Indo até o problema: Roubo e circulação na cidade do Rio de Janeiro (resenha): mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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<p>O artigo “Indo até o problema: Roubo e circulação na cidade do Rio de Janeiro” <ref>GRILLO, Carolina; MARTINS, Luana. Indo até o problema: Roubo e circulação na cidade do Rio de Janeiro. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 13, no. 3, set-dez 2020, p. 565-590.</ref> , de Carolina Grillo e Luana Martins, utiliza de uma análise de suas pesquisas etnográficas anteriores para descrever os riscos enfrentados pelos ladrões ao deslocar-se pela cidade para realizar furtos e roubos. O artigo constrói uma distinção de suas ações pelas formas com as quais se locomovem no urbano: seja pelo uso de carro ou moto, ou ao utilizar-se de ônibus, pensando assim territorialidade, violência, segregação socioespacial e perpassando discussões sobre racismo.</p><p>Carolina Christoph Grillo é pesquisadora de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e professora colaboradora da mesma universidade. Tem doutorado e mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil), e graduação em ciências sociais pela mesma universidade. É também pesquisadora associada ao Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU, UFRJ) e do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da UFF.</p><p>Luana Almeida Martins é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) da Universidade Federal Fluminense na linha de pesquisa Segurança Pública e Administração Institucional de Conflitos. É mestre pelo mesmo programa e tem graduação em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É pesquisadora vinculada ao Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (NEPEAC), do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC), e ao Núcleo de Estudos em Psicoativos e Cultura (PsicoCult).</p>
<p>O artigo “Indo até o problema: Roubo e circulação na cidade do Rio de Janeiro” <ref>GRILLO, Carolina; MARTINS, Luana. Indo até o problema: Roubo e circulação na cidade do Rio de Janeiro. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 13, no. 3, set-dez 2020, p. 565-590.</ref> , de Carolina Grillo e Luana Martins, utiliza de uma análise de suas pesquisas etnográficas anteriores para descrever os riscos enfrentados pelos ladrões ao deslocar-se pela cidade para realizar furtos e roubos. O artigo constrói uma distinção de suas ações pelas formas com as quais se locomovem no urbano: seja pelo uso de carro ou moto, ou ao utilizar-se de ônibus, pensando assim territorialidade, violência, segregação socioespacial e perpassando discussões sobre racismo.</p><p>Carolina Christoph Grillo é pesquisadora de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e professora colaboradora da mesma universidade. Tem doutorado e mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil), e graduação em ciências sociais pela mesma universidade. É também pesquisadora associada ao Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU, UFRJ) e do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da UFF.</p><p>Luana Almeida Martins é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) da Universidade Federal Fluminense na linha de pesquisa Segurança Pública e Administração Institucional de Conflitos. É mestre pelo mesmo programa e tem graduação em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É pesquisadora vinculada ao Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (NEPEAC), do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC), e ao Núcleo de Estudos em Psicoativos e Cultura (PsicoCult).</p>
== <br>Resumo dos principais argumentos ==
== <br>Resumo dos principais argumentos ==
<p>A partir de uma visão que aponta como o alto índice de roubos e furtos na cidade do Rio de Janeiro faz com que os moradores mudem a forma como levam seu dia, pensando com cuidado seus trajetos e horário de circulação, por exemplo, as autoras apontam como a prática do roubo também gera ameaças e mudanças cotidianas ao próprio ladrão, que tem de seguir certas “regras” a fim de se manter vivo ou livre por mais tempo. Assim, há uma diferença na circulação pela cidade entre o ladrão e o traficante: roubar faz com que os indivíduos saiam de seu local de moradia de encontro a novos espaços em que se tornam mais vulneráveis, indo em direção ao “problema” com policiais, justiceiros, vítimas e heróis. O traficante, por outro lado, está em seu local mais confortável quando operações policiais ocorrem e os policiais “vão até eles”, apenas “aguardam o problema chegar”. Portanto, sair de sua região de moradia gera muitos custos ao ladrão, sendo, para eles, uma ação muito mais perigosa do que o tráfico.</p><p>As autoras apontam como os diversos modos de praticar o roubo trazem diferentes repertórios de circulação pelo espaço urbano por meio do uso de carro, moto ou ônibus e geram perigos particulares. Cada modo traz expertises diferentes para reduzir a possibilidade de ser pego pela polícia ou sofrer uma ameaça à vida, sendo necessário escolher bem as vítimas, situações e locais, bem como formas de agir durante a prática.</p><p>As pesquisas etnográficas utilizadas para a análise foram realizadas em dois locais: em uma favela controlada pelo Comando Vermelho (CV) junto a traficantes e praticantes de roubo à mão armada, em maioria maiores de idade; e a segunda em uma unidade socioeducativa, com adolescentes homens de 14 a 18 anos, a maioria presa por atos infracionais de furto ou roubo nas praias ou durante o trajeto do ônibus 474.</p><p>A partir desses estudos, as autoras apontam como a firma local do tráfico de drogas em favelas coloca em suas próprias mãos o papel de criar “regras” e colocar limites às ações dos ladrões, cobrando aqueles que agirem de modo contrário. A prática de roubos contribui para um aumento na repressão policial nas favelas a partir da repressão para recuperar os bens roubados ou buscar os ladrões. Com isso, aos olhos dos que controlam os morros, uma regulação da prática é necessária. Assim, proíbem a realização de roubos dentro da favela ou em localidade próxima, bem como locais como o interior de um ônibus, este último especialmente por ser visto como um local que simboliza um meio de locomoção dos trabalhadores. Caso fujam para a favela e tragam a polícia para ela, serão também cobrados pelos donos do morro. A partir disso, existe uma distância razoável esperada para a ação do roubo/furto, dificultando a ligação da comunidade com determinado roubo, aumentando os riscos de suas ações e produzindo diferentes espacialidades e circulações pela cidade.&nbsp;</p><p>Com esse cenário de fundo, os atores se veem obrigados a circular pela cidade para longe do morro, construindo diferentes tecnologias para lidar com a imprevisibilidade de suas práticas em um local hostil, com o qual não tem tanta proximidade e onde não possuem a proteção dos donos da boca, sentindo-se constantemente ameaçados. Para isso, constroem mapas e sistemas para identificar os melhores locais e vítimas para realizarem suas práticas enfrentando menores riscos, e agem com criatividade ao improvisarem formas de voltar para casa a salvo quando é preciso.</p><p>Quando tratamos do roubo a carros, os “bodes” - carros roubados levados para a favela -, por serem objetos grandes demais para serem escondidos facilmente (podendo levar operações até o espaço), necessitam de uma autorização do dono do morro para serem guardados dentro do território das favelas.</p><p>Portanto, todos esses exemplos demonstram como existe uma ética partilhada pelos atores das ações ilícitas no interior e exterior das favelas, com noções de certo e errado a serem seguidas. Todas essas ações são regras e formas de agir que devem ser seguidas na teoria, mas o caminho não necessariamente será este. Entretanto, se o indivíduo que não as seguir for delatado ao dono do morro, poderá sofrer sanções: seja dentro da favela, seja dentro de um sistema socioeducativo, caso seja preso.</p><p>Para se manterem em segurança, muitos ladrões procuram repetir ações que outros realizaram sem grandes ameaças, minimizando seus riscos ao tomar as mesmas precauções e assimilar seu repertório de habilidades técnicas - como determinada postura corporal e pensamento estratégico, bem como protocolos de abordagem às vítimas. Porém, é preciso haver um cuidado de não repetir com frequência suas práticas num mesmo lugar, visto que isso pode chamar a atenção da polícia e fazer com que sejam pegos. Haverão ainda situações em que necessitarão agir a partir do improviso para sobreviver, o que torna a prática o roubo ainda mais perigosa a esses indivíduos.</p><p>Ao mesmo tempo, o roubo realizado por carro ou moto demanda um conhecimento técnico da cartografia da cidade pelo piloto, desviando de engarrafamentos e da polícia ou locais em que a polícia possa estar. Os ladrões que roubam a partir desses veículos dividem suas abordagens em “abordagem oportunista”, em que um ou dois indivíduos roubam em locais menos movimentados, visto que será mais difícil haver reações armadas ao redor; e “arrastões de carros”, na qual grupos de dois ou três assaltantes param seu veículo na frente do trânsito e enquadram até três carros para trás. As motos são muito visadas pela polícia, e são por isso um modo mais difícil de realizar a prática do roubo.</p><p>Um último caso é aquele em que os indivíduos, comumente menores de idade, “roubam de ônibus”, especialmente entre o Centro e a Zona Sul, a partir do uso do ônibus 474, linha que sai do Jacaré e atravessa a fronteira entre a favela e a Zona Sul. Assim, utilizam-se do ônibus para chegarem a um território em que seja “permitido”, pelas regras da favela, que eles roubem. Entretanto, especialmente quando em direção ao seu ponto final na favela do Jacaré, esse ônibus costuma sofrer muitas revistas pela polícia, e todos aqueles indivíduos, normalmente jovens e negros, que não estiverem portando uma carteira de identidade ou dinheiro, são chamados. Por vezes, mesmo sem ter realizado um roubo, esses jovens podem ser colocados em uma instituição socioeducativa e aguardar por até 45 dias o julgamento. Assim, a partir do modo de agir, falar ou caminhar pelo espaço do favelado, são criados pela polícia métodos de suspeição baseados intensamente no racismo e no preconceito de classe, dentro de uma cidade marcada pela segregação socioespacial. Com isso, o território longe de sua favela é muitas vezes hostil ao jovem favelado, que cruza diversos problemas ao andar pela cidade.</p><p>“Mesmo os interlocutores que se encontravam em liberdade na ocasião da pesquisa etnográfica encontram-se atualmente todos mortos ou presos (...). São imensos os custos de oportunidade da prática de roubos, que os ladrões têm plena ciência dos riscos a que estão submetidos e que, mesmo assim, há quem insista em roubar.” (p. 587)</p>
<p>O artigo é iniciado a partir do apontamento do alto índice de roubos e furtos na cidade do Rio de Janeiro como um modo de mudar a forma como os moradores levam seu dia, pensando com cuidado seus trajetos e horário de circulação, bem como o que levar ao sair. Por essa visão, as autoras exibem como a prática do roubo também gera ameaças e mudanças cotidianas ao próprio ladrão, que se vê obrigado a seguir certas “regras” a fim de se manter vivo ou livre por mais tempo. Assim, há uma diferença na circulação pela cidade entre o ladrão e o traficante: roubar faz com que os indivíduos saiam de seu local de moradia de encontro a novos espaços em que se tornam mais vulneráveis, indo em direção ao “problema” com policiais, justiceiros, vítimas e heróis, uma ação que se apresenta muito mais perigosa do que o tráfico. Isso ocorre porque o traficante, por outro lado, está em seu local mais confortável quando operações policiais ocorrem e esses agentes estatais “vão até eles”.</p>
<p>Grillo e Martins (2020) apresentam como os diversos modos de praticar o roubo trazem diferentes repertórios de circulação pelo espaço urbano por meio do uso de carro, moto ou ônibus e geram perigos particulares. Cada modo traz expertises diferentes para reduzir a possibilidade de ser pego pela polícia ou sofrer uma ameaça à vida, sendo necessário escolher bem as vítimas, situações e locais, assim como formas de agir durante a prática.</p>
<p>As pesquisas etnográficas utilizadas para a análise foram realizadas em dois locais: em uma favela controlada pelo Comando Vermelho (CV) junto a traficantes e praticantes de roubo à mão armada, em maioria maiores de idade; e a segunda em uma unidade socioeducativa, com adolescentes homens de 14 a 18 anos, a maioria presa por atos infracionais de furto ou roubo nas praias ou durante o trajeto do ônibus 474.</p>
<p>A partir desses estudos, as autoras apontam como a firma local do tráfico de drogas em favelas coloca em suas próprias mãos o papel de criar “regras” e colocar limites às ações dos ladrões, cobrando aqueles que agirem de modo contrário. Isso é construído porque a prática de roubos contribui para um aumento na repressão policial nas favelas a partir da repressão para recuperar os bens roubados ou buscar os ladrões. Com isso, aos olhos dos que controlam os morros, uma regulação da prática é necessária, na qual proíbem a realização de roubos dentro da favela ou em localidade próxima, bem como locais como o interior de um ônibus, este último especialmente por ser visto como um local que simboliza um meio de locomoção dos trabalhadores. A partir disso, existe uma distância razoável esperada para a ação do roubo/furto, dificultando a ligação da comunidade com determinado roubo, aumentando os riscos de suas ações e produzindo diferentes espacialidades e circulações pela cidade.</p>
<p>Com esse cenário de fundo, os atores se veem obrigados a circular pela cidade para longe do morro, construindo diferentes tecnologias para lidar com a imprevisibilidade de suas práticas em um local hostil, com o qual não tem tanta proximidade e onde não possuem a proteção dos donos da boca, sentindo-se constantemente ameaçados. Para isso, constroem mapas e sistemas para identificar os melhores locais e vítimas para realizarem suas práticas enfrentando menores riscos, e agem com criatividade ao improvisarem formas de voltar para casa a salvo quando é preciso.</p>
<p>Quando tratamos do roubo a carros, os “bodes” - carros roubados levados para a favela -, por serem objetos grandes demais para serem escondidos facilmente (podendo levar operações até o espaço), necessitam de uma autorização do dono do morro para serem guardados dentro do território das favelas.</p>
<p>Portanto, todos esses exemplos demonstram como existe uma ética partilhada pelos atores das ações ilícitas no interior e exterior das favelas, com noções de certo e errado a serem seguidas. Todas essas ações são regras e formas de agir que devem ser seguidas na teoria, mas o caminho não necessariamente será este. Entretanto, se o indivíduo que não as seguir for delatado ao dono do morro, poderá sofrer sanções: seja dentro da favela, seja dentro de um sistema socioeducativo, caso seja preso.</p>
<p>Para se manterem em segurança, muitos ladrões procuram repetir ações que outros realizaram sem grandes ameaças, minimizando seus riscos ao tomar as mesmas precauções e assimilar seu repertório de habilidades técnicas - determinada postura corporal e pensamento estratégico, bem como protocolos de abordagem às vítimas. Porém, é preciso haver um cuidado de não repetir com frequência suas práticas num mesmo lugar, visto que isso pode chamar a atenção da polícia e fazer com que sejam pegos. Haverão ainda situações em que necessitarão agir a partir do improviso para sobreviver, o que torna a prática o roubo ainda mais perigosa a esses indivíduos.</p>
<p>Ao mesmo tempo, o roubo realizado por carro ou moto demanda um conhecimento técnico da cartografia da cidade pelo piloto, desviando de engarrafamentos e da polícia ou locais em que a polícia possa estar. Os ladrões que roubam a partir desses veículos dividem suas abordagens em “abordagem oportunista”, em que um ou dois indivíduos roubam em locais menos movimentados, visto que será mais difícil haver reações armadas ao redor; e “arrastões de carros”, na qual grupos de dois ou três assaltantes param seu veículo na frente do trânsito e enquadram até três carros para trás. As motos são muito visadas pela polícia, e são por isso um modo mais difícil de realizar a prática do roubo.</p>
<p>Um último caso é aquele em que os indivíduos, comumente menores de idade, “roubam de ônibus”, especialmente entre o Centro e a Zona Sul, a partir do uso do ônibus 474, linha que sai do Jacaré e atravessa a fronteira entre a favela e a Zona Sul. Assim, utilizam-se do ônibus para chegarem a um território em que a prática do roubo seja “permitida” pelas regras da favela. Entretanto, especialmente quando em direção ao seu ponto final na favela do Jacaré, esse ônibus costuma sofrer muitas revistas pela polícia, e todos aqueles indivíduos, normalmente jovens e negros, que não estiverem portando uma carteira de identidade ou dinheiro, são chamados. Por vezes, mesmo sem ter realizado um roubo, esses jovens podem ser colocados em uma instituição socioeducativa e aguardar por até 45 dias o julgamento. Assim, a partir do modo de agir, falar ou caminhar pelo espaço do favelado, são criados pela polícia métodos de suspeição baseados intensamente no racismo e no preconceito de classe inseridos em uma cidade marcada pela segregação socioespacial: o Rio de Janeiro.&nbsp;</p>
<p>Com todo esse cenário construído ao fundo, o território longe de sua favela é muitas vezes hostil ao jovem favelado, que cruza diversos problemas ao andar pela cidade.</p>
<p>“Mesmo os interlocutores que se encontravam em liberdade na ocasião da pesquisa etnográfica encontram-se atualmente todos mortos ou presos (...). São imensos os custos de oportunidade da prática de roubos, que os ladrões têm plena ciência dos riscos a que estão submetidos e que, mesmo assim, há quem insista em roubar.” (p. 587)</p>
 
== <br>Apreciação crítica ==
== <br>Apreciação crítica ==
<p>Esse artigo apresentou grande importância em um maior entendimento das técnicas e expertises da prática do roubo na cidade do Rio de Janeiro, bem como da relação de seus praticantes com as instâncias reguladoras de suas práticas dentro das favelas. Além disso, com sua discussão, podemos retomar compreensões sobre certos elementos do racismo e do preconceito de classe que atinge jovens negros e favelados na cidade. É essencial a apresentação, por meio de etnografias, de como operam na prática conceitos e compreensões sociológicas que já conhecemos. O texto aqui apresentado consegue realizar grandes contribuições a partir disso.&nbsp;</p>
<p>Esse artigo apresentou grande importância em um maior entendimento das técnicas e expertises da prática do roubo na cidade do Rio de Janeiro, bem como da relação de seus praticantes com as instâncias reguladoras de suas práticas dentro das favelas. Além disso, com sua discussão, podemos retomar compreensões sobre certos elementos do racismo e do preconceito de classe que atinge jovens negros e favelados na cidade. É essencial a apresentação, por meio de etnografias, de como operam na prática conceitos e compreensões sociológicas que já conhecemos. O texto aqui apresentado consegue realizar grandes contribuições a partir disso.&nbsp;</p>

Edição das 21h32min de 28 de setembro de 2021

Autora: Vivian de Almeida

Referências

GRILLO, Carolina; MARTINS, Luana. Indo até o problema: Roubo e circulação na cidade do Rio de Janeiro. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Vol. 13 – no 3 – SET-DEZ 2020 – pp. 565-590.


Breve contextualização

O artigo “Indo até o problema: Roubo e circulação na cidade do Rio de Janeiro” [1] , de Carolina Grillo e Luana Martins, utiliza de uma análise de suas pesquisas etnográficas anteriores para descrever os riscos enfrentados pelos ladrões ao deslocar-se pela cidade para realizar furtos e roubos. O artigo constrói uma distinção de suas ações pelas formas com as quais se locomovem no urbano: seja pelo uso de carro ou moto, ou ao utilizar-se de ônibus, pensando assim territorialidade, violência, segregação socioespacial e perpassando discussões sobre racismo.

Carolina Christoph Grillo é pesquisadora de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e professora colaboradora da mesma universidade. Tem doutorado e mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil), e graduação em ciências sociais pela mesma universidade. É também pesquisadora associada ao Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU, UFRJ) e do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da UFF.

Luana Almeida Martins é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) da Universidade Federal Fluminense na linha de pesquisa Segurança Pública e Administração Institucional de Conflitos. É mestre pelo mesmo programa e tem graduação em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É pesquisadora vinculada ao Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (NEPEAC), do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC), e ao Núcleo de Estudos em Psicoativos e Cultura (PsicoCult).


Resumo dos principais argumentos

O artigo é iniciado a partir do apontamento do alto índice de roubos e furtos na cidade do Rio de Janeiro como um modo de mudar a forma como os moradores levam seu dia, pensando com cuidado seus trajetos e horário de circulação, bem como o que levar ao sair. Por essa visão, as autoras exibem como a prática do roubo também gera ameaças e mudanças cotidianas ao próprio ladrão, que se vê obrigado a seguir certas “regras” a fim de se manter vivo ou livre por mais tempo. Assim, há uma diferença na circulação pela cidade entre o ladrão e o traficante: roubar faz com que os indivíduos saiam de seu local de moradia de encontro a novos espaços em que se tornam mais vulneráveis, indo em direção ao “problema” com policiais, justiceiros, vítimas e heróis, uma ação que se apresenta muito mais perigosa do que o tráfico. Isso ocorre porque o traficante, por outro lado, está em seu local mais confortável quando operações policiais ocorrem e esses agentes estatais “vão até eles”.

Grillo e Martins (2020) apresentam como os diversos modos de praticar o roubo trazem diferentes repertórios de circulação pelo espaço urbano por meio do uso de carro, moto ou ônibus e geram perigos particulares. Cada modo traz expertises diferentes para reduzir a possibilidade de ser pego pela polícia ou sofrer uma ameaça à vida, sendo necessário escolher bem as vítimas, situações e locais, assim como formas de agir durante a prática.

As pesquisas etnográficas utilizadas para a análise foram realizadas em dois locais: em uma favela controlada pelo Comando Vermelho (CV) junto a traficantes e praticantes de roubo à mão armada, em maioria maiores de idade; e a segunda em uma unidade socioeducativa, com adolescentes homens de 14 a 18 anos, a maioria presa por atos infracionais de furto ou roubo nas praias ou durante o trajeto do ônibus 474.

A partir desses estudos, as autoras apontam como a firma local do tráfico de drogas em favelas coloca em suas próprias mãos o papel de criar “regras” e colocar limites às ações dos ladrões, cobrando aqueles que agirem de modo contrário. Isso é construído porque a prática de roubos contribui para um aumento na repressão policial nas favelas a partir da repressão para recuperar os bens roubados ou buscar os ladrões. Com isso, aos olhos dos que controlam os morros, uma regulação da prática é necessária, na qual proíbem a realização de roubos dentro da favela ou em localidade próxima, bem como locais como o interior de um ônibus, este último especialmente por ser visto como um local que simboliza um meio de locomoção dos trabalhadores. A partir disso, existe uma distância razoável esperada para a ação do roubo/furto, dificultando a ligação da comunidade com determinado roubo, aumentando os riscos de suas ações e produzindo diferentes espacialidades e circulações pela cidade.

Com esse cenário de fundo, os atores se veem obrigados a circular pela cidade para longe do morro, construindo diferentes tecnologias para lidar com a imprevisibilidade de suas práticas em um local hostil, com o qual não tem tanta proximidade e onde não possuem a proteção dos donos da boca, sentindo-se constantemente ameaçados. Para isso, constroem mapas e sistemas para identificar os melhores locais e vítimas para realizarem suas práticas enfrentando menores riscos, e agem com criatividade ao improvisarem formas de voltar para casa a salvo quando é preciso.

Quando tratamos do roubo a carros, os “bodes” - carros roubados levados para a favela -, por serem objetos grandes demais para serem escondidos facilmente (podendo levar operações até o espaço), necessitam de uma autorização do dono do morro para serem guardados dentro do território das favelas.

Portanto, todos esses exemplos demonstram como existe uma ética partilhada pelos atores das ações ilícitas no interior e exterior das favelas, com noções de certo e errado a serem seguidas. Todas essas ações são regras e formas de agir que devem ser seguidas na teoria, mas o caminho não necessariamente será este. Entretanto, se o indivíduo que não as seguir for delatado ao dono do morro, poderá sofrer sanções: seja dentro da favela, seja dentro de um sistema socioeducativo, caso seja preso.

Para se manterem em segurança, muitos ladrões procuram repetir ações que outros realizaram sem grandes ameaças, minimizando seus riscos ao tomar as mesmas precauções e assimilar seu repertório de habilidades técnicas - determinada postura corporal e pensamento estratégico, bem como protocolos de abordagem às vítimas. Porém, é preciso haver um cuidado de não repetir com frequência suas práticas num mesmo lugar, visto que isso pode chamar a atenção da polícia e fazer com que sejam pegos. Haverão ainda situações em que necessitarão agir a partir do improviso para sobreviver, o que torna a prática o roubo ainda mais perigosa a esses indivíduos.

Ao mesmo tempo, o roubo realizado por carro ou moto demanda um conhecimento técnico da cartografia da cidade pelo piloto, desviando de engarrafamentos e da polícia ou locais em que a polícia possa estar. Os ladrões que roubam a partir desses veículos dividem suas abordagens em “abordagem oportunista”, em que um ou dois indivíduos roubam em locais menos movimentados, visto que será mais difícil haver reações armadas ao redor; e “arrastões de carros”, na qual grupos de dois ou três assaltantes param seu veículo na frente do trânsito e enquadram até três carros para trás. As motos são muito visadas pela polícia, e são por isso um modo mais difícil de realizar a prática do roubo.

Um último caso é aquele em que os indivíduos, comumente menores de idade, “roubam de ônibus”, especialmente entre o Centro e a Zona Sul, a partir do uso do ônibus 474, linha que sai do Jacaré e atravessa a fronteira entre a favela e a Zona Sul. Assim, utilizam-se do ônibus para chegarem a um território em que a prática do roubo seja “permitida” pelas regras da favela. Entretanto, especialmente quando em direção ao seu ponto final na favela do Jacaré, esse ônibus costuma sofrer muitas revistas pela polícia, e todos aqueles indivíduos, normalmente jovens e negros, que não estiverem portando uma carteira de identidade ou dinheiro, são chamados. Por vezes, mesmo sem ter realizado um roubo, esses jovens podem ser colocados em uma instituição socioeducativa e aguardar por até 45 dias o julgamento. Assim, a partir do modo de agir, falar ou caminhar pelo espaço do favelado, são criados pela polícia métodos de suspeição baseados intensamente no racismo e no preconceito de classe inseridos em uma cidade marcada pela segregação socioespacial: o Rio de Janeiro. 

Com todo esse cenário construído ao fundo, o território longe de sua favela é muitas vezes hostil ao jovem favelado, que cruza diversos problemas ao andar pela cidade.

“Mesmo os interlocutores que se encontravam em liberdade na ocasião da pesquisa etnográfica encontram-se atualmente todos mortos ou presos (...). São imensos os custos de oportunidade da prática de roubos, que os ladrões têm plena ciência dos riscos a que estão submetidos e que, mesmo assim, há quem insista em roubar.” (p. 587)


Apreciação crítica

Esse artigo apresentou grande importância em um maior entendimento das técnicas e expertises da prática do roubo na cidade do Rio de Janeiro, bem como da relação de seus praticantes com as instâncias reguladoras de suas práticas dentro das favelas. Além disso, com sua discussão, podemos retomar compreensões sobre certos elementos do racismo e do preconceito de classe que atinge jovens negros e favelados na cidade. É essencial a apresentação, por meio de etnografias, de como operam na prática conceitos e compreensões sociológicas que já conhecemos. O texto aqui apresentado consegue realizar grandes contribuições a partir disso. 


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  1. GRILLO, Carolina; MARTINS, Luana. Indo até o problema: Roubo e circulação na cidade do Rio de Janeiro. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 13, no. 3, set-dez 2020, p. 565-590.