Letalidade policial e respaldo institucional: perfil e processamento dos casos de resistência seguida de morte na cidade de São Paulo (resenha)
Resenha sobre o artigo de Godoi et al[1], no qual os autores buscam destacar a dupla dimensão do problema acerca da violências policial: i) a violência letal da polícia; e ii) o seu amplo respaldo institucional.
Autoria: Júlio Araújo.
Sobre[editar | editar código-fonte]
O artigo foi elaborado por uma equipe de pesquisadores que participa do projeto “A gestão do conflito na produção da cidade contemporânea: a experiência paulista” (2014-2018), coordenado pela professora Vera Telles no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP).
Em parceria com o Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o grupo acessou cópias de quase todos os boletins de ocorrência (BOs) que envolviam mortes de civis cometidas por policiais, dentro do registro de “resistência seguida de morte”, na cidade de São Paulo, em 2012.
Os autores chamam o período analisado de “crise de 2012”, pois o ano em questão foi antecedido pela crescente ocupação por policiais e ex-policiais na burocracia estatal. A presença de militares no alto escalão de governos e na área de segurança pública, com a adoção de política de enfrentamento militarizado ao “crime organizado”, tinha por objetivo levar o policiamento ostensivo às periferias, em combate ao Primeiro Comando da Capital (PCC). Nesse contexto, houve um abalo no “armistício” (Feltran, 2016) que vigorava entre o Estado e a facção. Isso acarretou, como mostra Dias (2015), um forte aumento no número mortes de policiais dentro e fora de serviço. Por outro lado, cresceram as chacinas e execuções sumárias, bem como as ocorrências de “resistência seguida de morte”.
Principais argumentos[editar | editar código-fonte]
Com base na análise de cópias de 316 BOs de casos classificados como “resistência seguida de morte” e de 22 processos judiciais, o artigo procura destacar a dupla dimensão do problema: i) a violência letal da polícia; e ii) o seu amplo respaldo institucional.
No que se refere à violência letal da polícia, o artigo constata que a Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) não tratou no período como “homicídio” os casos relacionados mortes em supostos confrontos com policiais. Havia menção apenas a “resistência” ou “tentativa de homicídio”, mas com ênfase na ação das vítimas letais contra os agentes de forças de segurança, e não na ação destes. Além disso, destacavam-se outros crimes praticados pelas vítimas, como roubo ou tráfico de drogas.
A pesquisa constatou, também, que os boletins de ocorrência costumavam tratar a vítima como “autor” (do fato/crime), “autor desconhecido” ou “indiciado”. Esse aspecto indica um enviesamento do próprio registro da ocorrência, já que, por meio da “criminação” (Misse, 2006), havia ênfase no crime supostamente praticado pela vítima, conferindo-se, por outro lado, presunção de legitimidade à ação dos policiais. Com isso, as figuras de autor do fato e vítima ficavam embaralhadas desde o início, dificultando a própria investigação. Outro aspecto importante está na falta de menção à existência de um homicídio a ser esclarecido, mas à mera ocorrência de um crime cometido por alguém que teria resistido à prisão.
A pesquisa constatou, ainda, uma característica comum aos crimes associados às situações de resistência. Diferentemente dos casos do Rio de Janeiro, onde o peso da chamada “guerra às drogas” é grande, as ocorrências mencionavam, na maioria dos casos (67,1%), crimes de roubo consumado ou tentativa. Isso denota, na visão dos autores, uma relação mais forte da letalidade policial em São Paulo com a defesa da propriedade.
Além disso, os dados estatísticos dos registros indicam que a maioria das vítimas era jovem, com média de idade de 24 anos. 62% dessas vítimas eram negras (pretas e pardas), as ocorrências se concentraram na periferia (extremo leste e extremo sul da cidade), e a incidência de casos foi maior a partir de junho, quando se intensificou o embate entre a polícia e o PCC. A maior parte das ações foi cometida por policiais militares (293 casos). Foram contabilizadas ainda ações praticadas por policiais tanto em serviço quanto fora dele, o que seria um diferencial em relação ao Rio de Janeiro, que levaria em conta apenas a primeira circunstância.
Outra particularidade paulistana está no fato de que as ocorrências de “resistência seguida de morte” aconteceram principalmente em vias asfaltadas (avenidas e ruas). As ocorrências em vielas de favelas, tão comuns no Rio de Janeiro, foram raras na capital paulista. Em 94% dos casos, houve remoção das vítimas para a prestação de socorro em hospital, situação que é criticada por dificultar o trabalho da perícia. O artigo destaca que, por força de resolução editada no ano seguinte (Resoluçaõ SSP-05, de 7 de janeiro de 2013), que determinou a espera da ambulância por policiais e a não condução ao hospital, a incidência de mortes por intervenção policial sofreu redução de 17,6% em 2013.
Sobre as armas apreendidas nas ocorrências, a principal arma utilizada por policiais foi a pistola calibre.40, de maior precisão e menor poder letal, o que ofereceria uma pista para compreender taxas mais baixas de letalidade do que a do Rio de Janeiro, onde o uso de fuzis é amplamente disseminado. A arma apreendida entre as vítimas, por sua vez, foi o revólver calibre. 38. É curioso, no entanto, que das 316 ocorrências, em 22 foram apreendidos apenas simulacros de armas de fogo, em 2 ocorrências apenas armas brancas e em 14 não houve apreensão de arma alguma. Ou seja, em 12% dos casos, as pessoas mortas não portavam armas de fogo.
Ao analisar os processos judiciais, o artigo constata uma série de ações e omissões que acabam por chancelar a letalidade policial. Em primeiro lugar, a questão não é levada à apreciação dos órgãos competentes para a apreciação de crimes dolosos contra a vida, o que deveria ensejar, na sequência, a análise pelo tribunal do júri. Submetia-se, na prática, o caso a uma vara criminal comum, o que já enfraquecia, desde o início, a apreciação do caso, com o aumento do risco de arquivamento.
Outro ponto relevante diz respeito aos laudos produzidos. Laudos como a recognição visuográfica do local do crime, que deve ser feito pela equipe do DHPP no calor dos fatos e com preservação do local, e o laudo de perícia do local – que contém fotografias do local do crime e imagens de projéteis, perfurações, manchas de sangue etc – possuem caráter descritivo e são extremamente relevantes, tendo sido devidamente elaborados. Além disso, em todos os processos deve haver o laudo necroscópico, que indica as causas da morte e os ferimentos da vítima, com detalhada descrição das lesões. Neste último laudo, é possível verificar as características associadas a execuções sumárias. Apesar de devidamente realizados, não houve apreciação crítica de seu conteúdo.
Além dos laudos, existem os depoimentos. Constatou-se que há forte presença dos policiais nos depoimentos – que aparecem como vítimas, condutores e testemunhas -, com discursos padronizados que relatam a mesma dinâmica. Além disso, há vários depoimentos das vítimas do crime imputado ao morto, as quais geralmente não presenciaram a ação policial. Até mesmo familiares e amigos da vítima do crime imputado ao morto são registrados nas investigações.
Esse conjunto de elementos é submetido a peças conclusivas. A primeira das peças conclusivas é o relatório final da investigação, feito pelo delegado da DHPP. A pesquisa identificou que não há análise pormenorizada das conclusões da investigação, sem qualquer ponderação sobre evidências e indícios identificados, ocorrendo apenas descrição burocrática das etapas até então realizadas. Ao final, há a definição de “resistência seguida de morte” de maneira sucinta, corroborando-se a tese da inocência dos policiais e a culpabilidade do morto, com ênfase no argumento da excludente de ilicitude.
A segunda peça conclusiva corresponde à análise pelo Ministério Público, que pode promover o arquivamento do caso ou oferecer a denúncia, que é a peça que dá início à ação penal. Em todos os processos analisados, o MP arquivou o caso. A característica das peças é marcada pelo aprimoramento e sofisticação da versão policial, tornando-a mais coesa e articulada. Embora tenha o papel de exercer o controle externo da atividade policial, promotores tendem a endossar a versão do relatório policial de maneira acrítica.
A terceira peça conclusiva é a decisão judicial que analisa a promoção de arquivamento. Esta é caracterizada pelo caráter lacônico, que endossa os argumentos do Ministério Público, dando fim ao ciclo da investigação. Em todos os casos, o arquivamento foi homologado pelo juízo.
Diante das constatações da pesquisa, o artigo delineia algumas comparações da realidade de São Paulo com a do Rio de Janeiro. Em primeiro lugar, há a diferenciação em relação aos tipos de repressão ao qual se liga a resistência seguida de morte: em SP, os casos são de repressão à prática de roubos, ao passo que no RJ estão ligados ao tráfico de drogas. Além disso, em SP as mortes ocorrem no asfalto (ruas e avenidas), ao passo que no RJ os casos estão nas vielas de favelas.
Um fator que merece destaque diz respeito à constatação de que, embora em SP existam perícias bem realizadas e testemunhas, isso não afastou o enfrentamento da letalidade policial. No RJ, é comum apontar que a falta de perícias e de testemunhas favorece esse cenário. No caso de SP, porém, mesmo com a presença desses elementos e com inquéritos mais completos, os casos seguem centrados na caraceterização moral da vítima e no descarte, de plano, do abuso da força.
Apreciação crítica[editar | editar código-fonte]
O caráter descritivo do trabalho é complementado pelo estabelecimento de relações entre os dados e diversas pesquisas já realizadas neste campo, permitindo uma comparação regionalizada sobre o fenômeno. Os autores conseguem situar os boletins analisados em um processo histórico específico (crise de 2012) e permitem identificar não apenas o fenômeno de enfrentamento do Estado com o PCC naquele momento, mas o próprio padrão de comportamento do sistema de justiça em casos do gênero.
Nesse ponto, o artigo traz um quadro relevante sobre a letalidade policial em São Paulo, trazendo diferenças na lógica da atuação policial e de condução de investigações em relação ao Rio de Janeiro. Ao debruçar-se sobre os boletins de ocorrência, os pesquisadores mostram como se constrói a narrativa da “resistência seguida de morte” na burocracia estatal. A utilização de termos, a destinação a órgãos que não são têm atribuição para apuração de homicídios e o tratamento da vítima da letalidade policial pavimentam um caminho favorável ao arquivamento do inquérito policial, que é tratado de maneira acrítica.
Isso ocorre a despeito da existência de elementos que, do ponto de vista técnico, poderiam claramente ensejar uma análise crítica dos procedimentos. Nem mesmo questões elementares, como o fato de que, em 12% dos casos, os homicídios praticados por policiais ocorreram quando a vítima sequer possuía arma de fogo, é problematizado nesses inquéritos.
Nesse caso, o artigo indica que um freio à falta de problematização poderia ser dado justamente pelo órgão que detém a função de exercer o controle externo da atividade policial (Ministério Público), porém isso não é realizado. O artigo mostra como o respaldo institucional, que poderia ser um obstáculo, aprofunda um cenário de violência conhecido. Paralelamente, o texto ressalta como as políticas de segurança que se propõem no contexto do bolsonarismo estão desconectadas da realidade, como se depreende da análise das armas apreendidas com as vítimas da letalidade policial, que já são de livre circulação.
Referências[editar | editar código-fonte]
Dias, Camila, Maria Gorete Marques, Ariadne Natal, Mariana Possas e Caren Ruotti. 2015. “A prática de execuções na região metropolitana de São Paulo na crise de 2012: um estudo de caso”.
Revista Brasileira de 9 (2): 160-179. Segurança Pública.
Feltran, Gabriel. 2016. “Governo que produz crime, crime que produz governo: o dispositivo de gestão do homicídio em São Paulo (1992-2011)”. Revista Brasileira 6 (2): 232-255. de Segurança Pública.
Misse, Michel, Carolina Grillo, César Teixeira e Natasha Neri. 2013. Quando a polícia mata: homicídios -2011). por “autos de resistência” no Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de Janeiro: NECVU/Booklink.
- ↑ GODOI, R. ; GRILLO, C. C. ; TONCHE, J. ; MALLART, F. ; RAMACHIOTTI, B. ; BRAUD, P. P. . Letalidade policial e respaldo institucional: perfil e processamento dos casos de resistência seguida de morte na cidade de São Paulo. Revista de Estudios Sociales, p. 58-72, 2020.