Mobilidade Urbana e o impacto da violência na vida das favelas no Rio de Janeiro (artigo): mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
(Criou página com ' Autoria: Sérgio Veloso e Vinícius Santiago. Artigo publicado originalmente em 9 de Julho de 2018 em: [https://br.boell.org/pt-br/2018/07/09/mobilidade-urbana-e-o-impa...')
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Edição das 11h06min de 14 de fevereiro de 2020

Autoria: Sérgio Veloso e Vinícius Santiago.

Artigo publicado originalmente em 9 de Julho de 2018 em: https://br.boell.org/pt-br/2018/07/09/mobilidade-urbana-e-o-impacto-da-violencia-na-vida-das-favelas-no-rio-de-janeiro-0

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Retórica de guerra

A cidade do Rio de Janeiro apresenta uma singularidade em relação a outras grandes cidades brasileiras: está mergulhada em uma retórica política que gira em torno do discurso de que o Rio é uma cidade em guerra, promovida e alimentada por discursos oficiais de autoridades, pela mídia e pela sociedade. Essa tecnologia de poder catalisa um imaginário de uma cidade dividida entre aqueles que são a causa do problema da violência e aqueles que são as suas vítimas. 

O imaginário e retórica de uma cidade dividida não vem de hoje. O Rio de Janeiro é uma cidade cravada por vários morros sobre os quais se formaram, na passagem do século XIX para o XX, grandes aglomerados habitacionais. No início do século XX, as regiões centrais da cidade foram varridas por processos de higienização e boa parte das populações pobres e, fundamentalmente, negras, foram removidas e deslocadas para morros mais afastados, localizados na periferia da cidade. Antes, em seu passado colonial e imperial, o Rio de Janeiro caracterizava-se como um dos maiores portos escravagistas do mundo, importando e exportando um contingente de negros que trabalhavam como mão de obra gratuita para empreitadas em toda colônia e depois império.

Desde sua fundação, a cidade do Rio de Janeiro localiza e distribui a cidadania de acordo com discursos éticos e políticos que segregam o espaço urbano em termos daqueles que devem ser defendidos, protegidos e privilegiados e aqueles que devem ser contidos, removidos e precarizados. De certa forma, o imaginário da guerra, que produz a segregação entre inimigos e aliados, assombra a cidade desde seus primórdios, categorizando e distribuindo formas distintas de cidadania.

O mapa da cidade do Rio de Janeiro pode ser compreendido como um tipo de geografia moral que localiza aquelas vidas que devem ser protegidas mesmo que, para isso, outras vidas sejam destruídas. Esse imaginário político alimentado pelo repertório discursivo da segurança não com o outro, mas apesar do outro estabelece uma clivagem na sociedade carioca entre aqueles cujas vidas são matáveis e aqueles cujas vidas são vivíveis. As práticas de militarização dos espaços de favelas, bem como as inúmeras invasões de casas de moradores para ocupação de policiais militares em regiões de intenso conflito com o tráfico são alguns dos efeitos perversos que esse imaginário discursivo produz na cidade. 

Efeitos da retórica de guerra

Desde a década dos anos 1990, o Rio de Janeiro vem experimentando os efeitos mais trágicos dessa tecnologia de poder, ou seja, é a estratégia da militarização como forma de enfrentamento da violência, ou mais precisamente, de enfrentamento daqueles que são tidos como causas da violência e da proteção dos que são entendidos como vítimas. O imaginário de uma cidade em guerra é reforçado pela presença ostensiva de soldados pelas ruas e vias, pois não se faz uma guerra sem soldados. Da mesma forma, o imaginário da guerra se fortalece ainda mais com a retórica e simbolismo da ocupação territorial. 

Em um passado recente, as forças da Unidade de Polícia Pacificadora – UPP, força policial desenhada especificamente para atuar e construir bases dentro dos espaços de favelas da cidade, encenavam o hasteamento das bandeiras do Brasil e do estado do Rio de Janeiro enquanto telejornais em cobertura ao vivo narravam aquele momento como a recaptura daquele território pelo Estado brasileiro, recuperando a formalidade e monopólio do poder nas mãos do poder público. 

Um estudo recente feito em parceria com a Fundação Heinrich Böll  revela os efeitos da violência urbana, intensificados pela ostensiva militarização da vida nas favelas, que impactam de modo contundente e imediato o modo como o morador de favela acessa a cidade que habita. Em fevereiro de 2017, o contexto de violência da comunidade do Complexo do Alemão se agravou com a invasão e ocupação de algumas casas de moradores por parte da polícia militar da UPP da favela de Nova Brasília. Algumas residências de moradores foram ocupadas com o fim de serem usadas como posto estratégico de observação dos traficantes e que, segundo os policiais, tais casas estariam vazias. Entretanto, segundo denúncias de moradores, as casas não estavam vazias e os moradores estavam sendo expulsos pela polícia. 

A partir do início de fevereiro daquele ano, o Complexo do Alemão passou, então, a viver dias de extrema violência nos quais um dos direitos mais básicos do cidadão, o direito à moradia, foi totalmente violado pelas mesmas instituições do Estado que deveriam garanti-lo. Segundo dados levantados pelo Coletivo Papo Reto, foi elaborado um calendário mensal dos tiros ouvidos pela população do Complexo do Alemão que revela uma estatística assustadora: em 73,79% dos dias do ano de 2017, algum morador ouviu tiro no Complexo do Alemão.

Mobilidade Urbana: Direito à cidade e à vida

Em meados de 2011, depois de uma longa obra que custou 210 milhões de reais (cerca de 60 milhões de euros) aos cofres públicos, foi inaugurado o teleférico do Alemão. O teleférico foi uma das obras que se integrava ao discurso da cidade com inclusão, segura para a população e visitantes dos megaeventos que ocorreriam na cidade. 

Assim como boa parte das favelas da cidade do Rio de Janeiro, o Complexo do Alemão é uma região de muitos morros, o que torna a mobilidade dentro do complexo muito difícil. O teleférico fora vendido como um equipamento que resolveria esse problema, pois ligaria pontos de alguns dos morros, possibilitando um rápido deslocamento da população, que não precisaria se esgueirar por subidas íngremes. 

Desde meados de 2016, todavia, o teleférico está inoperante e não há previsão de retorno das operações. Se comparado com os números dos tiroteios relatados pelo Coletivo Papo Reto, nos quais 73,79% dos dias foram servidos por tiroteios, o mesmo não pode ser dito do teleférico, que funcionou por exatamente 0% dos dias. Um equipamento caro e que poderia facilitar o cotidiano de milhares de pessoas, simplesmente foi abandonado ao mesmo tempo em que o estado intensificava sua presença policial. Esse contraste entre a falência de uma política de mobilidade urbana e a intensificação de uma política pautada no imaginário da guerra é emblemático de como o poder público vê as favelas: simplesmente como fronte de batalha.

Esse contraste se concretiza na vida do morador de favela de modo perverso e brutal, na medida em que seus direitos mais básicos são violados pelas mesmas instituições públicas que deveriam garanti-los. Em tempos de violência como o que a cidade do Rio de Janeiro tem vivido, a distribuição desigual da cidadania no espaço geográfico da cidade revela também o endereçamento desigual da violência na população. Em contextos de intenso conflito armado, protagonizados por forças antagônicas, porém intrinsecamente conectadas como acontece nas favelas cariocas, o cotidiano dos moradores sofre os impactos da suspensão não só do estado de normalidade, mas, sobretudo, da suspensão de seus direitos. 

Se pensarmos a mobilidade urbana como condição de possibilidade para a vida em comunidades políticas, os enfrentamentos de moradores de favela aos desafios impostos pela violência cotidiana os impede sequer de terem suas vidas reconhecidas politicamente como vidas que, como qualquer outra, vai à escola, ao trabalho, vidas que, enfim, desfrutam e vivenciam os espaços da cidade. A violência que é direcionada aos espaços de favela mais do que afetar a mobilidade urbana e, consequentemente, o acesso à cidade, coloca em risco um bem maior: a própria vida. Em 2017, 1124 pessoas foram assassinadas pelas polícias do estado do Rio de Janeiro, segundo dados oficiais do Instituto de Segurança Pública. Em média, uma pessoa é assassinada pela polícia a cada 8 horas, no Rio de Janeiro.

Um cenário catastrófico

O estado do Rio de Janeiro, desde 2015, vem sofrendo uma de suas piores crises políticas e financeiras causada pela queda na arrecadação e por incontáveis casos de corrupção e desvio de verbas dos governos anteriores e também do atual. Milhares de funcionários públicos não estão sendo pagos e a Universidade Estadual do Rio de Janeiro vem sofrendo um grande processo de sucateamento e desmonte. As forças policiais, não tem liderança efetiva e são catalisadas como braço armado de uma sociedade que aposta sistematicamente na produção e manutenção das desigualdades. Além de não desempenharem suas atribuições constitucionais de proteção de todos cidadãos, elas estão sendo alvejadas na medida em que também alvejam. A falência é total, a crise é desmedida e as consequências devastadoras, principalmente para moradores de favelas.

Diante desse quadro calamitoso, o Presidente Michel Temer decretou, em fevereiro de 2018, uma intervenção no estado do Rio de Janeiro. Todo o aparato de segurança pública do Rio de Janeiro está, até o fim de 2018, sob comando de um general do exército brasileiro. A militarização finalmente se consolida como política federal, limando qualquer possibilidade de políticas que abordem segurança pública como segurança pública cidadã e não como tática de guerra. Não é, todavia, a primeira vez que o Rio sofre intervenção militar. 

Em 2014, na Copa do Mundo, o Exército também foi chamado para ocupar a Favela da Maré ao custo de R$ 600 milhões (cerca de 171 milhões de euros) durante 15 meses e assim, garantiu o deslocamento de visitantes que desembarcavam no aeroporto internacional local e reforçava a ideia de segurança na cidade. Mas foi em 1994, a chamada Operação Rio que transferiu, de modo muito similar ao que está acontecendo nesse momento, a segurança do estado para o Comando Militar do Leste, exatamente o mesmo que assume o estado em 2018. Assim como em 1994, o que se pode esperar dessa intervenção é mais desigualdade, mais violação de direitos e, fundamentalmente, a manutenção da geografia política carioca, na qual cidadania é distribuída de acordo com raça e endereço. Como é possível ter qualquer direito à cidade diante de um cenário catastrófico como este?

Referência bibliográfica

LEITE, Márcia Pereira. Da “metáfora da guerra” ao projeto de “pacificação”: favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 6, n. 2, 374-389, ago/set 2012. 

SHAPIRO, M. Violent cartographies: mapping cultures of war. Minneapolis: Universityof Minnesota Press, 1997. 

VALLADARES, Lícia do Prado. A invenção da favela - Do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 2005. 

VELOSO, Sérgio; SANTIAGO, Vinícius. Ninguém Entra, Ninguém Sai: Mobilidade urbana e direito à cidade no Complexo do Alemão. Rio de Janeiro: FundaçãoHeinrich Böll, 2017. Disponível emhttp://br.boell.org/pt-br/2017/11/07/ninguem- entra-ninguem-sai- mobilidade-urbana- e-direito- cidade-no- complexo-do- alemao.