Mães vítimas de violência estatal: mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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As ações de violência estatal exercidas constantemente sobre moradores e moradoras de
áreas periféricas e de favelas são de diversas ordens, incluindo as condições de controle sobre
a circulação, o baixo investimento em equipamentos sociais de todo tipo e a precariedade das
condições infraestruturais envolvendo saúde, transporte, moradia e educação. Nesse amplo
arco de violências destacam-se, porém, as ações militarizadas que ocorrem através de
incursões armadas a qualquer momento do dia e outras práticas com grande poder de
letalidade.
Se os dados oficiais mais recentes acerca das mortes produzidas pelas polícias do Rio de
Janeiro já são notáveis – 1124 pessoas perderam a vida em 2017 em ações policiais, segundo
os dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro – seguramente eles não dão
conta de todas as facetas da violência estatal que atinge certas populações e territórios. O
recorte predominantemente masculino, jovem e negro dessas mortes não deixa dúvidas sobre
o perfil atingido por essas práticas, às quais se somam ainda as políticas de encarceramento.
A individualização dessa violência nas vítimas letais não nos deixa ver, porém, algumas de suas
consequências mais dramáticas e complexas. Como fica claro nas articulações de familiares de
pessoas vítimas da violência letal do Estado, cada morte destas atinge uma rede muito maior
de pessoas: filhos, pais, esposas, companheiras, irmãos e, sobretudo, mães. À perda brutal do
familiar soma-se o peso de lidar com as diversas formas acusatórias de classificação dessa
morte como sendo resultado de “confrontos” e, em especial, de “confrontos com o tráfico”.
Registradas em muitos casos como “autos de resistência”, tais mortes tem seu desdobramento
policial e mesmo judicial praticamente selado a priori. O esforço empreendido por familiares e
movimentos sociais para contestar as ações que nelas resultaram inclui frentes tão distintas
quanto a publicização da ilegitimidade ou mesmo ilegalidade da ação; a busca por construir a
materialidade da denúncia, reunindo provas de toda ordem e, ainda, o enfrentamento com
diversas estratégias de desmoralização.
O questionamento a essas práticas estatais tem contado com o protagonismo notável das
mães dessas vítimas por diversos motivos. São elas que conseguem, não sem dificuldade,
produzir a enunciação afetiva e política do valor dessas vidas que foram ceifadas e que são
continuamente tornadas desimportantes nas mídias, na institucionalidade estatal e mesmo no
senso comum. Reforçando a singularidade de cada um dos mortos, seus filhos, elas trazem
para a cena pública seus nomes, rostos e histórias de vida através de atos públicos,
depoimentos filmados, livros, retratos e camisetas carregadas junto ao corpo. Além disso,
exigem que seu sofrimento seja reconhecido não apenas como algo da ordem da tragédia
pessoal, mas sim como parte de um contexto político que nega à parte da população o direito
mais elementar de segurança.
O trabalho político, ético e afetivo empreendido por elas, porém, não deixa de ter custos
pessoais e coletivos elevados. Em uma condição frequentemente definida por elas mesmas
como de um luto permanente, elas tem que lidar com a sobrecarga de doenças, a dificuldade
em manter a rotina de trabalho ou mesmo de vida, as preocupações com outros filhos e netos,
e muitas outras dificuldades advindas das condições em que se deu a perda de seus filhos e do
não reconhecimento público da violência estatal que está na sua base. Nos últimos anos,
movimentos e articulações protagonizados sobretudo por essas mulheres, em que pese a
participação de outros familiares e militantes, tem trazido à público mais explicitamente seu
lugar como vítimas da violência estatal. Com isso, colocam ainda mais em evidência o fato de
que essas ações não podem ser compreendidas a partir de uma perspectiva de “combate ao
crime”, como ideologicamente reproduzido no universo da chamada “guerra às drogas”, mas


sim como parte de uma política de Estado que reitera práticas de desigualdade estrutural
'''Autores: Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência.'''
sobre populações inteiras.


Autores: Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência
As ações de violência estatal exercidas constantemente sobre moradores e moradoras de áreas periféricas e de favelas são de diversas ordens, incluindo as condições de controle sobre a circulação, o baixo investimento em equipamentos sociais de todo tipo e a precariedade das condições infraestruturais envolvendo saúde, transporte, moradia e educação. Nesse amplo arco de violências destacam-se, porém, as ações militarizadas que ocorrem através de incursões armadas a qualquer momento do dia e outras práticas com grande poder de letalidade. Se os dados oficiais mais recentes acerca das mortes produzidas pelas polícias do Rio de Janeiro já são notáveis – 1124 pessoas perderam a vida em 2017 em ações policiais, segundo os dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro – seguramente eles não dão conta de todas as facetas da violência estatal que atinge certas populações e territórios. O recorte predominantemente masculino, jovem e negro dessas mortes não deixa dúvidas sobre o perfil atingido por essas práticas, às quais se somam ainda as políticas de encarceramento. A individualização dessa violência nas vítimas letais não nos deixa ver, porém, algumas de suas consequências mais dramáticas e complexas. Como fica claro nas articulações de familiares de pessoas vítimas da violência letal do Estado, cada morte destas atinge uma rede muito maior de pessoas: filhos, pais, esposas, companheiras, irmãos e, sobretudo, mães. À perda brutal do familiar soma-se o peso de lidar com as diversas formas acusatórias de classificação dessa morte como sendo resultado de “confrontos” e, em especial, de “confrontos com o tráfico”. Registradas em muitos casos como “autos de resistência”, tais mortes tem seu desdobramento policial e mesmo judicial praticamente selado a priori. O esforço empreendido por familiares e movimentos sociais para contestar as ações que nelas resultaram inclui frentes tão distintas quanto a publicização da ilegitimidade ou mesmo ilegalidade da ação; a busca por construir a materialidade da denúncia, reunindo provas de toda ordem e, ainda, o enfrentamento com diversas estratégias de desmoralização. O questionamento a essas práticas estatais tem contado com o protagonismo notável das mães dessas vítimas por diversos motivos. São elas que conseguem, não sem dificuldade, produzir a enunciação afetiva e política do valor dessas vidas que foram ceifadas e que são continuamente tornadas desimportantes nas mídias, na institucionalidade estatal e mesmo no senso comum. Reforçando a singularidade de cada um dos mortos, seus filhos, elas trazem para a cena pública seus nomes, rostos e histórias de vida através de atos públicos, depoimentos filmados, livros, retratos e camisetas carregadas junto ao corpo. Além disso, exigem que seu sofrimento seja reconhecido não apenas como algo da ordem da tragédia pessoal, mas sim como parte de um contexto político que nega à parte da população o direito mais elementar de segurança. O trabalho político, ético e afetivo empreendido por elas, porém, não deixa de ter custos pessoais e coletivos elevados. Em uma condição frequentemente definida por elas mesmas como de um luto permanente, elas tem que lidar com a sobrecarga de doenças, a dificuldade em manter a rotina de trabalho ou mesmo de vida, as preocupações com outros filhos e netos, e muitas outras dificuldades advindas das condições em que se deu a perda de seus filhos e do não reconhecimento público da violência estatal que está na sua base. Nos últimos anos, movimentos e articulações protagonizados sobretudo por essas mulheres, em que pese a participação de outros familiares e militantes, tem trazido à público mais explicitamente seu lugar como vítimas da violência estatal. Com isso, colocam ainda mais em evidência o fato de que essas ações não podem ser compreendidas a partir de uma perspectiva de “combate ao crime”, como ideologicamente reproduzido no universo da chamada “guerra às drogas”, mas sim como parte de uma política de Estado que reitera práticas de desigualdade estrutural sobre populações inteiras.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
[[Category:Mulheres]][[Category:Violência]][[Category:Associativismo]][[Category:Segurança]][[Category:Temática - Violência]][[Category:Temática - Gênero e Sexualidade]]

Edição das 20h47min de 15 de abril de 2020

Autores: Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência.

As ações de violência estatal exercidas constantemente sobre moradores e moradoras de áreas periféricas e de favelas são de diversas ordens, incluindo as condições de controle sobre a circulação, o baixo investimento em equipamentos sociais de todo tipo e a precariedade das condições infraestruturais envolvendo saúde, transporte, moradia e educação. Nesse amplo arco de violências destacam-se, porém, as ações militarizadas que ocorrem através de incursões armadas a qualquer momento do dia e outras práticas com grande poder de letalidade. Se os dados oficiais mais recentes acerca das mortes produzidas pelas polícias do Rio de Janeiro já são notáveis – 1124 pessoas perderam a vida em 2017 em ações policiais, segundo os dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro – seguramente eles não dão conta de todas as facetas da violência estatal que atinge certas populações e territórios. O recorte predominantemente masculino, jovem e negro dessas mortes não deixa dúvidas sobre o perfil atingido por essas práticas, às quais se somam ainda as políticas de encarceramento. A individualização dessa violência nas vítimas letais não nos deixa ver, porém, algumas de suas consequências mais dramáticas e complexas. Como fica claro nas articulações de familiares de pessoas vítimas da violência letal do Estado, cada morte destas atinge uma rede muito maior de pessoas: filhos, pais, esposas, companheiras, irmãos e, sobretudo, mães. À perda brutal do familiar soma-se o peso de lidar com as diversas formas acusatórias de classificação dessa morte como sendo resultado de “confrontos” e, em especial, de “confrontos com o tráfico”. Registradas em muitos casos como “autos de resistência”, tais mortes tem seu desdobramento policial e mesmo judicial praticamente selado a priori. O esforço empreendido por familiares e movimentos sociais para contestar as ações que nelas resultaram inclui frentes tão distintas quanto a publicização da ilegitimidade ou mesmo ilegalidade da ação; a busca por construir a materialidade da denúncia, reunindo provas de toda ordem e, ainda, o enfrentamento com diversas estratégias de desmoralização. O questionamento a essas práticas estatais tem contado com o protagonismo notável das mães dessas vítimas por diversos motivos. São elas que conseguem, não sem dificuldade, produzir a enunciação afetiva e política do valor dessas vidas que foram ceifadas e que são continuamente tornadas desimportantes nas mídias, na institucionalidade estatal e mesmo no senso comum. Reforçando a singularidade de cada um dos mortos, seus filhos, elas trazem para a cena pública seus nomes, rostos e histórias de vida através de atos públicos, depoimentos filmados, livros, retratos e camisetas carregadas junto ao corpo. Além disso, exigem que seu sofrimento seja reconhecido não apenas como algo da ordem da tragédia pessoal, mas sim como parte de um contexto político que nega à parte da população o direito mais elementar de segurança. O trabalho político, ético e afetivo empreendido por elas, porém, não deixa de ter custos pessoais e coletivos elevados. Em uma condição frequentemente definida por elas mesmas como de um luto permanente, elas tem que lidar com a sobrecarga de doenças, a dificuldade em manter a rotina de trabalho ou mesmo de vida, as preocupações com outros filhos e netos, e muitas outras dificuldades advindas das condições em que se deu a perda de seus filhos e do não reconhecimento público da violência estatal que está na sua base. Nos últimos anos, movimentos e articulações protagonizados sobretudo por essas mulheres, em que pese a participação de outros familiares e militantes, tem trazido à público mais explicitamente seu lugar como vítimas da violência estatal. Com isso, colocam ainda mais em evidência o fato de que essas ações não podem ser compreendidas a partir de uma perspectiva de “combate ao crime”, como ideologicamente reproduzido no universo da chamada “guerra às drogas”, mas sim como parte de uma política de Estado que reitera práticas de desigualdade estrutural sobre populações inteiras.