Lu Petersen

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 02h14min de 9 de julho de 2020 por Caiqueazael (discussão | contribs)

Conteúdo retirado do livro Lu Petersen: militância, favela e urbanismo, publicado em 2009 pela Editora FGV.

Uma ideia fixa: favela

“Uma loira que fala a linguagem da favela”. É assim que Nilza Rosa dos Santos, liderança comunitária do morro da Formiga, a descreve. Para o jornalista Xico Vargas, ela é uma das poucas pessoas da administração pública realmente capacitada a falar de favela. Já o prefeito Cesar Maia diz que não há “ninguém melhor do que ela” para contar a história das intervenções urbanísticas em áreas de pobreza. Nos últimos anos, em nossas pesquisas, cansamos de ouvir frases como essas. Seja no trabalho de campo junto a lideranças comunitárias, seja em entrevistas em gabinetes públicos, ou em conversas com agentes privados, o refrão se repetia: “Vai lá, trata de ouvir a Lu”.

Aceita a recomendação geral, demos início, em fins de 2006, a uma série de entrevistas com Lu Pertersen que agora disponibilizamos em livro. Carioca, criada no clima de Ipanema das décadas de 1950 e 1960, quando conheceu e conviveu com alguns dos mentores da bossa nova e da Banda de Ipanema, Lu mergulhou fundo na luta contra o regime militar brasileiro, como muitos de sua geração. Depois de presa durante o célebre Congresso da UNE em Ibiúna, prisão essa que lhe valeu um processo, Lu, já com um diploma de arquitetura na mão, seguiu o caminho do exílio, deslocando-se, em um primeiro momento, para o Chile socialista de Salvador Allende. Em 1973, em meio à diáspora que se seguiu ao golpe militar de Augusto Pinochet, tomou o rumo da Europa, fixando-se na Suíça até o seu retorno ao Brasil, em 1979, quando da aprovação da Lei da Anistia.

No começo dos anos 1980, Lu passou a integrar o corpo técnico da prefeitura do Rio de Janeiro, colocando-se na linha de frente de importantes projetos que estabeleceram as bases para uma nova política governamental voltada para as favelas cariocas, bastando-se citar, entre outros o projeto Mutirão e o Favela-Bairro. Mais recentemente, tem desenvolvido esforços no sentido de consolidar o Museu a Céu Abertodo morro da Providência, além de coordenar a implantação do projeto Célula Urbana, cujo objetivo consiste em estimular e multiplicar iniciativas autossustentáveis nas favelas cariocas.

O depoimento de Lu Petersen abre a coleção Protagonistas Urbanos, cujo objetivo é o de divulgar entrevistas com figuras-chave nos debates e no desenvolvimento de ações e políticas em torno da cidade contemporânea. Este volume é fruto do trabalho de pesquisadores vinculados ao Laboratório de Estudos Urbanos (LEU) do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea (Cpdoc) da Fundação Getulio Vargas (FGV) e dá continuidade à linha de publicações levadas a efeito pelo projeto Memórias do Urbanismo Carioca, coordenado no Cpdoc/ FGV pelos pesquisadores Américo Freire e Lúcia Lippi Oliveira.

Uma garota de Ipanema

“Apesar da aparência de gringa, eu sou uma mistura tipicamente brasileira”

Vamos começar com a sua formação. Você nasceu no Rio de Janeiro?

Meu pai Silas de Cerqueira Leite era comandante da base aérea e responsável pelo Correio Aéreo Nacional (CAN), e eu nasci em Campo Grande, Mato Grosso do Sul; mas, em 40 dias, viemos para cá. Ele veio pilotando o avião da Força Aérea Brasileira que nos trouxe ao Rio. Com um ano e pouquinho, depois que meu pai morreu, fui morar no Leblon. Na rua Cupertino Durão, que era uma das saídas da favela da praia do Pinto. E as mulheres, predominantemente negras, trabalhavam nas casas de famílias do bairro. Eram lavadeiras, babás, empregadas domésticas. O Leblon se caracterizava por muitos terrenos baldios, casas e uns poucos prédios baixos. Eu morava numa casa perto da praia. E nós gostávamos muito de subir o morro Dois Irmãos.

Você e seus irmãos?

Eu tenho uma irmã que se chama Anna Maria Wendel. Nós duas subíamos junto com a nossa turminha. Nessa época já existia o embrião da favela do Vidigal, com casebres de madeira, onde todos eram negros. Não existia o bairro ali no morro. Então, é aí que começa uma convivência muito de perto com essa história de favela. E posteriormente com os efeitos das remoções, quando a praia do Pinto é removida, lá pelos anos 60, aquelas lavadeiras começaram a ter problemas sérios para pagar a condução para o Leblon, trazer o pacote de roupa... E vinha tudo amassado. Então começou a volta de famílias, da Cidade de Deus e de outras áreas periféricas, para morar no Pavão e Cantagalo principalmente.

Você transitava pela praia do Pinto?

Quem controlava a praia do Pinto? Como eu disse, eu entrava na favela com minha irmã e uma amiga, e nunca houve qualquer problema. Ninguém controlava, mas era a área principal de repressão da delegacia de polícia. Ladrão roubava pela terceira vez, o delegado acabava com a raça do ladrão. O interessante é que existia a guarda conhecida como “Cosme e Damião”, que além de apoiar a classe média, cuidava das pessoas da favela e levava para o hospital Miguel Couto. Eles viviam a nossa realidade e a da favela. Do Leme ao Leblon, se desenvolveram alguns aspectos culturais, de uma classe média diferente dos moradores da Tijuca, por exemplo. Quem morava na praia era considerado muito liberal. Moças sérias não moravam em Copacabana [risos]. Estou falando dos anos 40. Era uma vida mais livre e mais esportiva. As praias eram espaços de lazer e esporte, de jogar vôlei, de pegar onda, de peteca e futebol de areia. Quando chovia, a turminha ia para a minha casa. Tinha arrasta-pé — toda sexta e sábado —, pipoca e suco de fruta em pó. O pessoal da favela só ia à praia a partir das quatro da tarde. E eles se enrolavam na areia, ficavam iguais a peixe antes de fritar, porque achavam que a areia protegia do sol. Então tinha aquele monte de negros... A carapinha cheia de areia... Eu chamo de negro sem preconceito, não chamo de preto. É claro que existia também uma divisão espontânea de horários, os adultos saíam depois de meio-dia, o que não valia para nós, crianças e jovens. Ou seja, existiam preconceitos na encolha sim.

Em que escola você estudou?

Estudei no Ginásio Mello e Souza de Ipanema, feminino, na praça General Osório. Uma escola laica, apesar da diretora linha dura. Eram judeus, filhos de pais separados, de intelectuais simpatizantes ou militantes de esquerda. Minha irmã e eu não éramos batizadas, não tínhamos formação religiosa alguma.

Fale-nos um pouco sobre as sua origens familiares.

A minha mãe, Ingeborg Wendel, tinha uma origem interessante. O pai era dinamarquês, que veio morar no Brasil em 1889. Tinha sete filhos com uma dinamarquesa que veio com ele. Ficou viúvo, conheceu a minha avó e tiveram uma filha e três filhos. A minha avó era filha de uma índia mestiça do Paraná que tinha olhos verdes, filha de um imigrante italiano. O meio-irmão da minha bisavó era índio puro. Ela foi sequestrada por um bandoleiro do Paraná e conseguiu fugir e voltar lá para a cidade, grávida de oito meses da minha avó. A minha avó foi criada por um pastor protestante alemão. E depois ela virou presbiteriana.

A minha mãe nasceu em São Paulo e depois foi morar em Santos. Era bem morena, de cabelo liso e com traços europeus. Bonita. Era obrigada a ir à igreja nos fins de semana e cantava no coral. Quando chegou aos 15 anos, ela perguntou para o pastor sobre a existência de Deus, e ele respondeu com uma repreensão. Dali em diante, a religião passou a ser questionada e criou um grande problema com a mãe dela.

O meu avô Guilherme Wendel era diácono da igreja para agradar a “indiazona”, que era meio linha dura... Porque no fundo, no fundo... ele era ateu [risos]. Era um cientista, engenheiro, e astrônomo nas horas vagas; materialista que tinha estudado na Politécnica de Munique. No Brasil, ele passava meses no meio do mato com uma equipe. Entre muitos trabalhos pioneiros de engenharia, fez o levantamento topográfico, que viabilizou a estrada de ferro Noroeste.

E a família paterna?

A minha avó paterna Isolina era mulata aça e o avô era pastor, neto de portugueses, mas acho que a origem era “cristão novo” porque lia em hebraico. Meu pai era louro também, de olhos azuis. Do que eu sei, não era nenhum fanático pela religião e dançava samba muito bem. A família era também presbiteriana, mas a minha mãe contava que havia divergências de correntes na mesma Igreja e entre as duas famílias. A mãe dela não gostou muito daquele casamento. Apesar da aparência de gringa eu sou uma mistura tipicamente brasileira.

Você terminou o ensino médio no Mello e Souza?

Eu fiz primário e ginásio. Depois fui fazer o curso técnico de estatística, que equivalia ao ensino médio, na Faculdade de Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística. Excelentes professores de física, de química, de português, de matemática e estatística. Mas quando percebi que o curso superior era de matemática pura desisti de vez.

Você foi uma criança inquieta?

Até que não... Eu era uma criança tímida, chorona e muito mimada. A minha irmã foi convidada pelo Fluminense Futebol Clube para jogar vôlei. Eu, com 12 anos, fui convidada para fui nadar lá porque o colégio havia participado dos Jogos Colegiais e foi quando ganhei a minha primeira medalha. Era meio complicado porque a gente tinha que atravessar a rua Farani a pé e voltar de noite... Era um clube muito elitista. Então a minha irmã — que tinha uma cabeça bem diferente do pessoal da idade dela; ela lia Monteiro Lobato, Bertrand Russel... — resolveu ir para o Botafogo de Futebol e Regatas. E lá fui eu atrás. Daí acabou a piscina do clube, eu parei durante uns três anos. Joguei vôlei um tempo, mas não deu certo. Eu era lenta por causa da musculatura de natação que não é compatível com esportes em terra. Estou contando isso porque é um dos fatores importantes para a militância na esquerda. Disputar campeonatos e competir já foi, naquela época, um início de superação da timidez e da insegurança. No esporte individual é com você mesmo... Não dá para dividir responsabilidades.

Qual era a posição política do seu pai?

Ele manteve ligações com o brigadeiro Eduardo Gomes? Eduardo Gomes era uma liderança forte na Aeronáutica e meu pai era um “afilhado” dele, embora tivesse uma prática de caráter humanitário e progressista. O CAN foi tão pioneiro como o projeto Rondon porque saía aí pelos confins do país levando remédios, cartas, alimentos etc. Piloto da FAB era tudo meio doido... Os aviões superprecários... Aqueles jovens morriam como moscas. Eu não posso falar porque eu estou falando mal do velho [risos]. Na realidade estou repetindo comentários da minha mãe. Quando ele morreu, a minha mãe resolveu se afastar das duas famílias. Ela trabalhava fora quando solteira. Era secretária, taquígrafa e datilógrafa bilíngue e conseguiu emprego na Panair do Brasil, uma empresa estatal de aviação.

E a sua mãe se casou novamente?

Não. Mas também nunca foi uma viúva triste... Era uma viúva alegre [risos]. Ela votava na União Democrática Nacional, a UDN, que naquela época era oposição de direita à ditadura de Getúlio Vargas e sofria perseguição também, como o próprio Partido Comunista. Meu pai, provavelmente, teria integrado o movimento golpista de Jacareacanga. Ele ia querer que a gente casasse muito cedo, meninas casadoiras enfim, donas de casa.

Então, sua mãe era uma mulher muito moderna para a época. Vocês tiveram uma criação bastante liberal.

Minha mãe era assim... Linha dura com relação a estudos, ética, virgindade... E por outro lado era pra frente, muito viva, liberal em relação à vida saudável e praia. Ela era das poucas mães que liberavam a casa: podia jogar pingue-pongue em dia de chuva, na mesa de sucupira, e era a maneira que tinha de nos manter sob controle porque ela trabalhava o dia inteiro. Ela deixava quase tudo, desde que estivesse em casa... Arrasta-pé era todo fim de semana, inclusive, mais raramente, nas casas de outras meninas, ao som das orquestras do Glenn Miller, Artie Shaw, Tommy Dorsey, e muito samba também.

Então, não era assim repressiva, mas ela tinha lá seus instrumentos sutis. Ela era uma figura engraçada... Um dia, começou a campanha do Fiúza no Leblon, que era o candidato do Partido Comunista à presidência da República. A turma da praia do Pinto tocava um samba em frente de casa e dizia que “quando o Fiúza for eleito, a primeira casa que nós vamos entrar é na casa da madame aí... a viúva”. Eu me lembro até hoje, meu Deus do céu, ela foi lá para fora, deu uns tiros para o alto, sumiu todo mundo; virou a viúva louca, nunca mais entrou ladrão, nunca mais ninguém se meteu a besta... “Nego” passava longe da casa da viúva [risos].

E os outros membros da família?

Tinha três irmãos diretos dela. O caçula, Lourenço, morava conosco. O Olivério e o Job vinham nos fins de semana e feriados, porque eram da Aeronáutica. Eles também morreram muito jovens. Ela era a bugrinha querida do meu avô, muito influenciada por ele. Então, é bem atípica a história. Éramos muito amigas da Suzana de Morais, filha do Vinicius e da Tati, uma intelectual simpatizante do Partido Comunista, que tinha por amigos a fina flor da intelectualidade, que frequentava a casa dela. O Rubem Braga, Fernando Sabino, essa turma toda. Vinícius era ex-diplomata afastado do Itamaraty por suas posições de esquerda. Um dia, a Tati chamou para um passeio num Cadillac rabo de peixe, conversível e amarelo do Antonio Maria. E subimos a estrada das Canoas. Estava um dia magnífico, o sol, de tarde. E na volta, ele disse: 

“Tati, eu fiz uma nova música”. E começou a cantarolar: “Vento do mar no meu rosto e o sol a queimar...” A depois famosa Valsa de uma cidade. Eu me achando o máximo, no meio de intelectuais; combinava com aquele carrão, combinava com o Rio. A minha aproximação com a esquerda e com o mundo da música começou nessa época. Depois veio a convivência com o pessoal de Ipanema e de Copacabana.

Era o pessoal da bossa nova?

O contato com a futura bossa nova começou no Leblon ainda, mas são dois momentos que se consolidam também no conhecimento de jazz. Eu era muito amiga de colégio da Nara Leão. Conheci o Roberto Menescal, que tocava com um conjunto no Clube Leblon, em 56. Logo depois mudamos para a Urca, para a avenida Portugal, em frente à praia, um apartamento térreo, como se fosse uma casa. Ali foi um dos locais em que, historicamente, a bossa nova começou. Acabei conhecendo o Carlinhos Lyra, o Oscar Castro Neves e o Mário Castro Neves, o Chico Fim de Noite Feitosa, Ronaldo Bôscoli e outros. Muitas músicas foram feitas lá. Ouvíamos a Julie London, com a guitarra do Barney (Kessell), Gerry Mulligan, o Jazz West Coast. A turma tocava MPB também, Dick Farney, Lucio Alves, Johnny Alf. Um belo dia o Menescal me falou: “Ô Lu, eu vou levar um baiano aí, que é sensacional”. Eu falei: “Legal, traz”. Era o João Gilberto. Então, eu sou testemunha viva da situação. O mentor e grande iniciador da bossa nova é o João Gilberto. Inteiramente neurótico e enjoado [risos]. Com aquele ouvido absoluto, não é? Bastava o Edinho, do Trio Irakitan, tentar fazer um coro... e lá vinha ele: “Alguém desafinou” [risos]. Essas coisas rolavam até de manhã cedo, porque os meninos não tinham como voltar para casa. Era só música. Mas muito militar morava na Urca, lugar muito isolado e provinciano. Começaram a reclamar, e depois de um ano e meio voltamos para a civilização... Que alegria... Frequentávamos também o Copa Golf, que era um clube entre o Arpoador e Posto Seis, que promovia jam sessions de músicos de jazz brasileiros e estrangeiros aos domingos, e a gente dançava com passos de rock pra valer. Fomos dançar no programa do Carlos Imperial [risos]. Aí, eu tinha um parceiro que me jogava por debaixo da perna, jogava para cima, e eu, com um rabo de cavalo, o rabo de cavalo voava assim... [risos]. Minha irmã conheceu o Robert Celerier, um francês profundo entendedor de Jazz East Coast, e fanático pelo Charlie Parker, que promovia seções de jazz na casa dele. Ela respondeu sobre jazz em 1962 no programa Música para Milhões da TV Rio, e só perdeu na fase final.

Você também tocava?

Não. Bem que a turma brincava que o João Gilberto queria casar comigo e criar uma nova cantora. Que acabou sendo a Astrud Gilberto. Ele levou o Aloísio de Oliveira da gravadora Elenco para me ouvir cantar lá em casa. A minha má vontade era visível. Não tinha nada a ver com a minha cabeça. Eles eram totalmente alienados. Coisas de músicos. Em 1958, fomos morar em Ipanema, na Rainha Elizabeth. Depois que acabou o Copa Golf, apareceu o Little Club que promovia jam sessions nos finais de tarde de domingo e, ao lado, no mesmo Beco das Garrafas teve também o Bottle’s Bar, onde o Johnny Alf cantava e tocava piano. Pouco depois surgiu o samba jazz, um importante desdobramento da bossa nova, liderado por figuras como Johnny Alf, Luiz Carlos Vinhas, Luisinho Eça, Sergio Mendes e outros.

E o esporte?

A partir de uma determinada época, me distanciei da bossa nova e voltei a nadar. O técnico era inteiramente fanático... Não dava sossego. Natação é um esporte muito restritivo, ou você adota uma autodisciplina ferrada ou então você não consegue. Você é capaz de arrebentar com o treinamento forte de um ano inteiro por causa de má alimentação, tomar refrigerante, essas coisas que, hoje, os atletas fazem. E nessa brincadeira, com uma equipe bem pequena do Clube de Regatas Guanabara, ganhamos o campeonato carioca do invencível Fluminense. Fui campeã carioca e brasileira. Em 1961, entrei para a Escola de Educação Física da Universidade do Brasil, porque ia ter um campeonato mundial universitário, o que me abria possibilidades de viajar para a Europa. E eu fui a única mulher da delegação brasileira a participar da “Universíade”, na Bulgária.

E como foi essa história?

Eu tinha uma encrenca, porque achava que tinha ombro largo, que eu era muito forte e era mais alta do que a média das mulheres. Participaram do evento atletas dos países comunistas. Aí, quando eu chego na raia, começam a pintar a alemã do Leste, a russa, a polonesa e todas as outras. Eu pensei: “caramba! eu sou a nanica aqui; estou ferrada”. Cada mulher do tamanho de um bonde, e entrei em último lugar na final dos 100 m costas.

Você viajou pela Bulgária?

Ah! E aconteceu um lance engraçado, lá. Nós queríamos ir bordejar um pouco pela Europa quando soubemos da renúncia do presidente Janio Quadros e aquela confusão toda. E daí... nós resolvemos sair de trem para Viena, porque os aviões estavam repletos. Fui também a Dusseldorf, Londres e Paris. Bom, enfim, deu para conhecer um pouco a Europa. A cidade de onde voltaríamos para o Brasil era Genebra, onde ficamos dois dias por problemas com o avião. Eu cheguei em casa e disse assim: “A Suíça é um lugar onde eu não vou morar nunca na minha vida. Aquilo é o fim da picada”. Tempos depois, nunca mais na minha vida disse dessa água não beberei [risos]. Voltei para o Brasil e fui fazer o vestibular para arquitetura em 62.

Mas, enquanto estava fora, continuava a acompanhar o que vinha ocorrendo no Brasil?

Eu não acompanhei. Só tinha notícia de uma revolução no Brasil, que era a resistência do Brizola no Sul. Só fiz uma entrevista na rádio búlgara, e o entrevistador me perguntou por que o presidente tinha saído. Eu falava francês mais ou menos e confundi l’argent, o dinheiro, com la monnaie, a moeda. Eu disse: “Acho que foi por causa de monnaie, à cause de la monnaie”. O cara deu um pigarro, mudou de assunto e logo depois encerrou a entrevista. Eu não entendi nada [risos]. É bem provável que tenha pensado, essa moça vai desandar a falar aqui, na Bulgária, sobre questões da economia brasileira... Mas não era nada disso.

Você disse que tudo isso foi importante para a militância. Por quê?

Essa viagem me abriu os olhos para o comunismo e para a Europa. E então... eu me encantei pelo comunismo na Bulgária. Mas não foi um fato isolado porque, nessa mesma época, minha irmã já estava na faculdade de arquitetura na praia Vermelha e ela se ligou ao Centro Popular de Cultura da UNE. Era uma época de grande efervescência política e cultural. E ela conheceu o Vianninha, Ferreira Gullar, o Armando Costa, e se relacionava, no nível profissional, com arquitetos simpatizantes ou militantes do Partidão. E acabou assumindo a militância na base de arquitetos e engenheiros. Ela era mais velha, tinha uma influência muito grande sobre mim; quem ficava comigo era ela. Eu desenhava muito bem e era excelente aluna de descritiva sem estudar nada; era um dom natural. E lá fui eu para a faculdade de arquitetura no Fundão em 63. Eu tinha tudo para ser de esquerda.

Era uma época quente...

Éramos um grupo grande, de amigos todos de esquerda, que estávamos em Paraty na Semana Santa, às vésperas do golpe militar. E aí nós voltamos para o Rio a tempo de ver o capitão Montanha tomar o quartel do Posto Seis a tapa. Foi tudo televisionado porque a TV Rio era em frente. Era o antigo Cassino Atlântico, dos bailes de Carnaval, (o baile infantil era uma maravilha). E eu pensava: “Que nada, a gente derruba esses militares em dois segundos”. Tinha velas acesas nas janelas por tudo que é lado da rua. A minha mãe começou a chorar. Ela dizia: “Essa ditadura vai durar uns 15 anos”. Foi a única pessoa que me falou isso. Claro que ela sabia das coisas, da ditadura Vargas, da revolução de 30 em São Paulo e, principalmente, pela convivência com o pessoal da base comunista da Panair, que era muito forte. Eles viviam querendo cooptá-la, e ela nunca quis saber de militância. Até por medo, porque tinha duas filhas pequenas.

As lideranças do golpe militar de 1o de abril tinham uma posição ambígua, provavelmente em função das diversas correntes internas. Liderados pela intelectualidade da Escola Superior de Guerra, uns defendiam a implantação de uma ditadura imediata, e outros que era só para botar ordem no país. Era o que contava o pai de um namorado meu.

E como foi aquele ano de 64?

Em dezembro de 64, começaram os bailes de Reveillon que o Albino e o Jaguar promoviam. A grande maioria que ia era da turma de esquerda. Então, o mesmo pessoal que frequentava o bar Jangadeiros há muitos anos resolveu fazer a Banda de Ipanema. Acho que vale aqui contar o início da banda porque foi um marco importante na história do Rio de Janeiro, que mostra o perfil do carioca de combater situações adversas com bom humor. É uma tônica, que eu não sei se tem algum repeteco no mundo, mas o carioca é bem assim. A banda sai pela primeira vez no Carnaval de 65. Então foi combinado que os próprios participantes tocariam o que bem entendessem, e teria uma base de fundo, de uma bateria mínima. A ideia era fazer Carnaval na rua. Não tinha uma perspectiva imediata de denunciar ditadura. E combinou-se que todo mundo iria de tamanco.

Por algum motivo?

Para fazer barulho no chão: tlec-tlec-tlec. Bom. O que é que aconteceu? Cada um se vestiu lá da sua maneira, como bem entendia e tal... Era uma música dodecafônica muito louca, porque um gritava daqui, o pistão gritava de lá e... era uma loucura. A gente ia cantando. Daí, em 1966 o Hugo Bidê resolveu se vestir de marechal, e apareceu com um cavalo em frente ao bar Jangadeiros, e com uma espada; e ele levantava a espada assim... E saiu ele na banda. A banda foi um sucesso. Eu dava uma parada ali no Bip-Bip, tomava uma caipirinha muito boa. No ano seguinte, a polícia exigiu que a banda assinasse um documento com uma série de compromissos e, entre eles, não poderia ter meninas de biquíni... A gente não ia de biquíni, porque não andávamos de biquíni no meio da rua. E não se poderia fazer nenhuma alusão às Forças Armadas, em hipótese alguma. Esse documento foi entregue para a minha mãe, que também saía na banda, porque ela já era uma senhora e ficava lúcida [risos]. Ela guardou esse documento. O documento é um primor de coisas da ditadura; realmente, é incrível.

Eu lembro que a banda tinha um lema engraçado...

O lema é, ainda hoje, “Yolhesman Crisbelis”. E o Albino por sua vez, sempre arranjava uma esticada, depois da banda, e fazia um baile de Carnaval. Ou era na gafieira Elite, ou era em outro lugar... Um belo dia ele virou assessor do Ricardo Cravo Albin, que era o secretário de Turismo, e tinha colocado um navio ali no Aterro, que ainda estava todo de terra. Como não apareceram pessoas, nós fomos para lá. A entrada era gratuita, só pagamos o consumo... Uma maravilha, a gente fez a maior farra. Até que uma vez resolveram que todo mundo se vestiria de tropicália, já saudando mais a história do Gil e do Caetano. Acredito que tenha sido 67. E sai todo mundo de tropicália, os homens saíam de um laço colorido e a gente de pareô (a canga de hoje), supertropicália. Eram pessoas que não pensavam igual, mas que aderiam a essa forma sutil de protesto contra a ditadura através de uma irreverência carnavalesca. Se não me engano essa foi a primeira vez em que apareceu a Leila Diniz. Depois de 69 eu não fui mais à banda porque não tinha condições. Aí já é a militância, é uma outra história.

Mas a banda continuou?

Continuou. Daí, quando a mamãe morreu, a minha irmã descobriu esse primeiro alvará da banda. Até hoje é obrigatório o alvará para qualquer evento de rua. E nós entregamos para o Albino Pinheiro, que na época já estava bem doente, e ele disse que entregaria ao Museu da Imagem e do Som. Faz uns 10 anos. Não sei se o Cláudio Pinheiro entregou. Mas é um poderoso documento que mostra o besteirol que era a ditadura, aquelas bobagens que, do ponto de vista histórico, para historiógrafos, é interessante

Você acompanhou também a criação d’O Pasquim?

Eu só acompanhei. Porque era o Jaguar, era o Ziraldo, era tudo da mesma turma. O Jaguar era muito amigo nosso; a Olga Savari, que era a mulher dele, poetisa, era muito amiga da minha mãe. E O Pasquim também é um marco importante do jornalismo.

Então, você pode colocar no currículo: “fundadora da Banda de Ipanema”...

Há a lista com os nomes dos 28 fundadores da banda feita pelo Jaguar, que não faz e nunca fez até hoje jus às mulheres fundadoras. Eu não fui exatamente uma fundadora, eu fui no embalo. Mas a Olga Savari, Denyr Campos, minha irmã e uma série de outras mulheres deveriam ser consideradas como tal.

Hoje em dia, quem está na linha de frente?

Quem, realmente, pegou agora a banda nas mãos, há um tempo já, foi o Cláudio Pinheiro. E ela está incrementando de novo. Porque teve uma época que era predominantemente de travestis.— o que acho interessante também, porque provavelmente, fora os desfiles e prêmios de fantasia, o gay também não tinha muito espaço; e o Albino abriu esse espaço, que eu acho que era importante para a turma. Agora... acho fantástica a duração da banda.

E a militância política pós-64?

Desde fins da década de 1950 minha mãe era secretária do deputado Mário Tamborindeguy, do Partido Social Democrático, ligado ao Juscelino e ao Amaral Peixoto. Ela era uma secretária muito especial, porque redigia os discursos dele junto com o Olimpio Guilherme, dublê de diplomata e escritor, que havia servido no Vietnã quando era colônia francesa. Enfim, era assessora, consultora política, ou seja, jogava nas 11. E ele dizia que ela era comunista e aquelas coisas; mas tinha uma confiança total nela. Então terminou por acompanhar muito de perto a política do país desde os tempos de JK e mesmo durante uma parte da ditadura. Política pra valer... Cada história do arco da velha. E o deputado era um chefe complicado. Só ela é que aturava aquele homem [risos]. Então toda aquela encrenca com ditaduras foi-se transformando em aproximação com a esquerda. Mas vejam que situação esdrúxula: a pensão do meu pai não dava nem para o aluguel... E ela acabou se aposentando com uma bela pensão durante o regime militar.

Nesse período, você continuava na faculdade de arquitetura?

Eu estava no segundo ano em 64. E aí entrei para o diretório acadêmico e para a base estudantil do Partido Comunista Brasileiro. Era a época em que a formação teórica era feita em grupos de estudos com base na Academia Soviética, coordenados pelo assistente do partido. Era interessante porque tinha uma cartilha de princípios de comportamento ético fora e dentro da cadeia. Em uma ditadura, você, para ser liderança de alguma coisa, tem que mostrar o exemplo, ser bom aluno e tem que estudar. Foi quando comecei a entender algo sobre Marx, Lenin e Engels. O meu rompimento com o PCB se deu muito mais por causa da truculência da luta interna e, principalmente, pela linha do comportamento do jornal A Voz Operária, que citava nominalmente as lideranças dissidentes. Nessa época tive acesso às teses de Mao Tsé-tung e Ho Chi Minh. A partir da revolução cubana, começaram a aparecer teses de foco guerrilheiro no campo de Fidel Castro e Che Guevara. Pedi desligamento do PCB e fui para Corrente Revolucionária, de onde surgiu o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR).

E como andava o clima na faculdade?

Durante os quatro anos de faculdade, fui representante de turma; eu era boa aluna, tanto que passei por média do segundo ano em diante. Passado o golpe militar, a primeira greve que teve no Rio de Janeiro foi puxada pelo nosso diretório acadêmico, em 1966. As reivindicações eram tipicamente estudantis. A greve durou 45 dias. A estudantada mobilizada. Antes disso, o Castello Branco foi lá na faculdade, inaugurar uma biblioteca que fica no anexo, no Fundão. E nós ficamos esperando... “O que é que a gente faz na presença do presidente, vamos aprontar uma, vamos não sei o quê.” Resolveram pegar um macaco.

Um macaco de verdade?

Para soltar o macaco quando ele saísse. De verdade [risos]. Coisas de jovens. Para muitos de nós, a ditadura não era séria. Então, o que é que aconteceu? O pessoal da medicina conseguiu o macaco em um laboratório e o botou na mala do carro... O garoto da medicina dá uma injeção para sossegar o macaco, para não ficar pulando dentro da mala do carro, mas caprichou na dose, o macaco apagou. O macaco... [imita ronco] dormia a sono solto [risos]. A inauguração rolando solta. O Castello descendo as escadas. Estava para ir embora e ninguém sabia o que fazer. De repente, um rapaz começou: “Uuuu...” [vaia]. Aí começou assim, todo mundo: “U... [timidamente]. uuuuu...” A vaia! Aquele negócio teve uma repercussão violentíssima na imprensa. E foi um auê. Voltando ao que eu estava falando, a Faculdade Nacional de Filosofia, então, entrou em greve também. Tem um episódio durante a greve que vale contar. Uns colegas da minha turma resolveram dar de espiões e gravar uma reunião do diretor com os professores. Daí subiram e ficaram no espaço entre a laje de dois pisos. A gravação estava muito ruim, mas eles nos passaram o que havia sido falado. Fizemos uma assembleia de denúncia e paramos a nossa greve. Conseguimos ganhar um inquérito interno e o início de um dossiê, que não deu em nada.

E a repressão também...

Um dia ocupamos a faculdade de medicina e a ideia era resistir ao frio e à fome. E, realmente, foi violento aquele negócio que aconteceu de madrugada. Eu não apanhei porque dei muita sorte... Ou presença de espírito... sei lá... Em vez de ir lá para cima, fiquei debaixo de uma escada, com dois rapazes; um era irmão de uma amiga minha. E eles subiram, bateram em todo mundo; foi um massacre, um negócio brabo. A minha mãe tinha ido junto com a minha irmã, me entregar um agasalho. E acabaram ficando lá fora. Se não fosse ela, que escreveu uma carta aos principais jornalistas que só foi publicada pelo Stanislaw Ponte Preta e pelo Paulo Francis, ninguém saberia o que aconteceu. É o único depoimento existente daquele vandalismo militar. Inquéritos na filô, inquérito na arquitetura, direito (Caco). Uma coisa complicada. A opção era ir para a rua. E assim começaram as passeatas. Passeata tinha lá seu lado divertido. Era um programa provocar a PM. Palavrão a gente não dizia, não podia. Hoje, eu digo à beça, mas não podia. E saíamos correndo, não é, e tal, até que pegavam um de jeito, eles sentavam o cacete. Podem desenvolver a teoria que quiserem; na prática, muitos concluíram que ficar dentro pegava inquérito, a polícia prendia; vamos para a rua. Eu fui para a rua por causa disso... Mas o PCB era sistematicamente contra as passeatas.

O PCB não queria muita agitação, movimento de rua?

Eles tentavam segurar as manifestações, mas a indignação era mais forte. A polícia começou a usar armas, pela primeira vez, em uma manifestação no Centro em 68. Naquela noite, duas pessoas morreram. O episódio do estudante Edson Luiz morto no Calabouço. Tudo indicava para um endurecimento que vai dar origem à passeata da missa do rapaz e à passeata dos Cem Mil... E então eu fui fazer pós-graduação por motivos profissionais e de militância.

Em termos profissionais, o que fazia a cabeça de vocês naqueles anos? A arquitetura modernista?

A escola modernista era predominante, mas a minha ideia fixa era a favela. De uma maneira geral, à exceção de projetos no governo de Carlos Lacerda em torno da urbanização da favela que não deram maiores resultados, a linha predominante nos órgãos públicos era a de promover uma política de remoção de favelas, política essa que era combatida por caras sérios do IAB como Alfredo Brito e outros, ou seja, por gente de esquerda. Nesse contexto, fui atuar na favela como arquiteta e quadro estudantil do PCBR junto ao projeto de urbanização da favela de Brás de Pina,1 que era muito interessante. A proposta era a de construir a infraestrutura urbana e promover a distribuição de material de construção, com apoio técnico, para transformar os barracos de madeira em alvenaria. Mas então, a base política do partido na favela começou a reclamar porque eu chamava a atenção, porque era muito lourinha, e de minissaia... Não estava dando, eu não podia ficar. Então eu digo: “Nesse caso também saio do trabalho, porque não tem sentido ficar ralando aqui”. Era difícil ir até Brás de Pina, longe pra caramba, um calor de rachar. Saí.

Como é que você estabeleceu contatos com um dos mentores do projeto, o arquiteto Carlos Nelson Ferreira dos Santos?

O Carlos Nelson era recém-formado, ligado à Juventude Universitária Católica da Igreja. Então, muitas pessoas do diretório da faculdade, com passagem pela esquerda estudantil, foram fazer o estágio com ele. Ele era uma figura, porque conseguia, desde muito antigamente, falar da questão com naturalidade. Ele era um show à parte. Tinha aquela capacidade de encarar a favela com tranquilidade, e não medo ou preconceito, ou isso ou aquilo. Ele já entendia que a favela é parte do desenvolvimento urbano da cidade.

Lá no Leblon, quando teve o boom imobiliário nos anos 50, as construtoras só contratavam trabalhadores nordestinos, que iam morar na Rocinha. O noivo da nossa empregada, que era o capataz da obra, morava no barracão de obras e virou porteiro do edifício depois que ficou pronto. E depois veio o resto da família, que não cabia na casa dele. Isso era muito comum ali. E dali surge a ocupação da encosta da Rocinha. Mas não tem origem negra. A Rocinha e a Maré são representativas de uma mudança grande dentro das favelas, que passam a ter predominância essencialmente nordestina. A praia do Pinto tinha, sim [origem negra]. E era originária, diz-se, de um quilombo que tinha na Gávea, lá por aquela área.

E depois do projeto? O que você foi fazer?

Comecei a trabalhar em escritórios de arquitetura na feitura do Plano Diretor de Duque de Caxias e de Betim. Eu já não frequentava as reuniões do Diretório Central de Estudantes, mas recebia informações nas reuniões, porque fazia parte da célula da juventude do PCBR e fazia pós-graduação na faculdade. E então... começaram as discussões sobre o congresso da UNE, já ilegal, e a direção estudantil do Rio disse que não tinha condições de realizar. Nesse meio-tempo, o movimento de São Paulo se responsabilizou pela montagem do congresso em Ibiúna. Ninguém do diretório da arquitetura estava querendo ir. A direção estudantil do partido me deu um “dá ou desce”, disse: “É uma tarefa, você vai”. Lembro que o meu assistente era o René, filho do Apolônio de Carvalho. Ele é uma graça. A gente o chamava de Alain Delon. É bonito, moreno de olhos azuis. Um rapaz de esquerda bonito. Era... uma raridade [risos]. Naquela época, não sei se vocês sabem, a militância feminina não usava calça comprida.

Era um código?

Porque calça comprida era porrada da polícia na certa. Então a gente andava de saia. Eu tinha uma saia especial para correr. Usava tênis e saia. É engraçado porque tinha todo um conjunto de códigos... Como tem os códigos, hoje... E a esquerda estudantil era assim. Então, voltando ao assunto, eu acabei indo para Ibiúna. Só que eu tinha ficado muito doente. Eu tinha tido um problema sério, pulmonar, e quase morri. E eu não podia ir, de jeito nenhum. Meu vizinho era o ator Carlos Eduardo Dollabela, que era próximo à esquerda de teatro. Eu falei: “Dolla, faz o seguinte. Se esse congresso cair, você avisa para minha mãe”. E ele: “Tudo bem”. Lá vou eu para o congresso. Uma zona, o congresso; longe pra caramba, eram quilômetros depois de Ibiúna. Pernoitamos numa casa no campo. Tinha que dormir sentado porque não tinha espaço para deitar. Lá, eu conheci os gaúchos da dissidência gaúcha e me encantei com um deles, o João Antônio Heredia. Depois, acabei por viver com ele e fomos juntos para o exílio na Suíça. Bom, quando cheguei finalmente em Ibiúna, vi que não havia a menor estrutura: o anfiteatro era uma barraca e desandou a chover. E chovia, chovia a cântaros e fazia frio e eu preocupada com o meu estado de saúde. Eu tinha que dormir num lugar fechado e não tinha mais como entrar no barracão, e mais uma vez estava todo mundo dormindo sentado porque não tinha espaço para deitar. Tive uma breve encrenca com o José Dirceu, porque ele estava guardando a porta e não queria deixar ninguém entrar. E me disse: “Você não vai entrar”. Eu digo: “Vou entrar”. E entrei na marra. E a Jussara Ribeiro de Oliveira, a baixinha, que estava comigo, entrou. O gaúcho veio na rebarba e dormimos lá, sentados. No dia seguinte, de manhã cedo, eu estou escovando os dentes, vejo aquela tropa descendo, armada... Eu lembrei do Encouraçado Potemkin. 3 E os caras descendo... Eu digo: “Caramba!” Cavalos, tinha de tudo. Pegaram todo mundo. Saímos dali, botaram a gente para andar naquele lamaçal até a cidade de Ibiúna, atolando na lama, aquele negócio. Um desespero. Paramos num posto. Eu peguei uma caneca, estou lá bebendo água, não prestei atenção; um repórter d’O Estado de S. Paulo, do Estadão, me fotografou. Sai a fotografia do jornal, deste tamanho. O meu cunhado Peter Sievers, que morava com a minha irmã em São Paulo, viu o jornal e disse assim para ela: “Olha onde é que está a f da p da sua irmã, aqui na primeira página do jornal”. Minha irmã contou para minha mãe que queria ir para São Paulo. Enfim, foi aquela confusão.

Vocês ficaram presos em São Paulo?

Ficamos presos no Tiradentes, em São Paulo, entre os dias 12 e 20 de outubro. Juntaram as mães lá e elas começaram um movimento, aquelas coisas. Muitos fizeram depoimento lá. Eu também tive que ir depor, porque o delgado Vilarinho e seu assistente Mario Prata me reconheceram de agito de rua. E aí botaram a gente num camburão e levaram para a base aérea de Cumbica, onde pegamos um avião da FAB. Só o pessoal do Rio. Todo mundo algemado nos bancos. Aquela maluquice. Fomos sequestrados de São Paulo, porque ninguém avisou nada, ninguém soube... Quer dizer, a minha irmã sabia. Ela ficava grudada lá, na porta da cadeia. Ela viu o camburão sair. E começou a entrar em pânico com essa história e avisou para minha mãe. Abriram lá... E aí nós começamos a gritar. Preâmbulos de endurecimento da ditadura mesmo.

Abriram a porta do avião?

É. Porque era avião de hélice e não tinha problema abrir a porta. Ameaçando jogar lá embaixo, na baía de Guanabara. Havia vazado na mídia uma história do Para-Sar...4 Que os presos políticos iam ser jogados no mar. O escândalo foi tão grande que esse projeto do FAB abortou. Assim mesmo tocaram um terror. Um garoto desmaiou lá. Uma confusão. Quando eu cheguei aqui, eles me pegaram para depoimento de novo e me soltaram logo em seguida.

Onde você ficou presa no Rio?

No presídio feminino São Judas Tadeu. Hoje é o Comando de Operações Especiais da Polícia Civil. Fiquei mais uns cinco dias lá. Fui para casa e continuei. Encontrei a turma, vamos para lá, vamos para cá... Deixa estar que depois, agora recentemente, é que eu fui saber do meu histórico da ditadura.

E o que diz o dossiê?

A história é a seguinte. A Jussara, minha companheira no congresso de Ibiúna, entrou com um pedido na Comissão Especial de Reparação da Secretaria de Justiça do estado e me pediu para ser testemunha dela. Então ela me disse para procurar o meu dossiê e eu falei: “Tá bom, assim eu vou também saber a história”. E realmente, o dossiê é... Kafka. São umas 40 páginas. É brincadeira. Nesse caso, eu estava sendo acusada de ter liderado um assalto à Usina de Furnas, comandando um grupo. Fui reconhecida pela segurança de lá. E não teve nada, porque eu estava em cana; tinha um comprovante que eu estava presa e não podia ser eu de jeito nenhum. Mas a coisa vai mais longe quando eu já estava no Chile. Fui condenada a 12 anos, em 71, pela Justiça Militar, sob a acusação de comandar um grupo que assaltou uma viatura, roubou as armas e amarrou quatro PMs em um poste na praça Avaí, no Cachambi. Eu teria roubado um outro carro e seguido para assaltar a Ligth. O codinome que me deram foi a loura do terror, é mole?

E depois da prisão?

Continuei militando no PCBR, e a coisa foi começando a ficar encrencada nos anos 70. Nesse meio-tempo, o gaúcho me apareceu no Rio, veio estudar e morar aqui. Ele era dissidência do PC gaúcho, que depois virou Partido Operário Comunista (POC). Aí, nós fomos morar juntos. Saí do PCBR em 69 e acabamos ficando na Política Operária (Polop)5 depois do racha no POC, onde peguei uma sólida formação marxista-leninista: lia todos os teóricos. É uma formação bem consistente. Por exemplo: comecei a ter acesso às linhas programáticas da Polop, aos princípios trotskistas, através dele e do Isaac Deutscher: A revolução permanente e a trilogia sobre Trotsky — O profeta armado, O profeta desarmado e O profeta banido —, enfim teorias que me deram o fundamento e a clareza sobre os “rachas” da esquerda brasileira e internacional.

Você estava trabalhando? E a arquitetura?

Eu fiquei semiclandestina; então eu era perita do juiz Martinho Campos. Eu vivia disso. Tive de parar a pós-graduação de urbanismo. O Proença, secretário da faculdade, me disse para sumir. Eu larguei e fui embora. As manifestações de rua já não acontecem, dando lugar às ações armadas, ao endurecimento e às prisões de militantes. E daí, começou a cair. Eu falei: “Está na hora de sair”. E aí nós resolvemos ir para o Chile.

 

O livro ainda tem mais 5 capítulos, onde são apresentados momentos de sua vida e suas ações políticas mais prioritárias em cada momento. Para fins metodológicos, apresentaremos aqui apenas os capítulos "Multirão" e "Favela-Bairro" que tem mais relação direta com o tema de favelas. 

 

Mutirão

Fala um pouco do retorno ao Brasil.

Viemos para o Rio com o meu filho Carlos Eduardo, que tinha um ano e oito meses. Fiquei uns dois meses na casa da minha mãe. Depois fomos para Piratininga, e eu naquela linha suíça: o meio ambiente, aquelas praias maravilhosas da Região Oceânica de Niterói... Era mato e poucos vizinhos. Era uma fase de criança pequena em casa, de fazer novos amigos, muito churrasco na varanda de casa e muita festa.

Você e o seu grupo chegaram a participar da campanha do Brizola?

A minha ideia era ir para o PT de Niterói. Mas eu achei uma coisa muito estudantil, 68 demais... A conjuntura política é fim de ditadura, população eufórica, comício das Diretas Já, eleições diretas para governadores. O Leonel Brizola, tendo perdido a sigla PTB, cria o PDT filiado à Internacional Socialista e é eleito em 82, com uma nítida liderança nas camadas pobres da população. Votei no Brizola como uma alternativa promissora. O programa de governo do Brizola situava como prioridade o reconhecimento das favelas e loteamentos irregulares como parte integrante da cidade. No início de 83 é lançado o primeiro projeto-piloto de Urbanização Integral do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, e o Programa de Favelas da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Proface).8 A superintendente do Proface era a engenheira Maria Carmem Melibeu de Almeida, e a Coordenação de Obras era composta por outros profissionais da Cedae: os engenheiros Carlos Fernandes, Ney Homero, Flávio Moura, o arquiteto Reinaldo Ganimi. A equipe de assistência social de apoio acompanhava as obras e implantava a cobrança de água, sob a batuta da Maria da Penha Franco, de origem da Fundação Leão XIII, peça fundamental na época das remoções do Lacerda. Ela me contou que, quando tiraram a favela do túnel do Pasmado, tocaram fogo nos barracos de madeira e os ratos, sem ter o que comer, inundaram Copacabana [risos]. Eu achava que eu tinha que voltar do exílio e mexer com favela. Aquela coisa tinha ficado na minha cabeça desde a infância e do projeto Carlos Nelson... Em 83 fui falar com o presidente da Feema, o Armando, que participou com a gente no diretório estudantil da arquitetura. Era daquela geração de 1968.

Armando? Lembra o sobrenome?

Ah, isso de sobrenome... Eu aprendi na militância que não se lembra de nome, sobrenome ou endereço, para preservar a segurança de todos. Acabei me lembrando, Armando Mendes. Então fui contratada para participar de uma equipe, com uma técnica da casa e mais três terceirizados, no projeto Eco-Desenvolvimento, que tratava basicamente de meio ambiente e saneamento básico em favelas e loteamentos. O projeto era em um pequeno loteamento com duas ruas que terminavam no rio Pavuna. Era um pessoal bacana. Fizemos várias assembleias e apresentamos um diagnóstico de desocupação e preservação das margens do rio, soluções de infraestrutura urbana e algumas ideias sobre regularização fundiária, porque era uma reivindicação dos moradores. De repente acabaram com a nossa equipe. Não sei se houve continuidade desse projeto depois, mas outros projetos continuaram sendo implantados em algumas favelas pela equipe da Feema. Os prefeitos naquela época eram indicados pelos governadores. O Brizola nomeou o Jamil Haddad, que, por motivos que eu desconheço, foi substituído pelo Marcello Allencar no início de 84. Então, em setembro, eu procurei o Elinor Brito, que era o ex-líder do movimento do Calabouço, companheiro no PCBR e amigão desde o exílio. Ele era assessor especial do prefeito e me disse assim: “Ô Lu, eu posso te conseguir alguma coisa na Secretaria de Municipal de Desenvolvimento Social. Tem um projeto interessante em favelas”. Topei de cara: “Vamos nessa!” A equipe do projeto Mutirão (não remunerado) era formada por cinco arquitetos e engenheiros trabalhando em dupla com cinco assistentes sociais, para executar redes de esgoto e drenagem em mutirões de fins de semana em umas 15 favelas. Fui contratada como arquiteta com outros novos técnicos para reforçar a equipe e ampliar o número de comunidades a serem atendidas. Uma garotada... O engenheiro Cléber Barbirato e eu éramos os mais velhos da equipe. O Mutirão não ia adiante porque poucas favelas se mobilizavam para trabalhar de graça, perdia-se muito material de construção. Também, como convencer as pessoas numa cidade como o Rio de Janeiro, que tem áreas de lazer à disposição, tem praia grátis, não é?

A secretária da SMDS era a assistente social Dilsa Terra. O Eloi Benedutti era chefe de gabinete e coordenador geral do projeto Mutirão. Escolhi três favelas lá, meio brabas. Eles não passavam contato algum. Então entrei na marra. Assumi as obras de esgotos e drenagem que já estavam em andamento nas favelas do Muquiço (em Deodoro) e Parque Unidos (em frente à favela do Acari). No morro da Pedreira (em Anchieta) iniciei também duas escadarias. Escadaria na época era um luxo porque facilitava em muito a descida de doentes, idosos... em macas ou em cadeiras. O projeto tinha um pequeno almoxarifado na Tijuca. Caramba! Era uma guerra, desde as seis da manhã, para conseguir material e transporte, que faltavam sempre. Mulher não tinha prioridade... Tive que botar muita banca!

Em fins de 1984 a SMDS organizou o I Seminário Mutirão-Rio, que virou um grande leilão ao distribuírem diplomas assinados pela secretária, dando direito a 200 m de esgoto para umas 250 comunidades presentes. Cara, um leilão! Nesse encontro foi aprovado o pagamento das equipes de mão de obra, uma reivindicação das comunidades que coincidia com o ponto de vista dos técnicos. Na época do Natal a secretaria resolveu distribuir, entre as lideranças, umas sacolas com um peru e outros produtos. Esse fato deu origem a uma história engraçada que eu não sei se cabe contar aqui.

Conta.

Tinha um montão de gente nos corredores, tinha engenheiro lá com três sacolas: “Tenho três perus para passar o Natal! Aí Lu, vai lá pegar...” Eu digo: “Eu não vou porque isso vai dar um bode!”. Eu vivia articulando com o Cléber, que era brizolista e muito ligado ao deputado Amadeu Rocha, que, por sua vez, tinha se envolvido com a guerrilha de Caparaó. Olha só como é que esse mundo é pequeno. Então, nos entendíamos muito bem e comentávamos: “Dilsa vai cair...” Acredito que esses fatos culminaram com a saída dela em janeiro de 85. E ficou a história do “o peru da secretária” [risos]. Até hoje tem gente de favela que comenta comigo. É o humor típico dos cariocas.

Um fato importante a ser destacado é que os métodos adotados nesse seminário tinham clara conotação clientelista e eleitoreira de estabelecer compromissos irrealizáveis antes de criar as estruturas de gestão e obter recursos compatíveis com a ampliação das comunidades a serem atendidas. O Proface atuava de forma diferente, trabalhando organicamente, em parceria com associação de moradores. No entanto, era considerado, por equívoco de muitas pessoas, promotor de práticas populistas. A meu ver, o Proface realizava um trabalho conjunto necessário, porque o objetivo programático principal era de consolidar a cobrança das contas de água. Isso acontecia em assembleias muito complicadas, sobretudo pela resistência dos moradores em pagar taxas. Buscar inserir diretamente os moradores desde o início do programa foi uma forma inédita e inteligente de mobilização, principalmente porque havia lideranças que ainda tinham certa independência

Tinham, Lu, independência?

Eu digo independência porque eles desconheciam o funcionamento do poder público. A favela, durante a ditadura, era um objeto não identificado; eles só entravam na favela para pegar subversivo ou armas. Isso leva a um nível baixo de politização das favelas, que vai gerar mais tarde uma forte dependência do poder público. Loteamento irregular era diferente. Eles sabiam bem o que queriam e eram mais organizados. Então, o jornalista Pedro Porfírio foi nomeado secretário interino, substituindo a Dilsa. O Cléber foi indicado para superintendente de Desenvolvimento Comunitário do projeto Mutirão Remunerado. Ele me disse assim: “Eu tenho que botar nessa coordenação pessoas que possam ter liderança. Lu, você é porra louca o suficiente. Você topa encarar a Assessoria de Projetos e Estudos Comunitários?” Eu tinha um potencial de liderança na faculdade e tal...

Então eu digo: “Vamos nessa”. Eu achava que era por aí mesmo, entendeu, a festa é comigo mesmo. Era a volta à agitação, à criatividade, a experimentar coisas novas. O Cléber chamou o Teodoro Marconi, para assumir a Assessoria de Ação Comunitária. Começamos rapidamente a reestruturação do projeto. Os técnicos das zonas Sul e Norte continuaram trabalhando por lá. Criamos alguns critérios orgânicos de obras e de articulação com a participação comunitária e de outros órgãos públicos.

E nós mesmos recebíamos o salário como autônomos. Sempre atrasado. Coisa mesmo de doido! Organizávamos as assembleias gerais e eu supervisionava as coordenações de obras e participava das reuniões locais. Então a equipe trabalhava de segunda a segunda. Em muitas favelas, complementávamos com os mutirões de fins de semana, para reduzir os custos de intervenções. Assumi a coordenação do texto de estruturação do Plano de Trabalho 85. A linha básica era aumento de recursos para a contratação de técnicos, totalizando 30, inclusive para atender aos loteamentos irregulares da Zona Oeste, definir o escopo do projeto e construir mecanismos referentes à função social de obras, já que não dispúnhamos de estrutura técnico-administrativa para absorver aquele universo de promessas. Implantamos um controle de obras bem artesanal, em que o acompanhamento era feito em reuniões semanais de toda a equipe. O Cléber perguntava: “Favela tal... quantos metros executados?” Parecia uma escola. Eu tentava dar um conteúdo social naquilo, mas a turma só queria saber de obras. Cabia ao Fundo Rio — Fundo Municipal de Desenvolvimento Social, órgão de captação de recursos e de gestão administrativa e financeira vinculado à SMDS — controlar, aprovar os relatórios e liberar os recursos. Era uma loucura porque faltava dinheiro para pagar a mão de obra. Ou então faltava material ou transporte. Isso tudo foi muito rápido. Mas, por incrível que pareça, apesar das dificuldades, conseguimos algumas melhorias, e a coisa foi avançando! Tanto é que em fins de 85 já estávamos trabalhando com umas 80 comunidades.

Vocês recebiam apoios de outros órgãos públicos?

Tivemos o apoio do secretário de Obras do estado, Luiz Alfredo Salomão, e da Cedae, que ajudava com infraestrutura de transportes, materiais e cooperação técnica. Politicamente isso era possível, mesmo não sendo uma parceria oficial. A autorização para o projeto se resumia a um decreto do Tribunal de Contas do Município, que permitia a isenção de licitações de obras, justificada pela função de desenvolvimento social das intervenções. O Brizola causava assim um furor, porque os reservatórios d’água eram levados de helicóptero para o topo do morro. Economia no transporte de material e redução no custo de mão de obra. Uma visibilidade incrível!

Quando o projeto do Mutirão remunerado passou a ter visibilidade?

Demorou! Adquiriu uma visibilidade relativa a partir de 90. O importante é entender por que o político da bica d’água não conseguia faturar o projeto. O Mutirão, no que se refere à definição de prioridades e execução de obras, ficou relativamente preservado da intervenção política dos secretários.

Mas você tinha clareza, nesse momento, de que havia esse tipo de prática de clientelismo, de cooptação?

Havia práticas de clientelismo na maioria dos órgãos públicos. Na SMDS ainda era discreto. Mas, na outra face da mesma moeda, deve-se levar em conta o aspecto educativo, o aprendizado de encaminhar reivindicações vinculadas ao escopo de projetos por parte das lideranças locais. Vale lembrar que era um processo construtivo em uma conjuntura política muito particular, em que a preocupação maior era recuperar o tempo perdido. Na realidade, as intervenções nas favelas deveriam ter acontecido no início da migração de famílias pobres de outros estados em busca de uma melhor qualidade de vida no Rio. Mas há que se reconhecer que essas iniciativas se transformaram em contribuições efetivas para a redução da pobreza. Abriram espaços para desdobramentos importantíssimos durante essas últimas três décadas. Ou seja, a experiência criou as condições de transformação de um projeto artesanal em um amplo programa de integração urbano-social das favelas: o programa Favela-Bairro. É a liderança indiscutível da cidade do Rio de Janeiro nesse processo, que terminou por contagiar o poder público e a população como um todo. 

Porfírio deu autonomia a vocês?

Deu porque não havia como controlar a execução do projeto, estruturado numa confiança mútua entre as comunidades e técnicos, e a vontade de fazer as coisas corretamente. Por outro lado o Cléber e eu tínhamos a percepção de que uma estrutura de gestão de projeto inteiramente nova estava sendo criada. O Porfírio se centrava mais nas questões de recursos e custeios. Politicamente ele agia através da área social, principalmente as creches. Era o fim da política da bica d’água.

Do chaguismo?

Era uma prática de longa data... Que foi superada a partir do Proface.

E o Proface também tinha esse perfil mais avançado, como o Mutirão?

Era um programa de governo institucionalizado, com o desenvolvimento de projetos e licitação de empreiteiras. Fizeram obras na Baixada Fluminense, em Niterói e em outros municípios. Eles faziam muito sucesso nas favelas. Nós éramos um bando de malucos, entrando em favela e aprendendo a fazer obras com eles, e acertava daqui, a gente reclamava dali, e eles ficavam nos esperando com bolinho, com suco de caju... E aí a gente adquire uma intimidade muito grande com a favela. Fiscalizar e pagar a equipe de mão de obra, entregar o material, fazer tudo ao mesmo tempo... Não há como não conviver com o morador. Então você passa a ser muito respeitado naquele contexto... Era um perfil técnico que não visava faturar nada politicamente.

A equipe ficava em um salão que permitia uma interatividade incrível, inclusive com o resto dos técnicos da secretaria. As soluções eram passadas de boca a boca. Era, na realidade, uma universidade. E, como tal, era um grupo muito alegre e unido. Começaram a organizar as peladas, o que acabou em um time de futebol da SMDS. Festas juninas e de fim de ano eram sagradas. A partir de 89 em diante, as festas de Natal no clube da Cedae, em Itacoatiara, coincidiam com o meu aniversário; então, após o churrasco, sempre tinha uma esticada na minha casa, para tomar o “sopão”, que só acabava nas altas madrugadas.

Por isso você fala em saberes locais?

Isso. É completamente diferente. Eu já andei muito por esse mundo, e acho que não tem precedente histórico. Dá até para entender por que o programa Favela-Bairro deu certo! É uma construção dialética do saber, que vai sendo assimilado através da prática e do conhecimento coletivo, que permite conceituar e teorizar um processo histórico, para voltar posteriormente a uma nova prática, bem mais profissionalizada e sofisticada.

Eram intervenções pontuais?

Eram obras pontuais, mas diversificadas em relação a cada favela.

Autogestão?

Não era autogestão. É como se tivesse um maestro por trás dessa história. Dizer que fui eu é um absurdo. Foi um negócio que se construiu coletivamente, de forma empírica, e que dificilmente vai se replicar na história do Brasil.

E o Marcello apoiava?

Claro. O prefeito tinha alta credibilidade e era muito querido nas favelas. Ele não vinha com o discurso político tradicional. Ele era o prefeito que as pessoas aguardavam e, em alguns lugares, tinha um ou outro morador que dizia: “Olha aqui, tem uma cachacinha que está na minha casa há 30 anos, prova e tal”. Entende? E nós tínhamos um “baita cartaz” com ele.

A gente está em que época, Lu?

Nós estamos em fins de 85, já na época da campanha, para a prefeitura, do Saturnino Braga, que era o candidato favorito. Aliás, tanto o Cléber quanto eu, ao acompanharmos a campanha eleitoral, tínhamos a sensação de que o Saturnino sairia do PDT.

E você já havia feito o concurso para a prefeitura?

Só fizemos o concurso em 87. Vitória das forças democráticas... Servidores estatutários!

Houve tentativas de replicar o Mutirão em outras cidades, outros estados?

Na segunda gestão do prefeito Marcello Alencar tivemos duas experiências bem-sucedidas com Belo Horizonte e Vitória. Mas a gente só levava “pauleira” de todo mundo! Gente que não tinha a mínima ideia do que estava acontecendo.

A polêmica era em torno da titulação?

Pois é: ou achavam que não se devia fazer nada na favela, ou era a regularização fundiária e a famigerada titulação como ponto de partida. Os loteamentos irregulares queriam o título de posse, já que tinham comprado seus terrenos de loteadores irregulares ou clandestinos. Mas a favela não se interessava pelo assunto. No fundo era a continuidade da política de remoções para conjuntos habitacionais periféricos. Eleito o prefeito Saturnino Braga, vai o jornalista Maurício Azedo para a SMDS.

Ele mudou a equipe?

Ele tirou o Cléber. Recebi uma carta me confirmando no cargo. Mandei a resposta dizendo que não ficava, porque ele teria entrado para dividir a equipe. Distribuí cópias para a turma toda. Olha que maluquice! Logo eu, que não tinha nada a ver com as facções do PDT. Mas o Maurício teve um papel importante.

No projeto Mutirão?

É, porque ele deu um bom reforço na estrutura do projeto. Contratou uma equipe de engenheiros florestais e agrônomos para o primeiro projeto de reflorestamento, implantado em 1986, em São José Operário. É um projeto sensacional, de recuperação de áreas desmatadas, o mais importante que eu conheço no mundo. Criou a coordenação de projetos, abriu mais dois almoxarifados nas zonas Norte e Oeste, institucionalizou a contratação de caminhões, ampliou as equipes e o número de obras. Contratou uma cooperativa de carros para os técnicos. Os técnicos gostavam dele.

E o projeto foi preservado nesse meio-tempo?

Cléber, Teodoro e eu fomos para o Proface por meio de um convênio de cooperação técnica. Fiquei lá um ano, estabelecendo a ponte com a SMDS. E na prefeitura era sempre: “Ah, é aquela turma de engenheirinhos de favela... aquela turma doida lá”. O projeto foi preservado, mas era a obra pela obra. A qualidade era discutível. Virou uma máquina imensa com técnicos assumindo até oito a 10 obras de uma só vez. Muitas obras não se concluíam e o Mutirão continuava sendo um projeto informal. Voltei em 87 e fui trabalhar com o Manoel Valim, velho militante do Partidão. Tive uma nova ideia de articular obras com reflorestamento. Maurício Azedo sai da SMDS e entra o Sérgio Andréia do PT, já confirmada a ruptura do Saturnino com o PDT. Eu disse assim: “Talvez eu consiga me entender com essa turma”. Fui lotada num grupo social que era pura politicagem. É interessante que, já naquela época, você via a dificuldade deles em separar agitação e propaganda de gestão de fato. Não conseguiam transformar as coisas em ação concreta na secretaria. Uma proposta de urbanização de todas as favelas foi lançada pelo César Benjamin, mas não saiu do papel.

Quando foi isso?

Foi em 88. A cidade estava um caos, porque chovia mais do que em 86. E, como sempre, não tinha nada a não ser parcas doações de roupas e comida! E eu acabei me desentendendo com o procurador da SMDS, antigo companheiro de militância no PCBR, por conta da inclusão de uma melhoria salarial, já autorizada pelo prefeito, por trabalharmos em área de risco. E nada do processo andar. É evidente que um passado de militância conjunta dava margem para falar diretamente com ele. Entrei na sala dele e disse: “Pô, Raimundo, desenrola isso aí! No Sindicato de Advogados você se posiciona sempre a favor da classe! E aqui, onde fica a sua coerência?”

No dia seguinte, um engenheiro veio me dizer que o Diário Oficial tinha publicado a minha transferência para a Secretaria de Obras. Fui para lá em 24 horas! Nunca vi um processo tão rápido [risos]. Lá vou eu atrás do Salomão, secretário de obras: “Eu não vou ficar naquilo lá”. Vir de Piratininga até São Cristóvão para assinar ponto e voltar para casa? Ele falou com o Luiz Paulo Corrêa da Rocha, que já me conhecia da época do Mutirão. Ele me disse: “Posso conseguir um lugar na Secretaria Municipal de Urbanismo”. Chego lá e fui parar na sala dos banidos. Em pleno governo Moreira Franco só tinha pessoal oriundo do estado e militantes do PDT na sala... O coordenador era o arquiteto João Sampaio, que acabou sendo prefeito de Niterói. Estava a Márcia Bezerra, da Cehab; a Maria de Nazareth Gama e Silva (a Nana), que tinha sido assessora do Darcy Ribeiro; a Verinha Malagute, que aparecia por lá também. Na falta do que fazer tentei ajudar no PEU da Rocinha...

Então já existia uma diferença de concepção e de prática entre as pessoas que estavam envolvidas com o projeto Mutirão e esse pessoal que começa a fazer o PEU da Rocinha?

Já. E eu, evidentemente, sempre metida nas discussões... inclusive na nossa equipe lá. Não tinha carro disponível na SMU. Daí houve um diálogo esdrúxulo. A arquiteta responsável me disse que não ia. “Podemos ir no meu carro”, eu respondi. “Não, porque você vai dar um péssimo exemplo aqui dentro!” Aí eu dei uma gozada na garota: “Você não está é a fim de botar o pezinho na lama”. E acabou que não deu em nada. Afinal, favela não era importante.

E com a eleição do Marcello Alencar houve modificações no Mutirão?

Em 1989 volta o Pedro Porfírio com o chefe de gabinete Manoel Valim, e eu desço para a SMDS. A oficialização da minha volta levou seis meses! Na reestruturação da secretaria foram criadas as superintendências de Assistência Social, de Projetos Sociais e a de Engenharia, Saneamento e Urbanização Comunitária (Sesuc), que trabalhariam em sistema matricial. Assumi a área de planejamento e orçamento. As obras não andavam, estava uma bagunça absoluta. Escolhi dois engenheiros a dedo, com perfil administrativo, e avançamos nos controles de gestão. Escrevi um programa mínimo — conceituando a articulação programática de obras, desenvolvimento social e o reflorestamento, priorizando a conclusão das obras mais adiantadas —, que foi aprovado pelo secretário. No início de 90 fui nomeada superintendente da Sesuc. A coordenação de projetos desenvolveu três projetos-tipo para as creches, que se consolidaram já numa linha de adequação às necessidades da Superintendência de Projetos Sociais, composta por mulheres que conheciam profundamente as favelas também. Elas aperfeiçoaram a contratação de moradoras das áreas, criando uma metodologia de capacitação para a cogestão local das creches. Foram construídas umas 80 creches no total. Um recorde para a época. No morro da Formiga foi construído um sistema de esgotos dentro do rio, uma espécie de emissário, que canalizava o esgoto para a rede pública, e uma passarela com vão livre atravessando o rio. Aliás, essas obras se repetiam em outras favelas.

Já no Plano de Trabalho 86 foi estabelecido então o escopo de projetos e obras: a construção de redes de esgotamento sanitário e drenagem de águas pluviais; a humanização das vias de acesso com escadarias e pavimentações simples; e a criação de espaços destinados ao lazer, recreação e esportes. Competia aos técnicos avaliar as características das obras para melhoria da qualidade da construção, buscar vínculos mais próximos com a SMO e a Cedae, fortalecer as atividades com a área social da secretaria e a participação comunitária. Mas, assim mesmo, nos faltavam instrumentos importantes. Não digo que construí essas possibilidades, mas eu as organizei.

Era uma intervenção programada, planejada?

Na realidade essas intervenções eram realizadas muito mais por iniciativas de determinados técnicos e por necessidades imediatas de obras. As inovações foram acontecendo depois da chuva de 88, que foi calamitosa para a cidade. Já não era mais possível manter os custos de manutenção da cidade e os transtornos causados pelas enchentes. A prefeitura definiu prioridade total para programas estratégicos, objetivando a solução dos desmoronamentos de encostas e as reduções de enchentes. A Geo-Rio foi-se modernizando e tornou-se um importante centro de referência em geotecnia. Define-se um amplo programa de obras que, em sua maioria, envolviam as favelas. Pouco depois entram os garis da Comlurb para efetuar a coleta de lixo domiciliar em favelas. A partir de encontros em área com nossos técnicos, passamos a articular essas intervenções com o reflorestamento. Isso também permitiu o aprendizado de tecnologias para as situações diversas que exigiam obras de pequenas contenções. Começamos a abrir vias de acesso para microtratores, uma novidade implantada pela Comlurb. Era um conjunto de novos conhecimentos técnicos.

Essa proposta foi bem-recebida?

Foi. Havia engenheiros muito competentes, que tocavam grandes obras de saneamento em favelas e loteamentos nas zonas Oeste e Norte, canalizações de rios, inclusive no velho sistema de “gabião”, barato e duradouro. O sistema de “gabião” vem da época colonial. É uma estrutura artesanal que dispensa o uso de concreto armado, funcionando como caixas, com pedras de mão de vários tamanhos dentro. Ao serem colocadas nas margens de rio em declive ou na construção de muros, funcionam como contenção. As diretorias de Drenagem e de Conservação abriam valas profundas e pavimentavam as ruas depois das obras.

Com mutirão?

Não. Mutirão era só nas nossas obras. A equipe de reflorestamento desenvolve um diagnóstico para a intervenção em favelas que contribuíam para as bacias da baía de Guanabara, Sepetiba e regiões oceânicas. Isso abre perspectivas para intervenções planejadas a partir dos maciços da Tijuca, Pedra Branca e Mendanha, áreas fundamentais para o controle do processo de erosão motivado pelos desmatamentos e proteção das cabeceiras de rio. As redes de esgoto eram em sistema separador absoluto, com as drenagens até os limites da favela com as redes urbanas. E, pasmem!... na malha urbana a Cedae depositava os dejetos nas redes de drenagem da prefeitura. Em 1990, se não me falha a memória, o Valim teve uma iniciativa decisiva ao criar a Coordenadoria do projeto de Educação Sanitária.

Isso fecha então a metodologia de abordagem multidisciplinar das favelas. A coordenadora Sylvia Ripper, uma médica sanitarista inteligente, abriu uma seleção para agentes comunitárias em várias favelas e consolidou uma capacitação que botou todo mundo na linha. A metodologia se centrava em pesquisas socioeconômicas e no desenvolvimento de trabalho prático centrado no saneamento: incidência de diarreia e a redução da mortalidade infantil. As agentes faziam entrevistas familiares de casa em casa para repassar noções de higiene, fazer a pesagem de bebês e coleta de fezes, que eram enviadas para a Fiocruz. Conseguiram provar que havia redução na incidência de diarreia infantil. Faziam panfletos e cartazes bem rústicos para os encontros coletivos sobre educação ambiental. E foram adquirindo credibilidade a ponto de se transformarem em grupos de mobilização e organização da participação comunitária no nível do projeto como um todo. Então escrevi, junto com a Silvinha e com o apoio de alguns técnicos, as teses do projeto de Urbanização Simplificada/Mutirão Remunerado. As teses estabeleciam novos conceitos e metodologias de articulação multidisciplinar entre as funções de cada coordenadoria. Enfim, uma abordagem inteiramente inédita de integração de urbanização, saneamento, meio ambiente e saúde, que resultou no conceito de urbanização simplificada

Você tinha orçamento para isso?

Na realidade os recursos eram ali na conta. O mais importante é que o Mutirão aliava o baixo custo das intervenções por administração direta, o pagamento da mão de obra local, a prioridade para a conclusão das obras, a gestão do projeto estruturada pelas coordenações de técnicos internos da SMDS e os apoios voluntários dos outros órgãos públicos e privados.

E o tráfico?

Ainda não era muito perceptível. Eu tinha uma intuição que aquilo ia ficar cada vez pior. Mas eles nunca perturbaram obras da gente. Mas naquela época... Até que deram um susto lá num engenheiro. Ele dava uma de “durão” com o pessoal da Nova Brasília. Os traficantes fingiram um sequestro dele, tivemos que ir lá... [risos]. É uma enciclopédia isso aí. Cada um tem muitas histórias para contar. O Escadinha era um parceiro.

De quem?

Ele cuidava do nosso material de construção no morro do Livramento. Mas ele não andava armado — de dia, pelo menos. Era palmatória, era um “tapão”. Educação ambiental “alternativa” que eu vi, na época, foi no Santa Marta. Estava um arquiteto nosso lá, dando uma bronca: “Eu faço a canaleta de drenagem aqui, vocês jogam lixo! É tudo porco!” Aí chega um cara: “O qué qui tá havendo aí, dotô?” “É que eles ficam sujando a obra”. “Pode deixar comigo”, foi a resposta. Aí o arquiteto: “O que é que você vai fazer?!” “Bem, primeira vez leva uns tapa. Na segunda, é tiro na mão. Na terceira, vira presunto!” O arquiteto dizia: “Lu, o que eu faço, meu Deus?” “Deixa rolar!”, eu disse. Eu nunca vi o Santa Marta tão limpo, na minha vida [risos]. Um dia, um garoto foi querer tirar onda na Serrinha, já no início do Favela-Bairro. Estava lá com uma bermuda, sobe o morro, desce o morro, na frente de todo mundo, com dois “revolverzinhos” mixurucas... Daí a bermuda dele escorregou e apareceu a bunda. Foi uma gargalhada geral [risos]. Acabou a festa dele! Há pouco tempo eu vi um jardim plantado no espaço entre os trilhos do trem no Jacarezinho. Tinha uma placa com um recado: “Quem jogar lixo leva porrada”. Estava tudo limpo, inclusive a estação. Quando o Moreira Franco é eleito governador, em 86, lança como estratégia principal acabar com o tráfico em seis meses. Lá se vai o apoio às comunidades através de projetos sociais do governo Brizola; é a volta às velhas práticas da repressão. Cria-se um processo de acirramento de ação e reação entre o tráfico e os órgãos de segurança que vai se desenvolvendo de tal forma até chegarmos à situação que existe hoje. Você sabe o que era a favela para mim, na época da militância? Era o local da resistência em caso de insurreição armada na cidade do Rio de Janeiro, porque era propício à clandestinidade. A visão que eu tenho hoje, guardadas as devidas proporções, é de que são relações entre todos os envolvidos que portam armas, que se traduzem em comportamentos que são muito complicados e impenetráveis, porque são conhecidos pelas comunidades, mas não são divulgados. É o vale-tudo!

E a relação com a Secretaria de Urbanismo nessa época?

Quase me escapa aqui a importância do secretário de Obras e Urbanismo, Luiz Paulo Corrêa da Rocha. Foi fundamental para nós.

Havia disputa nos modos de conceber as intervenções?

Dentro da SMDS, não. As divergências vinham de fora e se centravam na questão conceitual e metodológica do Mutirão. Estruturei projetos de urbanização simplificada integrada no complexo do Caricó, na Penha, com seis favelas, e no complexo do Sapê, em Madureira, com cinco favelas, que já tinham obras em andamento de forma isolada. A grande inovação conceitual foi considerar que favelas eram “conurbadas”, ou seja, elas criavam uma mancha compacta urbana, exigindo intervenções globais e integradoras dessas comunidades.

Nesse momento, então, você já havia se tornado uma referência nessa discussão, não é?

Era uma referência de divergência, a mulher polêmica. Essa fama eu vou herdar no Favela-Bairro. Um dia eu estava num seminário na Câmara de Vereadores, com um pessoal de São Paulo, defendendo os conjuntos habitacionais legalizados. Então afirmei que a nossa prática era uma forma consistente de redução do déficit habitacional, já que proporcionava condições para fixar as favelas em suas áreas de origem. Não estava errada. Só que era uma nova abordagem. Mas a discussão pegou fogo! Tem outros exemplos.

Mas não foi sua a proposta vencedora no Favela-Bairro?

Espera aí. Tem água debaixo desse angu [risos]. Aproveitando aquele momento do programa de Despoluição da Baía de Guanabara, em 90, convidamos alguns participantes da equipe do BID a visitar o complexo do Caricó. Ficaram realmente surpresos. Mas não foi adiante porque, pelas normas do banco, a cidade deveria ter um plano diretor (que só foi aprovado em 93) e os projetos e obras deveriam passar pelo processo de licitação. E eu pensava: “Empreiteira não bota os pés no Mutirão”.

Por causa das licitações?

Salvo raríssimas exceções, nós éramos um tanto ou quanto radicais e “principistas”. Uma bobagem! Estruturamos o projeto de urbanização simplificada do complexo do Caricó, e agreguei também uma área do morro da Formiga para captar recursos no Ministério da Ação Social do governo Collor. Então, o Iplan (hoje IPP), com a Márcia Coutinho e equipe, fez o primeiro cadastro de favela através do levantamento aerofotogramétrico. Que era caro! Conseguimos de graça através da Aeronáutica. Daí foi possível apresentar as intervenções em plantas detalhadas de obras realizadas e realizar cronogramas físicos e financeiros. Essa iniciativa vai se desdobrar no Cadastro de Favelas do IPP, em 91. Foi aprovado com a liberação dos recursos a fundo perdido, o que quer dizer que não havia contrapartida nossa. A prestação de contas foi considerada exemplar, e o modelo foi adotado para outras cidades do Brasil. Quando o Porfírio saiu da secretaria para se candidatar a vereador, entrou o Marco Maranhão, ex-militante do PCBR, ex-preso político e “banido”. Para mim, foi o melhor dirigente que tivemos. Ele tinha clareza da importância estratégica do projeto e sensibilidade para se relacionar com os técnicos. O arquiteto Carlos Silveira fazia lindas aquarelas e entalhes, inspirados nas favelas e nas intervenções do Mutirão. Daí o secretário organizou, em 92, uma exposição com esse trabalho — “A arte de ver a favela”— que ficou muito linda.

Qual foi a abrangência do Mutirão?

De 1984 até 1992 atuamos em umas cento e muitas comunidades, com infraestrutura urbana, creches e participação da equipe de educação ambiental em parte dessas comunidades. Reflorestamos áreas desmatadas com cerca de 200 ha plantados em 30 comunidades. Mas em muitas favelas não dava para concluir. Tem mais tempo de continuidade do Mutirão na gestão do prefeito César Maia.

Favela-Bairro 

Vamos falar da sua inserção no projeto Favela-Bairro, e das linhas de continuidade, caso existam, entre o projeto Mutirão e o Favela-Bairro. Mas, antes, gostaríamos de saber sobre o papel de vocês no plano diretor. Vocês definiram diretrizes quanto à questão das favelas?

Sim. Contribuímos durante a realização dos grupos de trabalho, formados a partir de 91, com diretrizes para a urbanização de favelas nas áreas de meio ambiente, saúde e obras com dimensionamentos diferentes da cidade. A prioridade era a intervenção urbanística e social. Remoção só em último caso. Questão profundamente polêmica, inclusive em nível internacional.

Houve embate na prefeitura em torno da ideia da não remoção?

Sim. Porque na prática conseguimos apontar novos caminhos para a solução das ocupações irregulares, tanto as favelas quanto os loteamentos irregulares e clandestinos. Mas houve embates, claro, e não só na prefeitura. O plano diretor foi aberto democraticamente à consulta pública, tanto é que só foi promulgado em 93.

Então o modelo do Favela-Bairro já existia?

Existiam as premissas básicas. Em fins de 92 foi feito um documento, com apoio de dados fornecidos pela equipe e assinado pelo secretário Marco Maranhão, servindo de base para o I Seminário sobre Áreas Favelizadas e Meio Ambiente: Contribuição para uma Proposta de Desenvolvimento Urbano. Fiz uma palestra sobre os projetos de urbanização simplificada em complexos de favelas e formamos grupos temáticos de discussão dos caminhos de intervenções de desenvolvimento urbano, social e prestação de serviços em favelas. Tudo isso veio a contribuir para a proposta do Favela-Bairro. Eu considero, modestamente, que o Mutirão é o DNA do Favela-Bairro. As etapas históricas de implantação do programa Favela-Bairro foram amplamente divulgadas; então vou falar de forma simplificada sobre a mudança de um projeto desenvolvido com características informais para uma nova fase de institucionalização, profissionalização e abrangência no nível da prefeitura. Mesmo porque uma boa parte desse processo já foi relatada em muitas outras publicações.

E como foi a transição para a gestão do Cesar Maia?

A eleição do prefeito Cesar Maia, em 92, foi uma grande novidade. Quando veio o resultado do primeiro turno, daí sim, junto com o Marco Maranhão e nossa equipe, “caímos firme” em uma campanha eleitoral pela primeira vez. Eleito Cesar Maia, a Laura Carneiro foi nomeada secretária da SMDS em 93. Após uma longa reunião de transição, fui exonerada por ela e substituída, assim de cara, pelo novo superintendente, que, ironicamente, tinha o sobrenome Petersen. Puxa, veio gente me perguntar se era meu marido! E lá vou eu, mais uma vez, para a coordenação de planejamento de projetos do Fundo Rio, cujo responsável era o Jorge Rodrigues. Com o apoio da Coordenadoria de Projetos estruturei mais dois projetos com obras de saneamento no Jacarezinho, construídas por empreiteira, e um projeto-piloto, o Programa Especial de Saneamento da Zona Oeste (Peszo), de tratamento de esgotos com filtro anaeróbico nas cinco comunidades da Zona Oeste com Mutirão. Ambos aprovados pelo Ministério da Ação Social. O programa de governo do prefeito já vem apontando para uma reviravolta nas estruturas de gestão municipal macrofuncional, abrindo caminho para um planejamento urbano integrador da cidade. De que eu me lembre, a proposta partia de princípios relativos à necessidade de promover a interação e o entrosamento entre os órgãos públicos do município, a imprescindibilidade de garantir a melhor utilização dos recursos humanos e materiais e maior eficiência na prestação dos serviços. Dentre as diversas macro-funções, duas me chamaram especial atenção: a de desenvolvimento urbano e a de políticas sociais, por motivos óbvios.

E o Geap [Grupo Executivo de Programas Especiais para Assentamentos Urbanos]?

O Geap foi criado por decreto, em 1993, para estabelecer as bases da política habitacional da cidade do Rio de Janeiro. Nunca fomos chamados para participar das reuniões. Não sabíamos o que estava acontecendo. Então eu, enquanto assessora do Fundo Rio, e três coordenadores do Mutirão escrevemos o documento Urbanização de Favela, Participação Popular e Qualidade de Vida, relatando o processo evolutivo do projeto, e enfatizando a necessidade de integrar as políticas públicas direcionadas às favelas. O plano diretor dava um passo importante no sentido dessa integração ao declarar as favelas como “áreas de especial interesse social”. Esse documento foi entregue ao prefeito, em reunião, da qual não participei, com a coordenação do projeto. O objetivo era a defesa do Mutirão, porque entretempo a SMO, ignorando o projeto Mutirão, havia lançado um programa de urbanização de todas as favelas do Rio. Em março de 94 toda a equipe e os projetos do Mutirão, ou seja, todos os conhecimentos adquiridos por nós, são transferidos para a recémcriada Secretaria Extraordinária de Habitação, tendo como responsáveis o secretário e arquiteto Sergio Magalhães e o subsecretário Jorge Rodrigues, que me chamou para a assessoria do gabinete. Estrutura-se a secretaria de acordo com as “bases da política habitacional do Rio de Janeiro”, com seis gerências de programas. O secretário tinha dois candidatos a serem indicados para a gerência do programa Favela-Bairro Popular, que não aceitaram o cargo. Então fui eu a designada para o sacrifício, com apoio do Jorge Rodrigues. Na sala das gerências era tudo colado um no outro. A ponto de um gerente lá, arquiteto jovem recémsaído da faculdade, querer um lugar ao sol na janela só para ele, e eu dei uma bela bronca [risos]. Tomamos posse literalmente de um terraço que servia de área de aeração e insolação dos andares superiores do prédio, e dava acesso para as salas. Posso garantir que ali sim, nasceu o programa Favela-Bairro, ao ar livre, com uma pirâmide de vidro que iluminava os andares inferiores, bem no meio do terraço. Sinal de bons augúrios e transparência, porque as outras salas, inclusive a do secretário, podiam ver! Ali eu fazia reuniões da equipe toda, com comunidades etc.

E as lideranças das comunidades?

Elas reagiam porque tinham interesse em manter as equipes de obras de mutirão... Afinal, para eles era uma questão de poder. E eu pensava: “Vamos ter briga feia aí pela frente com a terceirização de projetos e obras”. Em 94 lança-se o programa Favela-Bairro Popular, com diretrizes bem generalizantes. O sentimento que tivemos foi: está aí só por estar. Então o prefeito lança o decreto de início do Favela-Bairro no complexo do Andaraí, uma encosta íngreme e acidentada com três favelas “conturbadas”, a ser implantado já na estrutura macrofuncional, com a coordenação da Secretaria Extraordinária de Habitação, e gestão integrada com o Iplan, as secretarias de Obras e de Fazenda, e a Procuradoria Geral do Município. Eu pessoalmente teria escolhido alguma área menos complicada. Começamos a ter dificuldades na fase de desenvolvimento dos projetos e obras porque envolviam pareceres técnicos e execução de projetos de diversos serviços da SMO, principalmente. Só que a SMO tinha prioridades mais imediatas... Em dezembro desse mesmo ano a Câmara de Vereadores aprova a oficialização da Secretaria Municipal de Habitação. O prefeito libera, depois, os recursos para a implantação do programa incluindo o Andaraí e mais 16 favelas que viraram 23 em função de outras “conurbações”.

Então o mutirão se transformou no Favela-Bairro?

O Mutirão forneceu os insumos necessários para a estruturação do Favela-Bairro. Eram todas as funções que estavam naquele documento do último seminário: praças, áreas de esporte, iluminação pública, espaços públicos, abertura de vias carroçáveis, coleta de lixo e programas sociais... A equipe técnica foi ocupando espaços em todos os níveis da secretaria.

Mas quem decidiu, por exemplo, quais seriam as 16 favelas contempladas com a verba?

Quem definiu começar pelo Andaraí? Eu não tenho a mínima ideia. Reunimos técnicos da coordenação de projetos e obras e nossos aliados tradicionais. Foi montada a matriz classificatória de favelas coordenada pelo Fernando Cavallieri, que era da Secretaria de Fazenda, definindo o universo das favelas urbanizáveis, estabelecendo os critérios de pontuação para prioridade de inclusão de comunidades.

Então vocês definiram, com autonomia técnica, a maioria dos projetos?

Sim. Naquele momento estruturei uma equipe de 15 subgerentes de projetos, arquitetos e engenheiros, escolhidos a dedo. O secretário propôs uma consulta aos subprefeitos, que indicariam cinco favelas englobando todas as cinco áreas de planejamento da cidade. Nós priorizamos três de cada área. Foi uma ideia bastante democrática e eu achei legal, criativa... E nos garantiu depois apoio das subprefeituras. Foi realizado, então, o concurso da Secretaria de Habitação e do Instituto dos Arquitetos do Brasil para selecionar as metodologias para o Favela-Bairro. Eu participei do julgamento e da escolha das metodologias propostas mais apropriadas. Só uns poucos arquitetos entendiam do assunto. Então juntei os subgerentes para adequarmos o perfil das propostas de cada escritório às características das favelas já escolhidas. Bem, terminado o concurso, começaram as reuniões, com a intermediação do IAB e a participação direta dos escritórios já selecionados, para a definição da estrutura de funcionamento, critérios para a execução e aprovação de projetos etc. Reuniões cansativas que foram encaminhadas por alguns subgerentes e coordenadores. Eu não tinha paciência! Se eu disser que nós teorizamos isso, é mentira. Não tínhamos experiência nos trâmites formais a serem seguidos para aprovação dos projetos. Chega-se finalmente ao escopo do programa: critérios de aprovação de projetos e normas de apresentação de diagnóstico, planos de intervenções e projeto básico. Os nossos técnicos diziam que saíam discussões terríveis! Por iniciativa do Cesar Maia, foi criado o grupo das 16 lideranças. O G-16 foi o mais importante instrumento de socialização dos objetivos, etapas, métodos e repasses para todas as comunidades do programa, sobretudo aquelas que nunca tinham trabalhado conosco. Os planos de intervenção e o início de obras eram sistematicamente difundidos em assembleias locais. Quando começaram as visitas a obras, percebi que o prefeito tinha a percepção clara das vantagens e dificuldades enfrentadas, tomando decisões imediatas na indicação da SMO, por exemplo, para executar complementações importantes na interligação com os bairros com recursos próprios.

As intervenções aconteciam simultaneamente? Ou existia uma sequência?

Estabelecemos um cronograma bem enxuto com o Iplan, que assumiu a gestão administrativa dos projetos, através de reuniões comigo e com o subgerente de cada favela para fecharmos os termos da fiscalização, da aprovação de projetos e da efetivação de pagamentos. Fomos botando na rua na marra... Agora vai! Até porque tínhamos recebido uma provocação, que eu fiquei indignada.

Qual foi?

Convoquei uma reunião geral com os órgãos municipais afins para socializar os conceitos e metodologias do Favela-Bairro. Senti uma certa descrença dos participantes. Vem uma servidora da SME: “Ô Lu, você está maluca? Você não vai conseguir fazer isso nunca!” [risos]. Eu falei: “Nós vamos fazer sim, senhora! Quer apostar?” O comentário geral dos nossos técnicos que estavam presentes: “Chega dessa história de ‘engenheirinho’ de favela, que nós estamos fartos disso”. No final, isso deu gás para a turma!

Quanto tempo dura a intervenção em cada favela?

Depende muito dos graus de dificuldade. Com muito otimismo e boa interação entre os técnicos diversos e a comunidade, leva no mínimo um ano e meio. Mas, na realidade, tivemos que definir etapas de implantação em muitas favelas, porque sempre surgiam dificuldades técnicas e novas necessidades inesperadas.

Em que medida as obras dependiam dessa interação entre técnicos e comunidade?

Dependia da interação de todos os envolvidos. E aí começam as encrencas... Culturas diferentes... É evidente que em área saíam desentendimentos. Era uma confusão! Iniciam-se as licitações de projetos das seis primeiras comunidades e assim por diante, até chegar ao total de 23. Lá vêm novas dificuldades de adaptação, agora com as empreiteiras. Poucas tinham experiência em áreas altamente densas de ocupação desordenada. Tínhamos em área os subgerentes, os nossos fiscais de obras, as agentes comunitárias e as lideranças locais. A SMO nos deu preciosas ajudas. A turma segurando até quando dava; quando não dava, entra dona Lu aí para espanar, porque senão... [risos]. E assim surgiu a minha outra fama: a de “linha dura”. Sobrava também para presidente de associação, traficante... Caramba! Mas também facilitava para o pessoal técnico e para as agentes comunitárias chegarem a acordos com todos os envolvidos. Com a complexidade e diversidade de interesses no programa, estou convencida que não tinha outro jeito. Até hoje vem gente que nem conheço dizer que levou bronca de mim! Dizem que o Favela-Bairro não tem vínculos com a comunidade... É porque não precisa. Já estavam mais do que consolidados ao longo de oito anos.

O BID entra quando?

Naquele momento tínhamos um fortíssimo concorrente, que era o programa Rio Cidade, da SMU. O must da cidade, para a reestruturação dos principais corredores de transporte, ordem urbana com a retirada das barracas de camelôs, chumbadas nas calçadas do Centro, Copacabana, Ipanema, Leblon, Laranjeiras etc., fatos de que poucos se lembram. Nessa época trabalhávamos sem muitos ruídos. As negociações com o BID começam em fins de 94. Em 95 já tínhamos seis obras em andamento, que serviram como exemplo para a definição do escopo do programa. Jose Brakaz, um brasileiro inteligente e competente, funcionário do banco, coordenou uma série de missões. A nossa equipe tinha como coordenador de montagem dos componentes do contrato Fernando Cavallieri, que foi transferido para a SMH, e, como assessor imediato, o engenheiro Aderbal Curvelo, que me havia substituído na Coordenadoria de Planejamento do Mutirão

Mas tem protagonismo seu de bancar uma ideia um tanto extravagante, não é?

Para a época eram ideias extravagantes, mas o fato é que desde o início, em meus primeiros relatórios, eu já afirmava que a estrutura do programa tinha caráter macrofuncional, articulando as intervenções físicas com a diversificação de programa sociais. Os dois teriam que caminhar juntos. Era a metodologia de gestão social do programa. E assim fomos amarrar o escopo do programa com o BID, não sem discussões acaloradas. Era coordenado pela SMH com a coparticipação da SMDS. Eu era a coordenadora dos componentes conceituais e metodológicos, que eram na realidade um dos objetos principais do contrato. Tive que firmar posição quanto a algumas premissas, como a regularização fundiária após as obras, formas indenizatórias para o reassentamento de famílias por necessidades de obras, a construção de edificações habitacionais só em último caso, e outras. Na área social, os acordos foram mais difíceis. O BID insistia só na construção de creches e na troca da gestão participativa da SMDS com a comunidade por ONGs. E nós contrapúnhamos com a importância de diversificar os programas sociais, construir centros comunitários e espaços destinados aos esportes. Nada de ONGs. Foram reuniões muito cansativas e tensas. Mas dava para perceber que a prioridade deles era execução da obra. Prevaleciam os indicadores sociais quantitativos. Finalmente foi aprovado o Programa para Regularização de Assentamentos Populares (Proap Rio/BID) em fins de 1995, incluindo as primeiras 23 favelas e mais 40. Os legados importantíssimos deixados pelo BID para nós foram, de um lado uma estrutura profissional de gestão criada na SMH, com o apoio na contratação de três consultoras que vieram a reforçar a escassez de funcionários para atender às normas do contrato e para arcar com a diversidade de projetos. De outro lado ficou a sistemática de fiscalização de projetos e obras, que se traduziu na construção de um caderno de encargos completíssimo para programas em áreas de pobreza, perfeitamente adaptável aos projetos de desenvolvimento urbano, inclusive em pequenos municípios. No decorrer desses anos houve um desenvolvimento significativo quanto à regularização e titulação da posse da terra. Na secretaria avançam, posteriormente, mais programas importantes. Um deles, que vale destacar, é o programa Morar Legal, de urbanização de loteamentos irregulares e clandestinos, incluído no Proap. A Gerência de Regularização Fundiária viabilizava indenizações e reassentamento de famílias, dando uma solução importantíssima para os programas afins da secretaria. Havia também o Morar Sem Risco, que teve como resultado mais imediato a remoção de todas as famílias que vivam sob os viadutos da cidade, reassentadas em conjuntos habitacionais próximos àquelas áreas. O Novas Alternativas entrou com a restauração de cortiços adaptados para moradia popular e, finalmente, o Morar Carioca, que era de construção e financiamento de habitação popular. Com tudo isso, a SMH se consolida como uma secretaria com grande visibilidade e realizações, com prioridade nítida para as áreas de pobreza. Há que se reconhecer que o secretário Sergio Magalhães foi um gestor eficiente e eficaz.

Quando o projeto passa a ter uma repercussão mais ampla? Inclusive fora do Brasil?

Em 96 o arquiteto Luiz Paulo Conde é eleito prefeito, em função da alta popularidade do Cesar Maia. A SMH passa a adquirir uma certa visibilidade, que se amplia muito com a presença do BID. Com recursos fixados, não havia grandes dificuldades para a adesão de novos órgãos públicos ao Favela-Bairro, exceto a SMU. Muitas entrevistas e programas na mídia dão origem a atividades de coordenação de encontros técnicos, visitas de delegações de várias partes do mundo, coordenadas pela equipe da gerência. A comunicação social passa a ser bem incrementada com recursos alocados para propaganda. Já em 98 é lançado um boletim interno, os Cadernos da SMH, que focalizam os fatos mais importantes da semana. Durante a realização da Conferência da Cimeira,12 nesse mesmo ano, a prefeitura criou um ponto de informações e marketing no MAM, com uma exposição, distribuição de materiais e um vídeo de boa qualidade. Realizamos visitas, com grupos de mais de 100 jornalistas de todo o mundo, ao morro da Serrinha. Alguns grupos prolongavam as visitas se reunindo em bares, com os moradores, organizando pagode até a noite. Depois passamos a organizar visitas turísticas e técnicas no Vidigal, em função da bela vista da Zona Sul. Foram grupos e mais grupos. Aliás, o Vidigal vai ser mais tarde o embrião da ideia do Museu da Providência. Depois eu conto. Em 1997 eu tinha ido fazer o curso de gestão de programas sociais do Instituto de Desenvolvimento e Estudos Sociais do BID. Os professores e alunos simplesmente não davam a mínima para o Favela-Bairro: “Quem é essa brasileira aí?” Era tudo pablito [risos]. Foi um curso extremamente cansativo, que durou um mês, em Washington. A minha relação social com os alunos era ótima porque nos fins de semana nos reuníamos para ouvir música, tomar cerveja e bater papo, dar umas saídas turísticas. Uma vez fomos ver a festa do Halloween. Coisa estranha, aquelas fantasias, que não metiam medo nem em criancinha... Já os diálogos com os professores eram difíceis. Arrumei confusão lá por causa da participação comunitária, porque fui indicada para apresentar uma proposta que, evidentemente, não tinha nada a ver com a tese deles de trabalho voluntário nos fins de semana! Deu encrenca também na montagem do marco lógico de programas. Eu dizia: “Bom, marco lógico você manipula como quiser”.

O que é marco lógico?

Supersimplificando: o marco lógico é uma metodologia que discrimina os componentes para a avaliação e monitoramento de programas através do cruzamento de dados em um sistema matricial para cada instituição envolvida: os objetivos, etapas de implantação, competências, organização de cada tipo de ação, cronogramas físico-financeiros de projetos, acompanhamento e monitoramento das ações. Se você não detiver os dados da realidade concreta, as metas podem ser manipuladas ou estabelecidas de forma inteiramente equivocadas. E mais, eu disse que a metodologia de monitoramento não atendia às necessidades de “sustentabilidade” qualitativa dos projetos sociais. No caso do Favela-Bairro, durante a construção do marco lógico para o primeiro contrato com o BID foi difícil “amarrar” cada item de projetos e obras. Tudo se complicou em relação às políticas sociais porque se referia, além das creches, a programas múltiplos nos centros municipais de atendimento social integrado (Cemasi). Os recursos seriam provenientes da prefeitura, uma vez que a gestão dos projetos sociais em si não estava incluída no contrato. Claro! Para o banco, os componentes do marco lógico eram só quantitativos: que projetos, quantas pessoas beneficiadas etc. Quando o Cesar Maia não vai ao segundo turno das eleições para governador em 98, por coincidência, talvez, o secretário convoca uma reunião geral anunciando novidades na estrutura da SMH, oficializando a participação dos três assessores com o cargo de “facilitadores”. O que me chamou a atenção foi que eles entrevistavam os coordenadores e alguns técnicos. Ficou claro que eu não participava mais da área executiva. Em 99 o sistema matricial descentralizador de tomadas de decisões se revertia para um modelo centralizador que tirava todo o sentido de gerência macrofuncional. O grupo dos 16 passou a ser vinculado diretamente ao gabinete, responsável pela manutenção das obras, e acabou sendo politicamente cooptado. Posteriormente um coordenador me contou que os técnicos eram chamados apenas para consultas técnicas.

O que você fez?

Diante da inevitabilidade de uma campanha eleitoral que começava com muita antecedência, parti para priorizar, a fundo, a conceituação e criação de novas metodologias para as políticas sociais. Eu havia criado uma equipe social, com três assessoras experientes em diversos níveis: a Eliana Sousa e Silva (ex-presidente da AM da Maré), a Maria José Parreiras Xavier (Zeza) e a Sandra Jouan, coordenadora do programa de Saúde Sanitária e Ambiental, criado em 98, que tinha longa experiência conosco. A tese que eu defendia era a de que as lideranças não são forjadas... e muito menos pelo poder público! Trabalhar na consciência real dos indivíduos, ou seja, no atendimento às reivindicações imediatas das comunidades era uma postura que vinha de décadas. Reduzir os efeitos do assistencialismo e clientelismo era a minha meta principal, a partir da ideia de trabalhar na consciência possível de algumas lideranças e grupos de pessoas, que tinham interesses específicos em determinados itens do escopo do programa. Estruturamos um cronograma de workshops técnicos com focos específicos na infraestrutura de saneamento básico e espaços públicos, projetos sociais de creche e centros municipais de atendimento social (Cemasi), esporte e lazer, meio ambiente e urbanismo. Estruturamos o Plano de Ação Social Integrada, o Pasi, incluindo comunidades que entrariam no Proap 2, já que as negociações do contrato tinham iniciado em 98. Era um avanço importante em termos de metodologia macrofuncional de integração social participativa em parceria com as secretarias de Desenvolvimento Social e de Trabalho e Renda, que tinha sido criada no ano anterior. A experiência nas favelas do complexo do Lins, da qual não participei, foi excelente. Posteriormente, em 98, a criação da Coordenadoria de Participação Comunitária e Acompanhamento, institucionalizando a integração social nos programas da SMH, foi um importante reforço para nós. A mobilização de moradores e a interatividade criada nos grupos surpreenderam as minhas assessoras e todos os participantes da secretaria e de outros órgãos municipais. Não tenho certeza, mas acho que em 97 foi lançado o programa Bairrinho, que atendia favelas de 100 a 500 famílias, mas não era eu a gerente. Nesse mesmo ano de 1998, iniciamos a implantação do programa FavelaBairro em grandes favelas, com recursos da Caixa Econômica Federal.

E quais eram as favelas?

Eram as favelas de Rio das Pedras, Rollas e Fazenda Coqueiros, na Zona Oeste. Os recursos eram da Caixa Econômica Federal. Quando conheci o Dietmar Starke, recém-chegado da Alemanha, optei pela contratação dele para subgerente. O Jacarezinho vai ser o projeto-piloto, desenvolvido pelo escritório de arquitetura Artefato, se não me engano, com jovens arquitetos muito sérios. Fizemos duas assembleias, na sede da escola de samba do Jacarezinho, para divulgar o projeto e para a apresentação do plano de intervenções, ambas com a presença da diretoria da associação de moradores e famílias locais da comunidade. Iniciamos também as obras em Rio das Pedras com os escritórios do Paulo Casé e do Jorge Mario Jáuregui. No ano de 2000 eu já era uma referência forte do programa e as coisas se complicaram para o meu lado. Realizando uma visita com a Architectural Association da Universidade de Londres ao morro da Providência, fui contatada pela jornalista Márcia Vieira, da revista Vejinha, para uma reportagem que ficou muito legal, intitulada: “A arquiteta dos morros: quem é a mulher que comanda o Favela-Bairro”. Mas a matéria provocou, evidentemente, um certo mal-estar com o secretário e, quiçá, com o próprio prefeito Conde. Poucos meses depois, em julho, foi plantada uma notinha no jornal O Dia sobre desentendimentos entre a gerente do Favela-Bairro e o secretário da SMH. Claro que tínhamos desentendimentos técnicos e políticos. Eu não estava gostando nada dos rumos do Favela-Bairro, que vinha se transformando em obras de urbanização e arquitetura. Os programas sociais só eram fortalecidos nas inaugurações. Os coordenadores do programa passaram a ser simples informadores de técnicas de projetos e obras. A centralização de decisões se tornara clara como água! Mas tomei uma posição bem diferente das anteriores... Nunca explicitei os desacordos claramente para não prejudicar o programa e a secretaria. Era público e notório que eu apoiaria o Cesar Maia nas eleições para prefeito de 2000. O Luiz Paulo Conde era considerado favoritíssimo na SMH, e havia uma capitalização política do programa Favela-Bairro. Entre ser exonerada como “traidora” e buscar uma solução drástica contra a capitalização política do Favela-Bairro, optei pela segunda e saí candidata a vereadora do PTB, reforçando os vínculos com o Cesar Maia. Eu nunca tinha levado a sério os convites para ser candidata a vereadora na época da SMDS, por não ter o mínimo talento para esse tipo de tarefa. E também não tinha dinheiro para a campanha. Nessa época, sai uma notícia no O Globo, de página inteira, provocativa e sensacionalista: “Mãe do Favela-Bairro se candidata...” Essa matéria vai gerar a celeuma sobre a paternidade do programa. Passei a ser persona non grata na maioria das favelas. Só conseguia entrar nas áreas do Jacarezinho, Rollas e Fazenda Coqueiro, e algumas favelas de Jacarepaguá. E durma-se com um barulho desses!

Como foi a experiência de fazer campanha?

Consegui um panfleto muito bemfeito. O símbolo era uma inofensiva abelhinha... A minha irmã conseguiu uns depoimentos importantes, que resumiam alguns momentos da minha trajetória. Tem depoimento do poeta Ferreira Gullar, da escritora Ana Maria Machado (amiga de primário e ginásio), do cineasta Paulo César Saraceni. O Ruy Castro escreveu um texto sobre a minha participação na origem da bossa nova. A minha equipe de campanha era a Bianca Povoleri, ex-secretária na gerência, e a família dela, que morava na Zona Oeste; minha irmã, o meu filho, e alguns amigos da SMH que me apoiavam na encolha. Eu tinha uma mesinha em frente ao Barril 1800, em Ipanema, onde se reunia um grupo de apoio de amigos da praia. O panfleto atraía muita gente, mas não dava voto. Aconteciam coisas que me assustavam. Como eu já disse, passei a ser impedida de entrar na maioria das favelas que eu conhecia muito bem. Apesar disso, ainda consegui duas áreas onde tinha lideranças de mulheres com quem eu tinha relações de amizade, como a Guará, do morro do Sossego, e a Sandrinha, que era presidente na favela da Grota. Consegui uma casinha de graça, com um amigo, em frente ao morro do Sereno, no complexo do Caricó. Uma noite, apareceu uma turma pressionando o meu amigo e a família, e lá se foi o comitê da Lu do Favela-Bairro. Militância política é uma coisa, porque os fatos bons ou maus são mais ou menos previsíveis. Mas campanha eleitoral é para profissional. Caramba! Eu não entendia nada! Por outro lado foi uma campanha hilária, com “causos do arco da velha”. Concentrei a campanha no Jacarezinho. Nosso grupo era um bando de mulheres que faziam um “auê” danado, e a Zeza — um homossexual que era uma verdadeira mãe para os três filhos. Ela se vestia de mulher, mas não fazia a barba, e a gente tinha que dar duro nela. Quando marquei uma visita do Cesar Maia lá, ela apareceu toda feliz da vida, toda pimpona de cabelo penteado, unhas feitas... uma figura! Um dia fomos para o forró e demos de cara com ela dançando com um velhinho, de rosto colado... Não teve jeito, a gozação foi geral! Como sempre, eu e a “fiel escudeira” Bianca, fomos num forró lá nos cafundós da Zona Oeste. Lá tive eu que dançar a noite inteira. Avisei para a mulher que nos convidou que não tinha dinheiro. Pois não é que ela veio, no final da festa, me pedir para pagar os músicos? Saímos dali de fininho. Por ironias do destino, ninguém pedia obras ou material de construção... Era bujão de gás, panela, um arsenal de coisas... Tem muito mais situações esdrúxulas que nem me lembro mais. Terminada a eleição, com a vitória do Cesar Maia, lá vêm as lideranças: “Lu e Bianca, está tudo liberado... Nunca quisemos prejudicar vocês e... blá-blá-blá”. E assim foi o nosso tempo de campanha nas favelas... É a partir daí que vamos consolidar o projeto Célula Urbana.

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