares, além de ter oferecido esconderijo e/ou espaços de atuação a militantes estudantis e sindicais perseguidos pelo regime18.

Embora expressasse a radicalização de parte significativa da base da FAFEG – o que se traduziu em uma grande presença no II Congresso e na apresentação de inúmeras teses –, o desenvolvimento da perspectiva da luta de classes devia muito à atuação de militantes favelados que participavam de organizações políticas. Dentre as principais lideranças desse período, é possível citar Vicente Mariano, Lúcio de Paula Bispo e José Batista Lira, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), José Maria Galdeano, do Movimento Popular de Libertação (MPL), e Abdias José dos Santos – então presidente do Conselho de Representantes da FAFEG –, da Ação Popular (AP).

A combinação de retórica combativa e presença de opositores da ditadura não tardou a chamar a atenção do aparato repressivo do Estado. Assim, a vigorosa retomada das remoções no início de 1968, já sob a tutela do governo federal, foi acompanhada de novas prisões arbitrárias. Em fevereiro de 1969, foram presos quatro dirigentes da associação da Ilha das Dragas, uma pequena favela localizada às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas. No mês seguinte, quando se iniciava a remoção da favela da Praia do Pinto (entre a Lagoa e o Leblon) os detidos foram três diretores da FAFEG, além do advogado da entidade. Com essas inequívocas demonstrações de força, a ditadura conseguiu intimidar os favelados, abrindo caminho para a remoção, em poucos anos, de todas as favelas do entorno da Lagoa, uma das áreas de maior interesse do capital imobiliário naquele período.


Aliança com o Estado


Em consequência da brutal repressão, o grupo político liderado por Vicente Mariano não inscreveu nenhuma chapa na eleição para a diretoria no início de 1971. Assim, foi vitoriosa a chapa única, “União das Favelas”, que trazia Francisco Vicente de Souza (do Parque União) como presidente e Etevaldo como 1o vice-presidente19. Com esse resultado, alterou-se uma vez mais a orientação política predominante na FAFEG, retornando a ênfase na especificidade dos favelados e o tratamento particularista da questão habitacional.

Ao longo da gestão, a figura do presidente ficou relegada a um segundo plano, em função do destaque conseguido por Etevaldo em suas movimentações políticas. Na nova conjuntura, deixando de lado a declaração explícita da adesão à Doutrina Social Cristão, ele apostou na aproximação em relação ao Estado como principal via de ação, mesmo ainda se tratando de um período de ditadura. Nesse sentido, propôs a “(...) criação de um decreto governamental, obrigando o morador de favelas a filiar-se às Associações, medida essa que tornaria muito mais rápida a solução de problemas de moradores não esclarecidos”20, além de defender que os favelados lançassem candidatos à Assembleia Legislativa da Guanabara. Coerente com essa proposta, em 1970, ele mesmo se candidatou pela ARENA (Aliança Renovadora Nacional), o partido de sustentação da ditadura, obtendo apenas 575 votos.

Politicamente, o mandato se encerrou com a realização do III Congresso da entidade, entre outubro e dezembro de 1972. Embora tenha reafirmado as deliberações em favor da urbanização e contra a remoção, foi abandonada a reivindicação do II Congresso de que os favelados tivessem garantida a propriedade das terras que ocupavam sem qualquer custo.

Em janeiro do ano seguinte, novas eleições conduziram Jonas Rodrigues à presidência da Federação. Fortemente articulado ao grupo do governador Antônio de Pádua Chagas Freitas (da ala mais colaboracionista do Movimento Democrático Brasileiro – MDB), Jonas instituiu um modelo clientelista de atuação, caracterizado pelo baixíssimo grau de mobilização coletiva. Em lugar da ação das bases, sua gestão apostou quase inteiramente em negociações diretas com secretários de governo, parlamentares e responsáveis pelos órgãos estatais. Nesse projeto, contou com o apoio de Francisco Vicente de Souza, que passara a ocupar a posição de presidente do Conselho de Representantes. Por meio dessa aliança, os dois dirigiram a Federação até 1978, sendo responsáveis pela condução da transição para a FAFERJ21.


Bibliografia


LIMA, Lucas Pedretti. A polícia política sobe o morro: as favelas cariocas no arquivo do DOPS (1964-1983). Monografia de Conclusão de Curso de Graduação em História. Rio de Janeiro: PUC, 2015. LIMA, Nísia Verônica Trindade. O movimento de favelados do Rio de Janeiro – políticas do Estado e lutas sociais (1954-1973). Dissertação de Mestrado em Ciência Política. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1989. OAKIM, Juliana. “Urbanização sim, remoção não”. A atuação da Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara nas décadas de 1960 e 1970. Dissertação de Mestrado em História. Niterói: PPGH/UFF, 2014. PESTANA, Marco Marques. Ampliação seletiva do Estado e remoções de favelas no Rio de Janeiro: embates entre empresariado do setor imobiliário e movimento de favelados (1957-1973). Tese de Doutorado em História. Niterói: PPGH/UFF, 2018. SANTOS, Eladir Fátima N. dos. E por falar em FAFERJ… Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (1963-1993) – memória e história oral. Dissertação de Mestrado em Memória Social. Rio de Janeiro: PPGMS/UNIRIO, 2009. SILVA, Humberto Salustriano da. Organização e resistência popular em torno das políticas públicas de remoção: a experiência da FAFEG (Federação de Favelas do Estado da Guanabara) – 1963-1975. Monografia de Conclusão de Curso de Bacharelado em História. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, 2007.


Fontes


ARQUIVO NACIONAL (AN). Fundo: Serviço Nacional de Informações (SNI). ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (APERJ). Fundo: Polícias Políticas. Correio da Manhã. Rio de Janeiro. 1964-1971. Diário Carioca. Rio de Janeiro. 1963. Diário de Notícias. Rio de Janeiro. 1972. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro. 1968. Registro Civil de Pessoas Jurídicas do Estado do Rio de Janeiro. SECRETARIA ESPECIAL DA REGIÃO SUDESTE (SERSE)/ MINISTÉRIO DO INTERIOR (MINTER); CENTRO BRASILEIRO DE COOPERAÇÃO E INTERCÂMBIO DE SERVIÇOS SOCIAIS (CBCISS). Movimentos sociais e desenvolvimento de comunidade. 1o Ciclo de Estudos e Reflexões. Rio de Janeiro: 1987.


Autor: Marco M. Pestana