Mulheres da periferia contra a Carestia

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Texto reproduzido do artigo "Como a mobilização das mulheres contra a carestia desmoralizou os militares" de Pablo Pamplona publicado na Revista Jacobin. Encontre o original clicando aqui.

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Como comenta Amelinha Teles, militante do PCB que atuava no MCV e nos Clubes de Mães, esse foi “o movimento que abriu as portas para a mobilização democrático-popular no país”.

Introdução

Neste dia, em 1978, o Movimento do Custo de Vida foi a Brasília para entregar um abaixo-assinado com 1,3 milhão de signatários após realizarem a maior mobilização popular no país desde o final da década de 60. Hoje, 43 anos depois, enfrentamos mais uma vez o problema da carestia, com o preço de uma cesta básica valendo o mesmo que um salário mínimo.

Em 27 de agosto de 1978, o centro de São Paulo foi ocupado por mais de 20 mil pessoas em um protesto contra a carestia. A manifestação, concentrada na Praça da Sé, foi uma assembleia pública convocada pelo Movimento do Custo de Vida (MCV) para apresentar as demandas do movimento, resultado massivo de sua campanha de coleta de assinaturas. Em um ano, o movimento havia levantado um abaixo-assinado com mais de 1,3 milhão de signatários. A carta apresentava três demandas: o congelamento dos preços de produtos de necessidade básica, o aumento do salário mínimo e abono salarial imediato, e sem desconto, para todas as categorias profissionais.

O ponto de partida era um problema tão simples quanto imediato: o problema da “panela vazia”. Com o prolongamento da crise econômica, a população enfrentava o descontrole sobre os preços dos alimentos e de outros produtos de necessidade básica. Como diziam os panfletos do movimento, fazendo graça com as imagens de “progresso” vendidas pelo governo militar, parecia que os preços dos alimentos subiam de elevador, enquanto o salário dos trabalhadores subia pelas escadas.

Duas semanas depois da manifestação na Praça da Sé, em 12 de setembro, há exatos 43 anos, o MCV enviou sua comissão até Brasília para entregar o abaixo-assinado pessoalmente ao “presidente” Ernesto Geisel. Foram 21 pessoas com 21 pacotes de folhas, cada um deles pesando 7 quilos. Geisel, é claro, não recebeu o movimento, mas preparou “uma das maiores operações de segurança já vistas na entrada do Palácio do Planalto”, segundo notícia da Folha de São Paulo. A comissão recusou uma promessa de reunião com um assessor da presidência no dia seguinte, entregou as assinaturas ao Serviço de Protocolo do Palácio e não permitiu que os soldados tocassem nos pacotes antes de serem protocolados. Ainda, de despedida, num gesto de desobediência, estenderam a faixa do movimento na rampa do Palácio para uma foto de registro.

O MCV nasceu em 1973 nos Clubes de Mães do Jardim Ângela, uma das regiões mais pobres da cidade. Até 1979 seria um movimento protagonizado, sobretudo, por mulheres trabalhadoras das periferias urbanas. Então se espalhou rapidamente, primeiro pelo cinturão periférico de São Paulo e, depois, em outras cidades por todo o país, o que só foi possível graças a um extenso trabalho de base e de articulação.

O ato de 78 foi, à época, a maior mobilização popular no país desde o final da década de 60. As grandes greves do ABC, dos operários metalúrgicos em São Paulo, começariam poucos meses depois, em boa medida sob influência e inspiração da iniciativa dessas mulheres. A manifestação de 27 de agosto significou um marco para a abertura política do país, e contribuiu de forma decisiva para o desgaste do regime militar. Como comenta Amelinha Teles, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que atuava no MCV e nos Clubes de Mães, esse foi “o movimento que abriu as portas para a mobilização democrático-popular no país”.

Hoje, 43 anos depois, enfrentamos mais uma vez o problema da carestia. O país tem 14,8 milhões de pessoas desempregadas, 19,3 milhões de pessoas passando fome, e o preço de uma cesta básica é quase o mesmo de um salário mínimo. A história desse movimento, contada em detalhes na pesquisa do historiador Thiago Monteiro, oferece lições importantes sobre como a classe trabalhadora pode se organizar para enfrentar o problema, além de jogar luz sobre o importante papel dos setores populares, em particular das mulheres periféricas, para derrubar a ditadura militar.

As raízes de um movimento

Os Clubes de Mães, de onde nasceu o movimento, eram espaços organizados em torno das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Neles, as mulheres das comunidades se reuniam para realizar oficinas de trabalho para geração de renda (de costura, crochê etc.), para participar de formações em temas como saúde e sexualidade, e para discutir os problemas de seus bairros.

Com o apoio de setores progressistas da Igreja católica, as CEBs se converteram em um espaço crucial para a atuação política do povo pobre durante a ditadura. Incontáveis movimentos nasceram dessas comunidades, reivindicando creches, escolas, moradia, água potável, transporte público, postos de saúde, pavimentação e outras demandas populares. O papel das mulheres aí foi central.

Ao longo da década de 70, as CEBs e os Clubes de Mães expandiram suas ações para além de demandas locais. A região do Jardim Ângela, onde nasceu o MCV, contava com pelo menos 17 CEBs, que se encontravam em assembleias mensais. Nesses espaços de articulação, recebiam formação política, com apoio de outros setores da esquerda, e discutiam tanto os desafios de cada localidade como a convergência mais ampla desses desafios. Desse processo de elevação da consciência, sentiu-se a necessidade também de planejar ações coordenadas em escalas maiores, de forma que o trabalho local acumulasse forças para um projeto amplo e estrutural de transformação, cujo caráter socialista ia ficando cada vez mais evidente. Nesse sentido, o enfrentamento ao regime ditatorial comandado pelos militares tornava-se incontornável.

A percepção da natureza estrutural dos problemas locais colocava também na pauta a necessidade de conexões com comunidades de outras periferias, assim como com as lutas sindicais e estudantis. A articulação entre essas lutas se revelou crucial para o crescimento do MCV. Foi o conjunto dessas experiências que forneceu um acúmulo de conhecimento, coletivamente absorvido e mobilizado, sobre formas de organização popular, em particular a organização de movimentos sociais, e sobre táticas e estratégias de luta em um contexto de repressão e perseguição política.

As lutas ligadas às CEBs puderam crescer nesse contexto, em grande parte, pela proteção da Igreja, mas também como fruto da mobilização constante nos bairros, com realização de atividades dos mais diversos tipos na vida comunitária. Além das suas reuniões e formações, organizavam mutirões, festas, celebrações religiosas com conteúdo político, cineclubes, peças teatrais, ofereciam serviços como o de enfermagem, cursos de alfabetização, assim como ações de agitação e propaganda. Vanda Gama, uma militante das CEBs do Jardim Ângela (na época do MCV, ainda uma adolescente), chegou a relatar: “Eu não lembro de um dia que eu tivesse o dia sem ter o que fazer. Naquela época, a gente tinha sempre o que fazer”.

Essa mobilização constante, enraizada no território, formou a base do que viria a ser o MCV. Se em 1978 o movimento conseguiu coletar 1,3 milhão de assinaturas, isso só foi possível graças à formação dessa teia de alianças e acúmulo de aprendizado coletivo dos anos anteriores, combinando trabalho de base local e a articulação coordenada entre diversas comunidades.

O movimento em ação Aação que inaugurou o movimento em 1973 foi uma pesquisa sobre o aumento de preços. A ideia partiu do Clube de Mães do Jardim Nakamura, no Jardim Ângela, e foi adotada por outros Clubes da região. Identificaram uma média de aumento de 120% nos preços no período de um ano, enquanto o salário mínimo só tinha aumentado 16%. Perceberam também que o aumento nos preços era maior na periferia do que no centro da cidade: enquanto o preço do feijão aumentou 191% na periferia, por exemplo, ele subiu 55% nas regiões centrais.

As informações recolhidas foram redigidas em uma carta destinada às autoridades políticas, de vereadores à presidência, assinada como “Mães da periferia de São Paulo”, na qual pediam uma resolução para a carestia da vida e reivindicavam o aumento do salário mínimo. Foi a primeira de uma série de cartas e abaixo-assinados enviados para as autoridades – mas as ações do movimento foram muito além da redação de cartas.