Mudança e resistência - Experiências de moradores de favelas no Rio de Janeiro (artigo)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 12h14min de 1 de junho de 2020 por Clara (discussão | contribs)

Autora: Caterine Reginensi.

Artigo retirado originalmente de: Revista Geografares.

Introdução

A metrópole do Rio de Janeiro é testemunha privilegiada de importantes mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais que marcaram as últimas décadas. Delineou-se uma organização sutil dos espaços, indicando complexos mecanismos de troca atrelados à fragmentação das áreas de atividades econômicas e culturais na cidade.

Com a candidatura vitoriosa do Rio de Janeiro a sede da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, a metrópole tornou-se objeto de diferentes intervenções. Especial cuidado foi tomado com a segurança, com a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora em favelas. No intuito de retirar focos de criminalidade ainda está sendo implementado, nos espaços públicos, o Programa Choque de Ordem, visando remover vendedores ambulantes, barraqueiros da praia, mendigos, moradores de rua. 

A cidade do Rio de Janeiro está se tornando um laboratório de intervenções urbanísticas nos últimos anos, tendo como perspectiva temporal a efemeridade dos grandes eventos internacionais. A monumentalidade das intervenções responde à necessidade de transformar a própria cidade em produto a ser vendido para atrair investimentos internacionais.

Nesse contexto, desenvolvemos diferentes pesquisas1 com abordagem etnográfica, para a maior parte (REGINENSI, 2012, REGINENSI e BAUTÈS, 2013). Os lugares escolhidos foram à praia de Copacabana, a floresta da Tijuca (Vale Encantado) e o Morro da Providência, na zona portuária. O partido adotado, ao longo do tempo, foi o de pensar esse contexto a partir da “cidade ordinária” (ROBINSON, 2006: p. 1). Assim, pensar a cidade de forma ordinária permitiria propor novos modelos urbanos que não estejam limitados aos modelos apregoados por algumas poucas cidades do mundo. No mundo das cidades ordinárias, de acordo com Robinson, modelos únicos não existem. As cidades são diversas e são produtos, em uma perspectiva histórica, da criatividade de seus cidadãos. 

A autora alerta para o perigo inerente à hierarquização das cidades, que as classifica por grau de desenvolvimento alcançado. Se a proposta de Robinson se refere de maneira específica às diferentes categorias de cidades e remete a uma leitura pós-colonial dos estudos urbanos, o 
olhar que ela coloca sobre o urbanismo ajusta-se plenamente à questão que nos interessa aqui, na medida em que atende a exigência de uma análise do fenômeno urbano pautada pela complexidade e a diversidade da vida urbana. 

Este olhar nos convida a seguir os itinerários criativos dos habitantes das cidades em suas práticas sociais de apropriação e produção da cidade. Isso nos permite também procurar maneiras diferentes de analisar a dinâmica urbana, demonstrando assim tratamentos inéditos das especificidades destes espaços, e acolhendo-os, sobretudo, como elementos singulares em vez de qualificá-los depreciativamente como elementos ilegais, marginais ou insustentáveis. 

É necessário reconhecer estas diferenças antes como diversidades que como elementos justificando uma divisão hierárquica das cidades. Tal lógica, no contexto do estudo dos projetos e das práticas de desenvolvimento urbano, sugere a necessidade de se colocar a reflexão urbanística não em uma perspectiva desenvolvimentista, mas numa perspectiva principalmente atenta à dimensão cultural dos processos econômicos. Este interesse nos leva a considerar a maneira como modos de vida urbanos distintos tornam-se interessantes estratégias de ação que permitem reconhecer as capacidades criativas dos indivíduos. Do ponto de vista dos agentes públicos, responsáveis pela definição das políticas urbanas, considerar as cidades como lugares vitais e dinâmicos, onde os cidadãos modelam futuros criativos e autônomos oferece maior possibilidade para se implementarem intervenções efetivamente criadoras para atender as necessidades locais.  

O presente artigo propõe uma discussão que trata das emoções (medo, raiva, vergonha, ódio, amor, indignação, sentimento de injustiça) expressadas pelos entrevistados ao longo das pesquisas; algumas considerações finais realçarão o caráter social e público das emoções.

Pretendemos abrir uma discussão sobre o papel das emoções nos processos de mudança e de resistência. A partir das primeiras reflexões e dos casos em análise, é uma orientação para o debate e um posicionamento de pesquisa. 

Remoção na comunidade do Vale Encantado

O Vale Encantado está encravado no Alto da Boa Vista, um bairro com nove favelas, dentre elas: Mata Machado, Tijuaçu, Agrícola, Furnas, Biquinhas, Ricardinho, Redentor Violão e o Vale Encantado, que se subdivide em: Santo André, Campo João Lagoa, Açude da Solidão e Soberbo. Vale Encantado originou-se de um projeto urbanístico do final da década de 60, que pretendia construir um grande condomínio de prédios – O Enchanted Valley. Apenas um prédio e o clube foram construídos.

Ao percorrer o lugar, observando o dia-a-dia, a minha intenção era interrogar a memória como elemento relevante da construção coletiva do presente das famílias no local e continuar o debate iniciado na praia sobre as fronteiras indefinidas entre o formal e o informal. Foi escolhida a experiência dos moradores do Vale para relativizar a imagem negativa da favela4 carioca associada à violência do tráfico de drogas ou aos danos ambientais e mostrar que os moradores escrevem outra história, que inclui preservação ambiental e geração de renda. O informante principal, no início da pesquisa era o Otávio, dirigente da cooperativa COOVE, indicado pela ONG franco brasileira Abaquar.

De fato, foi esse resgate da memória, intenção do pesquisador, que gerou emoções no Vale, no contexto da remoção, quando os moradores estavam envolvidos no processo de regularização fundiária.

Evidenciou-se de imediato certo constrangimento ao falar da vida no passado e no presente. Comecei o trabalho de campo entrevistando os moradores mais antigos do local, e depois pensei em organizar oficinas de memória, pedindo aos moradores para contarem histórias e, quando pudessem, para levarem fotos da vida na comunidade. Percebi que o local era composto por famílias - “todo mundo se conhece”, foi a frase chave recolhida.

Dessa forma, não resultou tão fácil organizar as reuniões coletivas com os membros dessas famílias.

Finalmente, as emoções surgiram através de outras maneiras de trabalhar no campo: a realização de oficinas com crianças, a construção de um mapa da memória, e a organização de um seminário de devolução da pesquisa. Entre esses diversos tempos da pesquisa, foram importantes os contatos, a participação em diversas reuniões do Conselho da Cidadania dos moradores do Alto da Boa Vista (o CONCA), e as entrevistas com atores periféricos6 . Esse Conselho tem um papel de grande importância: reúne- -se de forma regular e sistemática todas as quintas-feiras: depois, suas decisões são votadas em Assembleias Gerais, dando legitimidade àquele grupo das quintas- -feiras. Nessas reuniões são analisados os problemas do dia-a-dia. O seu presidente (in memoriam, entrevista de 17 de abril de 2010) apresentou o CONCA como um foro permanente de moradores que quer se manter informal, para o poder público não ter como processar:

Os moradores de comunidades do Parque Nacional também têm direito, da área em torno do Parque, têm direito de participar (...) nós fomos pela insistência... e o diretor do Parque Nacional... indicou o CONCA pra ser Secretário Geral do Conselho. Então isso são conquistas... conquistas da insistência...remoção é crime social!

Participantes do Seminário Outro Rio, no Vale Encantado, a barraqueira Mamá, distribuição do mapa da memória,©CReginensi,.png

Depois desses contatos e da primeira oficina com crianças de 6 a 12 anos, chamada “Eu, moro aqui!”, as entrevistas com os moradores suscitaram, às vezes, emoções (só tristeza, expressaram alguns) e constrangimento ao falar dos momentos à espera de ser removidos (medo, muito medo, mas não quero te falar disso).

Foi na parte devolutiva da pesquisa, no seminário Outro Rio, em agosto de 2010, que as emoções se expressaram melhor. Ao longo de todo o seminário, a restituição procurou recriar a pluralidade das vozes que se expressaram na praia e na floresta. Inclusive a barraqueira Mamá participou um dia inteiro, no Vale Encantado.

A distribuição do mapa da memória encerrou um passeio com o responsável da cooperativa, exatamente antes do almoço.

Uma maneira de colocar em situação o grupo que tinha um conhecimento parcial do Vale, a partir da apresentação da pesquisa. A caminhada, o almoço preparado pelos membros da cooperativa, que nos fizeram descobrir sabores desconhecidos e refinados, bem como a oficina da tarde, com duas exibições (vídeo da etnografia e vídeo do dispositivo na praia) criaram um espaço/tempo de expressão de sentimentos de medo, de raiva, de indignação, de injustiça. A barraqueira provocou esse momento, quando explicou como, nesse período de implementação do Choque de Ordem, se sentiu, algumas vezes, excluída da praia onde trabalhava havia mais de 10 anos. A partir dessa intervenção, vários moradores do Vale se expressaram sobre as situações de medo repetidas pelas quais passaram na espera de serem removidos; falaram das noites sem dormir, prestando atenção ao barulho de carros que pudessem chegar na madrugada e levá-los para outro lugar.

Em outubro de 2010, os moradores receberam a notícia de que entravam no processo de regularização. A mobilização parecia ser uma solução apesar da demora do processo e de anos de medo. Os moradores do Vale Encantado estavam para receber o título de posse (final de março de 2015), mas ao mesmo tempo uma notícia assustadora se espalhou nas redes sociais como o Facebook: os moradores do Vale Encantado estão ameaçados de remoção devido a uma ação da Promotoria de Justiça de Meio Ambiente! Novamente o medo e o sentimento de perder a paz podem voltar.

Percursos e travessias no Morro da Providência

Observamos como princípio comum a análise dos jogos dos atores envolvidos na esfera local, os recursos intelectuais, financeiros e materiais mobilizados por eles, além dos vetores de legitimação que emergem de níveis e escalas diferentes a partir das suas atuações. A pesquisa no Morro tinha como objetivo analisar as transformações urbanas promovidas pelo programa municipal Favela Bairro. Já nos primeiros momentos, quando aplicamos questionários, descobrimos que o local chamado Pedra Lisa era considerado área de risco, mas seus moradores não tinham sido contemplados pelo programa. Completamos esse material com entrevistas e passeios no Morro. O nosso informante, explicou e realçou a chegada do medo nesta parte do Morro:

(..) Em 1968 houve um deslizamento que soterrou mais de 50 pessoas, a atividade de extração de pedra foi proibida pelas autoridades e partes do Morro foram classificadas como áreas de alto risco, com recomendação formal de remanejar as moradias mais precárias. Em 1975, um segundo deslizamento ocorreu e causou a erradicação das casas localizadas perto da Praça Américo Brum. O fantasma da remoção torna-se cada vez mais presente no território do Morro e cria um clima de insegurança e medo entre os moradores (...) (Mauricio, entrevista, Setembro de 2006).

Casas do projeto Cimento social, chamadas “casas do Crivella”©CReginensi,.png

Quatro anos depois da pesquisa, em 26 de abril de 2010, o Morro da Providência recebeu uma Unidade de Polícia Pacificadora. Com isso, a situação de transformação urbanística torna-se mais complexa já que insere o projeto urbano numa política de segurança que vai ser rapidamente objeto de críticas (MACHADO, 2010).

Acompanhei, em abril de 2012, duas alunas francesas (Master em arquitetura), e realizei algumas entrevistas de moradores, em volta da Praça da capela das almas e nas casas recém-construídas, na Gamboa. Alí, as casas do projeto Cimento social foram um cenário de emoções. Três mulheres, mães de meninos mortos durante uma operação da polícia, receberam uma casa do Projeto Cimento social9 . As mulheres eram vizinhas antes de ir morar nas ”casas do Crivella”. Uma, nascida e criada no Morro, morava de aluguel, as outras originárias do Nordeste, moravam havia mais de 30 anos no Morro e tinham comprado a casa. Nas entrevistas, realizadas em 2012, se negaram a falar do que aconteceu com os filhos, nas falas das mulheres, mães destacam-se essas expressões: coisa errada, tragédia, uma dor que nunca acaba...

Com a ajuda dos outros filhos, cada uma tentava organizar a vida na nova casa e no bairro da Gamboa. Uma contou que ia visitar regularmente seus antigos vizinhos e amigos que, na hora de se despedir, diziam: “volta para tua rua!”, falando da nova casa. E a mulher acrescentou: Nunca eles descem e fico triste, mas não desisto de subir...

Casas marcadas, Morro da Providência,©CReginensi.png

A Praça da capela foi escolhida como campo de estudo em substituição a outro espaço, a Praça Américo Brum que, quando chegamos ao Rio, tinha sido demolida para a obra do teleférico. Ao visitar o Morro, chegando nessa praça que se tornou um canteiro de obras, recolhemos vários depoimentos que expressavam emoções de raiva, medo e profunda injustiça.

Uma moradora contou que a Secretaria Municipal de Habitação ofereceu essa alternativa: aluguel social ou um apartamento de dimensões inferiores ao dela, situado em lugar distante do Morro da Providência (Campo Grande) e comentou que ficou indignada e com muita raiva.

Logo depois, realizando entrevistas na Praça da capela, essas mesmas emoções estiveram presentes na fala dos moradores que costumavam frequentar a praça demolida, e também estavam com medo do que iria acontecer com eles; já que a maioria das casas no entorno estavam marcadas com a sigla SMH + um número, indicando que os moradores seriam removidos: Para onde? Quando vai acontecer? Ficamos com medo... foram as frases recolhidas e ao mesmo tempo, os moradores acrescentavam que nunca foram informados pela Secretaria Municipal de Habitação e que descobriram as marcas, abrindo a janela e a porta da casa ou voltando do trabalho no final da tarde. Outros disseram que ficaram chocados e indignados. O desrespeito total para com os moradores e a falta de transparência e participação chamam a atenção, cada vez mais, na cidade maravilhosa. De fato, o contexto das Olimpíadas de 2106 embasa um projeto de modernização pré-Jogos justificando remoções. Raquel Rolnik, introduzindo o livro de Lucas Faulhaber e Lena Azevedo (2016, p.11), sublinha que o processo de desapropriações e de remoções está baseado numa “lógica de desconstrução de direito e de abertura de uma área da cidade com nova fronteira de expansão do mercado imobiliário”.

Uma nova configuração do jogo de atores torna mais complexa o universo das favelas e dificulta não apenas o cotidiano dos moradores, mas também a possiblidade de pesquisar. No Morro da Providência, depois da implantação da UPP, ficou mais fácil entrar e sair do Morro, mas ao mesmo tempo, surgiram fortes tensões impossibilitando o trabalho de campo baseado em entrevistas. Mas, além de situações de forte tensão, deve ser ressaltada a atratividade da favela como campo de investigação para acadêmicos brasileiros e estrangeiros, ONGs nacionais e locais, artistas e jornalistas. Isso cria, no Morro, um clima de desconfiança e de medo que vem aumentando. Por isso, Nicolas Bautès, geógrafo, na sua última pesquisa como visitante10 decidiu voltar para o Morro, praticando apenas observações, entrando pelos diferentes acessos que os moradores tinham indicado e resgatando informalmente alguns depoimentos e emoções. A pesquisa de Nicolas Bautès tratava de analisar os jogos de poder e a política no morro. Ao longo dos trabalhos, o pesquisador enfrentou dificuldades não apenas para encontrar seu lugar em uma arena política marcada por tensões, mas também para chegar a uma análise e para restituir os resultados. A política deve ser entendida em referência ao filósofo Jacques Rancière (2003), para quem ela é o ponto de encontro, a confluência, onde se juntam dois processos heterogêneos: o processo que poderia ser chamado de “governo” e o processo de emancipação que é a “política”.

Referências Bibliográficas

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