Jane Nascimento (entrevista): mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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O ano era 1966 quando os pais de Jane Nascimento decidiram se mudar com a família para uma localidade conhecida à época como Vila Cinco, em Jaquarepagá, no Rio de Janeiro. Ela e os irmãos viviam em uma região até então sem muitos vizinhos, onde as pessoas viviam da pesca, agricultura e da caça. Eram tempos mais simples, no limiar de um momento definidor para o destino econômico da Zona Oeste.
O ano era 1966 quando os pais de Jane Nascimento decidiram se mudar com a família para uma localidade conhecida à época como Vila Cinco, em Jaquarepagá, no Rio de Janeiro. Ela e os irmãos viviam em uma região até então sem muitos vizinhos, onde as pessoas viviam da pesca, agricultura e da caça. Eram tempos mais simples, no limiar de um momento definidor para o destino econômico da Zona Oeste.
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“Movimento Social pra mim é a melhor religião do mundo. Por que ele luta por um mundo melhor”. Ela não se lembra de quantos movimentos já participou, mas sua trajetória é longa. Desde quando as filhas entraram para a escola, e ela passou a se envolver no Conselho Escola Comunidade. Até chegar no MUP, já em Vila Autódromo, a história é longa. “São tantos, que não vou lembrar o nome, não. Eu não tenho partido nenhum, eu vou apoiar aquele candidato - por exemplo - que eu sentir que quer o bem”.
“Movimento Social pra mim é a melhor religião do mundo. Por que ele luta por um mundo melhor”. Ela não se lembra de quantos movimentos já participou, mas sua trajetória é longa. Desde quando as filhas entraram para a escola, e ela passou a se envolver no Conselho Escola Comunidade. Até chegar no MUP, já em Vila Autódromo, a história é longa. “São tantos, que não vou lembrar o nome, não. Eu não tenho partido nenhum, eu vou apoiar aquele candidato - por exemplo - que eu sentir que quer o bem”.


Atualmente, ela escreve no jornal ''Abaixo Assinado'', de Jacarepaguá, a convite do editor da folha, feita por moradores da região. Em sua primeira coluna, ela trata da condição de vida que moradores retirados de seus locais de origem. “A gente vai atrás de onde estão os problemas pra divulgar”. Ela, mesma, diz ter diversos problemas de saúde em decorrência do estresse acumulado e do atual endereço, onde relata se sentir uma estranha. “O mundo foi tomado por um sentimento de medo e ódio. E isso tudo vai me adoecendo. Tem hora que eu entro em parafuso dentro do apartamento. Eu me sinto deslocada.”
Atualmente, ela escreve no jornal [[Media:Jornal_Abaixo-assinado_de_Jacarepaguá|''Abaixo Assinado'',]] de Jacarepaguá, a convite do editor da folha, feita por moradores da região. Em sua primeira coluna, ela trata da condição de vida que moradores retirados de seus locais de origem. “A gente vai atrás de onde estão os problemas pra divulgar”. Ela, mesma, diz ter diversos problemas de saúde em decorrência do estresse acumulado e do atual endereço, onde relata se sentir uma estranha. “O mundo foi tomado por um sentimento de medo e ódio. E isso tudo vai me adoecendo. Tem hora que eu entro em parafuso dentro do apartamento. Eu me sinto deslocada.”


'''Amizades'''
'''Amizades'''

Edição das 11h50min de 11 de março de 2020

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Por Núcleo Piratininga de Comunicação

O ano era 1966 quando os pais de Jane Nascimento decidiram se mudar com a família para uma localidade conhecida à época como Vila Cinco, em Jaquarepagá, no Rio de Janeiro. Ela e os irmãos viviam em uma região até então sem muitos vizinhos, onde as pessoas viviam da pesca, agricultura e da caça. Eram tempos mais simples, no limiar de um momento definidor para o destino econômico da Zona Oeste.

Jane tinha então 10 anos, e se lembra da inauguração do primeiro Autódromo de Jacarepaguá, sede de grandes competições: “ Nessa época quem corria lá eram os irmãos Emerson Fittipaldi e Wilson Fittipaldi. Depois houve outras reinaugurações - nessa época ele vivia sendo reformado…”, relembra com precisão. De fato, o antigo autódromo - que não existe mais - foi uma das muitas mudanças estruturais que afetariam drasticamente sua vida e a de toda a população tradicional da região e definiriam a trajetória de Jane.

A mãe trabalhava em casa. Ela e os irmãos mais velhos ajudavam o pai na pesca. Era uma vida toda natural, luz de lampião e fogão a querosene. Para chegar à propriedade da família, só por uma estradinha de chão. Mas isso faz muito tempo. O último vestígio da antiga comunidade de pescadores que se formou ali - uma casinha de palafita onde se guardavam redes, anzóis, puçás -, foi derrubada nas obras para as Olimpíadas Rio 2016. Com ela, se foi todo um modo de vida em nome de um progresso que mal se vê ali. “Era a única lembrança que a gente tinha de lá, do início de tudo”.

Estudar foi um desafio. Não tinha ônibus à época, e uma a uma as irmãs de Jane foram desistindo de ir para a escola com medo de cobras (tinham muitas naquela época), assédio ou coisa pior. Minha irmã já foi seguida por um cara que correu atrás dela, mas eu insisti.” O pai, passou a mandar os irmãos de Jane buscarem ela. Não foi fácil mas deu certo. “Eles ficavam danados por causa disso. No fim, todo mundo voltou pra escola - eles começaram a me ver animada, e começaram a ir.” Ela se lembra de uma série de situações que hoje rendem boas risadas:

Havia caminhões de peão que passavam para ir trabalhar, e quando eles viam mulher jovem caminhando ali, eles faziam barulho, provocavam… gostavam de tocar o terror. Aí eu passei a botar calça jeans, vestir casaco de homem e a botar um facão embainhado”. A, Segundo ela, era se disfarçar e, se preciso, ter com o que se defender. Mas nunca foi necessário uma atitude drástica - sinal de que o disfarce funcionou. “As vezes - quando não conseguia esconder o facão no ponto de ônibus - eu levava ele pra escola. Dizia pras pessoas “não briga comigo, não, hein” e mostrava o facão. Me divertia muito com isso.”

A vida profissional da jovem moradora de uma Zona Oeste tradicionalmente rural começou com a descoberta do gosto pela pintura. Pensava em estudar, em comprar material, mas a família era humilde e não podia investir. Até que um dia, o acaso deu uma ajudinha: “Um dia”, relembra, “eu encontrei na rua um dinheirinho - nem era muita coisa, não. Cheguei em casa e perguntei para minha mãe se podia ficar com esse dinheiro para comprar material para pintar”. Dona Josepha concordou, e Jane pode comprar seus primeiros pincéis, tintas e tela e começou a desenvolver pintura em tecido nas sobras dos tecidos que a mãe cozia em casa. “Sempre que eu encontrava um pedacinho de tecido dando sopa, eu gostava de ficar ali desenvolvendo.”

Trabalho e coletividade

Daí, vieram os primeiros trabalhos. E a partir deles, veio despertar nela uma consciência diante de diversos problemas que dificultavam a vida - a dela e a de outros que só queriam trabalhar. Com 28 anos, indo trabalhar em Nova Iguaçu, viu um grupo de jovens, como ela, que andavam desocupados na praça, e decidiu dividir o que sabia de estamparia com eles. Deu certo. “Começou a formar fila pra comprar a camisa. Pessoal ficava “essa é a minha! Essa é a minha!”. “Eu ainda não era de movimento social, mas eu acho que eu já tinha um instinto.

 No mesmo período, foi arrumar serviço para um pessoal que rondava os portões do Rio Centro em busca de bicos, e quase se queimou. O patrão não quis pagar o combinado a ela. “Eu pensei: Como eu vou sair dessa, agora?”. Ficou sem alternativa que não fazer um escândalo. Juntou todos os colegas para quem ela tinha conseguido trabalho, esperaram a feira começar, e quando o pavilhão lotou, começaram a manifestação.  “Eu cheguei na entrada principal e falei “estou procurando o japonês!”, e o pessoal repetindo! “Ele precisa pagar esse pessoal!” - e o pessoal repetindo tudo o que eu falava”. Também acabou dando certo, e no fim, todos receberam.

 “A gente é egoísta, né? A gente pensa muito na gente: a gente quer crescer; quer vencer… Eu reconheço que a gente precisa pensar na gente, também. Mas dividir um pouquinho, né? Se cada um achasse uma forma de ocupar as outras pessoas que estão sem nada na vida pra desenrolar, acho que o mundo estaria um pouco melhor, entendeu?”

Nesse momento, entra Sheila no NPC, exibindo a barriga de cinco, quase seis meses de gravidez. Jane não pode evitar de interromper a conversa quando a vê:

  • Tá bonita! Tá de quantos meses?
  • Tô de cinco, vou entrar no sexto.
  • A família crescendo, né, Claudinha?

“A Sheila foi muito importante na luta, pra gente [Vila Autódromo]. Ela acompanhou as principais reuniões nossas na prefeitura. Quando a gente [associação de moradores] ia, eu vinha na Claudia e pedia socorro, e a Claudinha mandava Sheila.” Ela se lembra dos anos de embate com a prefeitura pelo direito de morar onde sempre morou, na Vila Autódromo, em vista das remoções que o governo estava realizando para efetuar obras relativas aos Jogos Olímpicos de 2016 que aconteceriam na cidade.

Vila Autódromo

Segundo o site Museu das Remoções e a própria Jane, a Vila Autódromo teve sua origem nos anos 1960, como colônia de pescadores estabelecida às margens da Lagoa de Jacarepaguá. Na década seguinte, a população cresceu em vista das oportunidades de trabalho na construção das grandes obras na região, como o Riocentro e o Autódromo de Jacarepaguá – que inspirou o nome da comunidade.

A própria prefeitura foi responsável por levar mais gente à comunidade. Houve dois reassentamentos no local - de moradores de comunidades que também sofreram remoções -, feitos pela Secretaria de Habitação: um de moradores da favela Cardoso Fontes, e outro de alguns moradores da Cidade de Deus.

Nos anos 1980, os moradores construíram uma associação, e fez um esforço para regularizar serviços fundamentais que até então eram negados aquelas pessoas: água e esgoto, luz elétrica, gás, telefone. O governo de Leonel Brizola (PDT 1991-1994) iniciou um programa de regularização fundiária na região.

Nos anos 1990, Eduardo Paes começava a integrar o dia a dia daquela população quando foi subprefeito da Barra da Tijuca durante a gestão Cesar Maia. O plano de governo para a região consistia em expulsar os moradores das proximidades do autódromo para explorar o terreno em empreendimentos privados, por sua localização interessante. Ele nunca mais daria sossego.

Em sua gestão como prefeito na cidade (2009-2016), os grandes eventos esportivos da década estiveram no centro de atenção da gestão. A remoção de comunidades de baixa renda foi uma marca do governo de Paes. Vila Autódromo, onde Jane morava, era uma das quase 120 comunidades a serem reassentadas pelo Município. Mais de 20 mil famílias foram removidas em função da Copa do Mundo 2014 e dos Jogos Olímpicos.

“Eu acho até que ele fez muita coisa - mas fez muita mímica também. Olha só a hora que eu cheguei aqui!” - se referindo ao tempo que levou de sua casa, na Zona Oeste da cidade, até o Núcleo Piratininga, que fica no Centro. “Eu saí de casa quinze para meio dia e cheguei aqui três e pouca. Porque os BRTs que o Eduardo Paes construiu tiraram os ônibus - não só da Colônia, onde eu moro, mas da maioria dos lugares”.

A luta da associação de moradores de Vila Autódromo obteve sucessos, mas ainda assim, mais de 500 famílias foram removidas sob a justificativa da construção do Parque Olímpico, do Centro de Mídia e das reformas de mobilidade urbana. Jane relata como eram os encontros com o governo:

“O Eduardo Paes nunca gostou que registrasse (as reuniões), então nós de propósito levávamos ela e outros apoiadores nossos, e eles ficavam ali filmando, registrando. Ele (Paes) chegou a mandar parar, mas nós não paramos, não.” Foi onde Sheila e o NPC entraram,  cobrindo as reuniões e orientando lideranças sobre como agir nesses espaços intimidatórios.

Jane conheceu o NPC por intermédio de um amigo e também líder comunitário da Vila Autódromo. Ela diz que passou a entender que sua indignação com as injustiça pelas quais passava não eram apenas dela. Eram coletivas, e vinham de muito tempo. “Tudo o que havia dentro que mim mas que eu achava que eu era rebelde, que a minha forma de pensar era ignorante… aí eu comecei a conhecer a luta.”

Para ela, a comunicação foi fundamental para dialogar com outros setores da sociedade e buscar apoio - tanto entre outras comunidades atingidas pelo mesmo problema que a Vila, quanto jornais, instituições que pudessem contribuir. “comecei a entender certas coisas e isso foi me dando coragem. Coragem de chegar no morro do Bumba… coragem de pegar um microfone… como chegar até um reunião, como se colocar… isso tudo eu aprendi com o NPC”.

Ela reclama que a qualidade de vida de quem dependia da pesca e outras atividades que garantiam o sustento  caiu muito com a condição imposta pelo Minha Casa Minha Vida. “A Vila Autódromo, como outras comunidades, era agrícola, pesqueira… e as pessoas foram removidas pra dentro de apartamento”.

Movimento Social

“Movimento Social pra mim é a melhor religião do mundo. Por que ele luta por um mundo melhor”. Ela não se lembra de quantos movimentos já participou, mas sua trajetória é longa. Desde quando as filhas entraram para a escola, e ela passou a se envolver no Conselho Escola Comunidade. Até chegar no MUP, já em Vila Autódromo, a história é longa. “São tantos, que não vou lembrar o nome, não. Eu não tenho partido nenhum, eu vou apoiar aquele candidato - por exemplo - que eu sentir que quer o bem”.

Atualmente, ela escreve no jornal Abaixo Assinado, de Jacarepaguá, a convite do editor da folha, feita por moradores da região. Em sua primeira coluna, ela trata da condição de vida que moradores retirados de seus locais de origem. “A gente vai atrás de onde estão os problemas pra divulgar”. Ela, mesma, diz ter diversos problemas de saúde em decorrência do estresse acumulado e do atual endereço, onde relata se sentir uma estranha. “O mundo foi tomado por um sentimento de medo e ódio. E isso tudo vai me adoecendo. Tem hora que eu entro em parafuso dentro do apartamento. Eu me sinto deslocada.”

Amizades

Apesar de tantos problemas, Jane se sente feliz ao encontrar parceiros que lutam pelas mesmas causas que ela, e são verdadeiras na luta. Ela sabe diferenciar quem é quem. “Tirando aqueles oportunistas que acham brechas pra tirar proveito, o resto se salva.” Ela fica emocionada ao relembrar da trajetória de pessoas próximas a ela, que antes sentiam medo e hoje, são verdadeiros líderes, como o ex-presidente da associação de moradores de Vila Autódromo, graças ao encorajamento dela própria. “Eu me lembro que eu chegava nas mesas, pegava o microfone e dava pra ele: “Levanta, vai representar o seu papel! Você tem força e não vai usar?”. E ele passou a falar.”

Essas sementes que ela plantou no caminho e que geraram afetos são os frutos que ela carrega pela vida. “Interessante que amizade a gente vai construindo um monte e parece um bonde que vai passando. Elas ficam, mas vão se renovando. Aí a gente volta lá atrás e reencontra as amizades lá de trás”.