Necropolítica e o adoecimento das favelas: mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
(Criou página com '  <meta charset="utf-8"></meta> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify">Autor: Laio_Victor_Tavares</p> = <span style="line-height:150%"><span style="ver...')
 
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&nbsp; <meta charset="utf-8"></meta> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify">Autor: [[Laio_Victor_Tavares]]</p>
 
= <span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="line-height: 150%;">A A saúde pública e as favelas como território de exclusão</span></span></span> =
Autor: [[Laio_Victor_Tavares|Laio_Victor_Tavares]]
<p style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:" times="" new="" roman",serif"=""><span style="color:#434343">As favelas constituem espaços marcados por elevados níveis de vulnerabilidade social e submetidos a constante violência e à desassistência estatal. A origem da ocupação de muitos dos morros e comunidades periféricas do Rio de Janeiro, remonta à implantação das políticas higienistas da Reforma Passos [8] no início do séc. XIX, na qual visando adequar a recém fundada república brasileira aos padrões europeus, expulsou-se os negros das regiões centrais da cidade. Somada a exclusão espacial, o processo de exclusão da vida política e da cidadania dos povos negros, segundo o sociólogo Clóvis Moura [3], teve início antes mesmo da abolição legal da escravidão em 1888, que alçaria uma imensa massa de ex-escravizados à indesejada posição de cidadãos livres. Como exemplo temos a Lei de Terras em 1850,&nbsp; quando o Império tornou as terras brasileiras mercadoria — até então, eram concessão estatal— e incentivou que fossem ocupadas por colonos livres descendentes das raças consideradas civilizadas da Europa, já antevendo a abolição da escravidão. De acordo com Moura, se a posse e o trabalho na terra eram fundamentais para a inclusão dos sujeitos na nova lógica capitalista que emergia, era preciso apartar os negros deste processo a todo custo. Seguiram-se a isso medidas de exclusão que se valiam das mais variadas justificativas, como a criminalização do samba e da capoeira, sob a justificativa da vadiagem, amparada pelas teses eugenistas da criminologia européia lombrosiana [16] e os despejos de Pereira Passos e posteriormente de Getúlio Vargas, justificados pelas medidas de saúde pública que viam nas comunidades negras apenas depósitos das mais variadas doenças [8].</span></span></span></span></span></span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:" times="" new="" roman",serif"=""><span style="color:#434343">Em pesquisa do IPEA [11] de 2008, constatou-se que a cobertura do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil abrangia 76% da população autodeclarada negra, ao passo que apenas 54% dos brancos eram dependentes do sistema público. Um estudo publicado em 2019 [9] avaliando os efeitos da recessão econômica e das políticas de austeridade a partir de 2012 no Brasil, evidenciou impacto significativo do subfinanciamento do SUS sobre a mortalidade geral da população negra, bem como sobre os índices de desemprego gerando uma maior dificuldade de acesso a medicamentos e maior exposição a atividades trabalhistas de risco.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:" times="" new="" roman",serif"=""><span style="color:#434343">Simultaneamente ao desmonte progressivo do serviço público de saúde, observamos um avanço quase proporcional do sistema de saúde privado, que cresce com incentivos estatais e aparta do direito à saúde uma parcela importante da população que não pode pagar por esses serviços. Percebemos então a desassistência como mecanismo de extermínio de grupos específicos da sociedade e como parte do avanço das políticas neoliberais.</span></span></span></span></span></span></p>  
 
= <span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="line-height: 150%;">A saúde pública e as favelas como território de exclusão</span></span></span> =
<p style="margin-bottom: 0.0001pt; text-align: justify;"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:"><span style="color:#434343">As favelas constituem espaços marcados por elevados níveis de vulnerabilidade social e submetidos a constante violência e à desassistência estatal. A origem da ocupação de muitos dos morros e comunidades periféricas do Rio de Janeiro, remonta à implantação das políticas higienistas da Reforma Passos [8] no início do séc. XIX, na qual visando adequar a recém fundada república brasileira aos padrões europeus, expulsou-se os negros das regiões centrais da cidade. Somada a exclusão espacial, o processo de exclusão da vida política e da cidadania dos povos negros, segundo o sociólogo Clóvis Moura [3], teve início antes mesmo da abolição legal da escravidão em 1888, que alçaria uma imensa massa de ex-escravizados à indesejada posição de cidadãos livres. Como exemplo temos a Lei de Terras em 1850,&nbsp; quando o Império tornou as terras brasileiras mercadoria — até então, eram concessão estatal— e incentivou que fossem ocupadas por colonos livres descendentes das raças consideradas civilizadas da Europa, já antevendo a abolição da escravidão. De acordo com Moura, se a posse e o trabalho na terra eram fundamentais para a inclusão dos sujeitos na nova lógica capitalista que emergia, era preciso apartar os negros deste processo a todo custo. Seguiram-se a isso medidas de exclusão que se valiam das mais variadas justificativas, como a criminalização do samba e da capoeira, sob a justificativa da vadiagem, amparada pelas teses eugenistas da criminologia européia lombrosiana [16] e os despejos de Pereira Passos e posteriormente de Getúlio Vargas, justificados pelas medidas de saúde pública que viam nas comunidades negras apenas depósitos das mais variadas doenças [8].</span></span></span></span></span></span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:"><span style="color:#434343">Em pesquisa do IPEA [11] de 2008, constatou-se que a cobertura do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil abrangia 76% da população autodeclarada negra, ao passo que apenas 54% dos brancos eram dependentes do sistema público. Um estudo publicado em 2019 [9] avaliando os efeitos da recessão econômica e das políticas de austeridade a partir de 2012 no Brasil, evidenciou impacto significativo do subfinanciamento do SUS sobre a mortalidade geral da população negra, bem como sobre os índices de desemprego gerando uma maior dificuldade de acesso a medicamentos e maior exposição a atividades trabalhistas de risco.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:"><span style="color:#434343">Simultaneamente ao desmonte progressivo do serviço público de saúde, observamos um avanço quase proporcional do sistema de saúde privado, que cresce com incentivos estatais e aparta do direito à saúde uma parcela importante da população que não pode pagar por esses serviços. Percebemos então a desassistência como mecanismo de extermínio de grupos específicos da sociedade e como parte do avanço das políticas neoliberais.</span></span></span></span></span></span></p>  
= <span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="line-height: 150%;">A experiência de adoecimento nas favelas: muito além da doença</span></span></span> =
= <span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="line-height: 150%;">A experiência de adoecimento nas favelas: muito além da doença</span></span></span> =


<span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:" times="" new="" roman",serif"=""><span style="color:#434343">O adoecimento constitui uma experiência única de cada indivíduo ou povo. Ainda que o corpo humano reproduza sinais e sintomas semelhantes associados a determinada doença ou distúrbio na fisiologia normal, a experiência subjetiva do sintoma físico é característica do indivíduo que a experimenta e do impacto que a doença gera em sua vida em sociedade [14]. Tendo isso como base, observamos como a doença além de uma entidade biológica é também uma realidade forjada historicamente pelas estruturas sociais, e o doente, um personagem deste processo [15]. Moira Stewart [13], no clássico Medicina Centrada na Pessoa, ao citar os trabalhos pioneiros de Mishler e Barry et al, ressalta como as experiências de adoecimento são definidas pela dialética estabelecida entre o “mundo da vida” e o “mundo da medicina”, duas vozes contrastantes que determinam significados diferentes para o adoecimento. O mundo da vida é definido pelo contexto social e cultural no qual o indivíduo está inserido e reflete a forma como este irá experimentar e dar significado à sua doença ou ao seu sofrimento. Já o mundo da medicina resume a centralidade tecnocrática que os serviços e profissionais de saúde dão às alterações estruturais e orgânicas que a doença gera, deixando de lado as outras dimensões que compõem o sujeito adoecido.</span></span></span></span></span></span>
<span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:"><span style="color:#434343">O adoecimento constitui uma experiência única de cada indivíduo ou povo. Ainda que o corpo humano reproduza sinais e sintomas semelhantes associados a determinada doença ou distúrbio na fisiologia normal, a experiência subjetiva do sintoma físico é característica do indivíduo que a experimenta e do impacto que a doença gera em sua vida em sociedade [14]. Tendo isso como base, observamos como a doença além de uma entidade biológica é também uma realidade forjada historicamente pelas estruturas sociais, e o doente, um personagem deste processo [15]. Moira Stewart [13], no clássico Medicina Centrada na Pessoa, ao citar os trabalhos pioneiros de Mishler e Barry et al, ressalta como as experiências de adoecimento são definidas pela dialética estabelecida entre o “mundo da vida” e o “mundo da medicina”, duas vozes contrastantes que determinam significados diferentes para o adoecimento. O mundo da vida é definido pelo contexto social e cultural no qual o indivíduo está inserido e reflete a forma como este irá experimentar e dar significado à sua doença ou ao seu sofrimento. Já o mundo da medicina resume a centralidade tecnocrática que os serviços e profissionais de saúde dão às alterações estruturais e orgânicas que a doença gera, deixando de lado as outras dimensões que compõem o sujeito adoecido.</span></span></span></span></span></span>
<p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:" times="" new="" roman",serif"=""><span style="color:#434343">Este “mundo da medicina”, pode englobar tanto o conhecimento biológico quanto todo o aparato burocrático estatal, usado para normatizar, regular e restringir o acesso à técnica e aos serviços de saúde. Desta maneira, as experiências de adoecimento da população favelada não se resumiriam apenas à simples significação subjetiva de sintomas clínicos, mas à experiência de uma desassistência crônica que resulta em uma elevada carga de adoecimento e da negação do acesso ao império da técnica médica fundado pela branquitude, como demonstram os dados da pesquisa Nascer no Brasil [10] realizada pela Fiocruz nos anos de 2011 e 2012, que evidenciaram menor oferta de anestesia durante o parto de mulheres negras nos hospitais brasileiros. Em relatório [12] da Organização Panamericana da Saúde de 2013, constatou-se ainda que o Rio de Janeiro reproduz o padrão da tripla carga de doenças (afecções agudas e condições materno-infantis, doenças crônicas e causas externas como a violência urbana e acidentes) observado em todo o país de forma proporcional ao nível de vulnerabilidade social experimentado por estas populações. Além disso, de acordo com o relatório, o acesso da população aos serviços é dificultado pela alta densidade populacional dos territórios adscritos e número insuficiente de médicos e equipes de saúde da família.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:" times="" new="" roman",serif"=""><span style="color:#434343">A historiadora Beatriz Nascimento [2] ressalta como a morte engloba também aspectos simbólicos do sujeito constituído em comunidade. Ao afirmar que esta morte&nbsp; simbólica alcança o indivíduo antes mesmo da morte física, quando o faz perder a perspectiva de ser, e de afirmar-se enquanto pessoa e sujeito histórico, percebemos como o adoecimento serve ao propósito de minar a agência histórica dos sujeitos. O indivíduo que experimenta o medo da morte na doença, e sobretudo na negação do socorro e do provimento básico das suas necessidades de cuidado, entende que a sua existência não é desejada. Segundo Achille Mbembe [6] a política, muito mais do que o império da razão em eterno movimento dialético, é a diferença colocada em prática, ou seja, a inimizade e a exceção fazendo emergir um inimigo fictício. Nesta situação, a vida é tomada de refém pela morte, sempre à espreita. Segundo o filósofo Georges Bataille, conforme cita Mbembe, a vida passa a existir apenas em movimentos paroxísticos de troca com a morte. As experiências de adoecimento para a pessoa favelada revelariam então uma outra dimensão dialética, que se expressa através de um “mundo da medicina” omisso e que por meio da desassistência progressiva do estado rompe com os limites da morte. A favela se reconfigura como um território anômalo, onde a lógica da plantation impera, em oposição ao conjunto da cidade. Cabe ressaltar como, de acordo com Marielle Franco [1] em “UPP: A redução da favela a três letras. Uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro”, o próprio controle da saúde coletiva e individual da população favelada, propicia o enquadramento do “anormal” e reforça o apartheid social.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify">&nbsp;</p>  
<p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:"><span style="color:#434343">Este “mundo da medicina”, pode englobar tanto o conhecimento biológico quanto todo o aparato burocrático estatal, usado para normatizar, regular e restringir o acesso à técnica e aos serviços de saúde. Desta maneira, as experiências de adoecimento da população favelada não se resumiriam apenas à simples significação subjetiva de sintomas clínicos, mas à experiência de uma desassistência crônica que resulta em uma elevada carga de adoecimento e da negação do acesso ao império da técnica médica fundado pela branquitude, como demonstram os dados da pesquisa Nascer no Brasil [10] realizada pela Fiocruz nos anos de 2011 e 2012, que evidenciaram menor oferta de anestesia durante o parto de mulheres negras nos hospitais brasileiros. Em relatório [12] da Organização Panamericana da Saúde de 2013, constatou-se ainda que o Rio de Janeiro reproduz o padrão da tripla carga de doenças (afecções agudas e condições materno-infantis, doenças crônicas e causas externas como a violência urbana e acidentes) observado em todo o país de forma proporcional ao nível de vulnerabilidade social experimentado por estas populações. Além disso, de acordo com o relatório, o acesso da população aos serviços é dificultado pela alta densidade populacional dos territórios adscritos e número insuficiente de médicos e equipes de saúde da família.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:"><span style="color:#434343">A historiadora Beatriz Nascimento [2] ressalta como a morte engloba também aspectos simbólicos do sujeito constituído em comunidade. Ao afirmar que esta morte&nbsp; simbólica alcança o indivíduo antes mesmo da morte física, quando o faz perder a perspectiva de ser, e de afirmar-se enquanto pessoa e sujeito histórico, percebemos como o adoecimento serve ao propósito de minar a agência histórica dos sujeitos. O indivíduo que experimenta o medo da morte na doença, e sobretudo na negação do socorro e do provimento básico das suas necessidades de cuidado, entende que a sua existência não é desejada. Segundo Achille Mbembe [6] a política, muito mais do que o império da razão em eterno movimento dialético, é a diferença colocada em prática, ou seja, a inimizade e a exceção fazendo emergir um inimigo fictício. Nesta situação, a vida é tomada de refém pela morte, sempre à espreita. Segundo o filósofo Georges Bataille, conforme cita Mbembe, a vida passa a existir apenas em movimentos paroxísticos de troca com a morte. As experiências de adoecimento para a pessoa favelada revelariam então uma outra dimensão dialética, que se expressa através de um “mundo da medicina” omisso e que por meio da desassistência progressiva do estado rompe com os limites da morte. A favela se reconfigura como um território anômalo, onde a lógica da plantation impera, em oposição ao conjunto da cidade. Cabe ressaltar como, de acordo com Marielle Franco [1] em “UPP: A redução da favela a três letras. Uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro”, o próprio controle da saúde coletiva e individual da população favelada, propicia o enquadramento do “anormal” e reforça o apartheid social.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify">&nbsp;</p>  
= O Estado Necropolítico e a negação do direito à saúde =
= O Estado Necropolítico e a negação do direito à saúde =
<p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:" times="" new="" roman",serif"=""><span style="color:#434343">O Estado nacionalista, segundo o jurista e filósofo brasileiro Silvio Almeida [4], enquanto construção moderna, depende de práticas de poder que garantam a divisão social e formalizem a violência estatal e, para isso, é necessário um planejamento territorial que permita controlar e vigiar não só as populações ditas indesejadas, mas também a formação de suas subjetividades.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:" times="" new="" roman",serif"=""><span style="color:#434343">Partindo do princípio de que o nosso sistema de saúde, público e estatal, inscreve-se sob a lógica neoliberal, na qual os Estados, de acordo com Almeida, têm o racismo como garantia de manutenção do poder, percebemos como estes mesmos valem-se da norma jurídica para excluir ou incluir determinados grupos da vida política.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:" times="" new="" roman",serif"=""><span style="color:#434343">O racismo, enquanto invenção europeia e tecnologia colonial, tem como característica o fato de ter fragmentado o contínuo biológico da espécie humana. Criou-se então uma linha que separou os seres indesejáveis da sociedade (que, por sua vez, mereceriam a morte) daquelas categorias humanas que mereceriam viver, com base em pressupostos biológicos. Uma divisão entre aqueles que teriam as suas vidas prolongadas pela assistência do poder estatal e aqueles que seriam deixados para a morte física, simbólica e política. Esta é a Biopolítica de Foucault [7], que afirmou ser o racismo a tecnologia de poder que possibilita o exercício da soberania e da função assassina do Estado. O advento da necessidade de prolongar a vida, como garantia da união do Estado soberano nacional em torno das suas raças puras, veio acompanhado da tecnificação crescente da medicina e de outras ciências biológicas, ao mesmo tempo em que a Eugenia, a Higiene e a Medicina Preventiva buscavam colocar sob vigilância disciplinar as fraturas desta almejada pureza biológica.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:" times="" new="" roman",serif"=""><span style="color:#434343">No entanto, o filósofo camaronês Achille Mbembe [6] chama atenção para o fato de que mesmo nesses Estados hoje pretensamente democráticos, o fazer colonial, inaugurado pela modernidade, nunca foi de fato abandonado. O “deixar morrer” veio acompanhado de um aparato intrincado e bem arquitetado que garantia ao estado o poder da morte. A isso, o filósofo chama Necropolítica. O Estado de Exceção, conforme Giorgio Agamben (apud MBEMBE, 2018, p. 8) [6] aponta, tendo se tornado a regra em vez de uma situação excepcional, tira do caminho das máquinas de morte do Estado Soberano os impedimentos legais da pretensa liberdade e igualdade constitucionais. Os corpos negros, hoje impedidos pelo fim do colonialismo de serem mantidos como mercadorias e ferramentas a serviço do progresso civilizatório da Europa, tornaram-se indesejáveis. E por consequência, a norma da higiene não se compadece caso estejam adoecidos ou mortos.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:" times="" new="" roman",serif"=""><span style="color:#434343">Nesta lógica, o direito à saúde, inscreve-se sob a mesma estrutura que visa instituir estes aparatos de morte. De acordo com o filósofo sulafricano David Theo Goldberg (apud ALMEIDA, 2019, p. 87) [6], o racismo não é um dado acidental, mas um elemento constitutivo do Estado. E ainda para o filósofo e jurista argentino Carlos Cossio (apud SÃO BERNARDO, 2016 p. 35) [5] o direito é a conduta diária, um dado cultural, e não a pura norma jurídica como prega a tradição juspositivista. Isso significa que estamos diante de um direito garantido de acordo com as bases fundantes da própria sociedade brasileira: racista, e pautada juridicamente na lógica da exceção colonial, cuja finalidade básica é garantir a preservação da sociedade branca.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:" times="" new="" roman",serif"=""><span style="color:#434343">Por fim, observamos como a desassistência em saúde, operada sob a lógica de um direito constitucional historicamente excludente, vem sendo usada de forma programada pelo Estado, visando o extermínio físico, cultural e subjetivo de segmentos específicos da população. A negação do direito constitucional à saúde, constitui assim um mecanismo cruel de exclusão política, ao mesmo tempo em que molda subjetividades adoecidas pela experiência da morte iminente. A desassistência em saúde operando pela lógica necropolítica, determina cargas e experiências de adoecimento, causando a morte material e simbólica de indivíduos e comunidades. A desassistência mata porque antes de tudo tira também a perspectiva de ser.</span></span></span></span></span></span></p>  
<p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:"><span style="color:#434343">O Estado nacionalista, segundo o jurista e filósofo brasileiro Silvio Almeida [4], enquanto construção moderna, depende de práticas de poder que garantam a divisão social e formalizem a violência estatal e, para isso, é necessário um planejamento territorial que permita controlar e vigiar não só as populações ditas indesejadas, mas também a formação de suas subjetividades.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:"><span style="color:#434343">Partindo do princípio de que o nosso sistema de saúde, público e estatal, inscreve-se sob a lógica neoliberal, na qual os Estados, de acordo com Almeida, têm o racismo como garantia de manutenção do poder, percebemos como estes mesmos valem-se da norma jurídica para excluir ou incluir determinados grupos da vida política.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:"><span style="color:#434343">O racismo, enquanto invenção europeia e tecnologia colonial, tem como característica o fato de ter fragmentado o contínuo biológico da espécie humana. Criou-se então uma linha que separou os seres indesejáveis da sociedade (que, por sua vez, mereceriam a morte) daquelas categorias humanas que mereceriam viver, com base em pressupostos biológicos. Uma divisão entre aqueles que teriam as suas vidas prolongadas pela assistência do poder estatal e aqueles que seriam deixados para a morte física, simbólica e política. Esta é a Biopolítica de Foucault [7], que afirmou ser o racismo a tecnologia de poder que possibilita o exercício da soberania e da função assassina do Estado. O advento da necessidade de prolongar a vida, como garantia da união do Estado soberano nacional em torno das suas raças puras, veio acompanhado da tecnificação crescente da medicina e de outras ciências biológicas, ao mesmo tempo em que a Eugenia, a Higiene e a Medicina Preventiva buscavam colocar sob vigilância disciplinar as fraturas desta almejada pureza biológica.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:"><span style="color:#434343">No entanto, o filósofo camaronês Achille Mbembe [6] chama atenção para o fato de que mesmo nesses Estados hoje pretensamente democráticos, o fazer colonial, inaugurado pela modernidade, nunca foi de fato abandonado. O “deixar morrer” veio acompanhado de um aparato intrincado e bem arquitetado que garantia ao estado o poder da morte. A isso, o filósofo chama Necropolítica. O Estado de Exceção, conforme Giorgio Agamben (apud MBEMBE, 2018, p. 8) [6] aponta, tendo se tornado a regra em vez de uma situação excepcional, tira do caminho das máquinas de morte do Estado Soberano os impedimentos legais da pretensa liberdade e igualdade constitucionais. Os corpos negros, hoje impedidos pelo fim do colonialismo de serem mantidos como mercadorias e ferramentas a serviço do progresso civilizatório da Europa, tornaram-se indesejáveis. E por consequência, a norma da higiene não se compadece caso estejam adoecidos ou mortos.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:"><span style="color:#434343">Nesta lógica, o direito à saúde, inscreve-se sob a mesma estrutura que visa instituir estes aparatos de morte. De acordo com o filósofo sulafricano David Theo Goldberg (apud ALMEIDA, 2019, p. 87) [6], o racismo não é um dado acidental, mas um elemento constitutivo do Estado. E ainda para o filósofo e jurista argentino Carlos Cossio (apud SÃO BERNARDO, 2016 p. 35) [5] o direito é a conduta diária, um dado cultural, e não a pura norma jurídica como prega a tradição juspositivista. Isso significa que estamos diante de um direito garantido de acordo com as bases fundantes da própria sociedade brasileira: racista, e pautada juridicamente na lógica da exceção colonial, cuja finalidade básica é garantir a preservação da sociedade branca.</span></span></span></span></span></span></p> <p style="margin-bottom:.0001pt; text-align:justify"><span style="line-height:150%"><span style="vertical-align:baseline"><span style="font-size:12.0pt"><span style="line-height:150%"><span style="font-family:"><span style="color:#434343">Por fim, observamos como a desassistência em saúde, operada sob a lógica de um direito constitucional historicamente excludente, vem sendo usada de forma programada pelo Estado, visando o extermínio físico, cultural e subjetivo de segmentos específicos da população. A negação do direito constitucional à saúde, constitui assim um mecanismo cruel de exclusão política, ao mesmo tempo em que molda subjetividades adoecidas pela experiência da morte iminente. A desassistência em saúde operando pela lógica necropolítica, determina cargas e experiências de adoecimento, causando a morte material e simbólica de indivíduos e comunidades. A desassistência mata porque antes de tudo tira também a perspectiva de ser.</span></span></span></span></span></span></p>  
= Referências Bibliográficas =
= Referências Bibliográficas =


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'''Franco, Marielle. UPP A REDUÇÃO DA FAVELA EM TRÊS LETRAS: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro - São Paulo: n-1 edições, 2018.&nbsp;'''
'''Franco, Marielle. UPP A REDUÇÃO DA FAVELA EM TRÊS LETRAS: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro - São Paulo: n-1 edições, 2018.&nbsp;'''


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'''Nascimento, Maria Beatriz. Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidade nos dias de destruição. Maria Beatriz Nascimento. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.&nbsp;'''
'''Nascimento, Maria Beatriz. Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidade nos dias de destruição. Maria Beatriz Nascimento. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.&nbsp;'''


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'''Moura, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro - 2ed.-São Paulo: Fundação Maurício Grabois co-edição com Anita Garibaldi, 2014.&nbsp;'''
'''Moura, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro - 2ed.-São Paulo: Fundação Maurício Grabois co-edição com Anita Garibaldi, 2014.&nbsp;'''


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'''Almeida, Silvio Luiz de. Racismo estrutural.--São Paulo: Sueli Carneiro;Pólen, 2019.'''
'''Almeida, Silvio Luiz de. Racismo estrutural.--São Paulo: Sueli Carneiro;Pólen, 2019.'''


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'''São Bernardo, Augusto Sérgio dos Santos de. Xangô e Thémis -- Estudos sobre filosofia, direito e racismo/ Augusto Sérgio dos Santos de São Bernardo.-Salvador:J.Andrade, 2016.'''
'''São Bernardo, Augusto Sérgio dos Santos de. Xangô e Thémis -- Estudos sobre filosofia, direito e racismo/ Augusto Sérgio dos Santos de São Bernardo.-Salvador:J.Andrade, 2016.'''


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'''Mbembe, Achille. Necropolítica. 2ed. São Paulo. n-1 edições, 2018'''
'''Mbembe, Achille. Necropolítica. 2ed. São Paulo. n-1 edições, 2018'''


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'''Foucault, Michel. Em Defesa da Sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. - São Paulo: Martins Fontes, 1999'''
'''Foucault, Michel. Em Defesa da Sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. - São Paulo: Martins Fontes, 1999'''


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'''De Paula, Aline Baptista. Territórios desiguais - Racismo e o acesso à cidade. [SYN]THESIS, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 64-82, jun./dez. 2016. Cadernos do Centro de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro'''
'''De Paula, Aline Baptista. Territórios desiguais - Racismo e o acesso à cidade. [SYN]THESIS, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 64-82, jun./dez. 2016. Cadernos do Centro de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro'''


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'''Hone, T. et al. Effect of economic recession and impact of health and social protection expenditures on adult mortality: a longitudinal analysis of 5565 Brazilian municipalities. Lancet Global Health 2019'''
'''Hone, T. et al. Effect of economic recession and impact of health and social protection expenditures on adult mortality: a longitudinal analysis of 5565 Brazilian municipalities. Lancet Global Health 2019'''


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'''Leal MC, Gama SGN, Pereira APE, Pacheco VE, Carmo CN, Santos RV. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cadernos de Saúde Pública 2017;&nbsp;'''
'''Leal MC, Gama SGN, Pereira APE, Pacheco VE, Carmo CN, Santos RV. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cadernos de Saúde Pública 2017;&nbsp;'''


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'''Pinheiro, Luana et al. Retrato das desigualdades de gênero e raça. 3. ed. Brasília: Ipea; SPM; Unifem, 2008.'''
'''Pinheiro, Luana et al. Retrato das desigualdades de gênero e raça. 3. ed. Brasília: Ipea; SPM; Unifem, 2008.'''


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'''Harzheim, Erno. Reforma da Atenção Primária à Saúde na cidade do Rio de Janeiro - Avaliação dos primeiros três anos de Clínicas da Família.Pesquisa avaliativa sobre aspectos de implantação, estrutura, processo e resultados das Clínicas da Família na cidade do Rio de Janeiro. Porto Alegre: OPAS. 2013'''
'''Harzheim, Erno. Reforma da Atenção Primária à Saúde na cidade do Rio de Janeiro - Avaliação dos primeiros três anos de Clínicas da Família.Pesquisa avaliativa sobre aspectos de implantação, estrutura, processo e resultados das Clínicas da Família na cidade do Rio de Janeiro. Porto Alegre: OPAS. 2013'''


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'''Stewart, Moira et al. Medicina centrada na pessoa : transformando o método clínico / ; tradução: Anelise Burmeister, Sandra Maria Mallmann da Rosa ; revisão técnica: José Mauro Ceratti Lopes . – 3. ed. – Porto Alegre: Artmed, 2017'''
 
'''Stewart, Moira et al. Medicina centrada na pessoa&nbsp;: transformando o método clínico /&nbsp;; tradução: Anelise Burmeister, Sandra Maria Mallmann da Rosa&nbsp;; revisão técnica: José Mauro Ceratti Lopes . – 3. ed. – Porto Alegre: Artmed, 2017'''
 
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'''McWhinney, Ian R; Freeman, Thomas R. Manual de Medicina de Família e Comunidade de McWhinney. 4 ed. Porto Alegre: ARTMED, 2018'''
'''McWhinney, Ian R; Freeman, Thomas R. Manual de Medicina de Família e Comunidade de McWhinney. 4 ed. Porto Alegre: ARTMED, 2018'''


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'''Campos, G W et al. Tratado de saúde coletiva. 2ed. São Paulo Editora HUCITEC, 2012'''
'''Campos, G W et al. Tratado de saúde coletiva. 2ed. São Paulo Editora HUCITEC, 2012'''


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'''Góes, Luciano. A tradução de Lombroso na obra de Nina Rodrigues: o racismo como base estruturante da criminologia brasileira. - 1 ed. Rio de Janeiro: Renvan, 2016'''
'''Góes, Luciano. A tradução de Lombroso na obra de Nina Rodrigues: o racismo como base estruturante da criminologia brasileira. - 1 ed. Rio de Janeiro: Renvan, 2016'''


 
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Edição das 21h18min de 15 de março de 2020

Autor: Laio_Victor_Tavares

A saúde pública e as favelas como território de exclusão

As favelas constituem espaços marcados por elevados níveis de vulnerabilidade social e submetidos a constante violência e à desassistência estatal. A origem da ocupação de muitos dos morros e comunidades periféricas do Rio de Janeiro, remonta à implantação das políticas higienistas da Reforma Passos [8] no início do séc. XIX, na qual visando adequar a recém fundada república brasileira aos padrões europeus, expulsou-se os negros das regiões centrais da cidade. Somada a exclusão espacial, o processo de exclusão da vida política e da cidadania dos povos negros, segundo o sociólogo Clóvis Moura [3], teve início antes mesmo da abolição legal da escravidão em 1888, que alçaria uma imensa massa de ex-escravizados à indesejada posição de cidadãos livres. Como exemplo temos a Lei de Terras em 1850,  quando o Império tornou as terras brasileiras mercadoria — até então, eram concessão estatal— e incentivou que fossem ocupadas por colonos livres descendentes das raças consideradas civilizadas da Europa, já antevendo a abolição da escravidão. De acordo com Moura, se a posse e o trabalho na terra eram fundamentais para a inclusão dos sujeitos na nova lógica capitalista que emergia, era preciso apartar os negros deste processo a todo custo. Seguiram-se a isso medidas de exclusão que se valiam das mais variadas justificativas, como a criminalização do samba e da capoeira, sob a justificativa da vadiagem, amparada pelas teses eugenistas da criminologia européia lombrosiana [16] e os despejos de Pereira Passos e posteriormente de Getúlio Vargas, justificados pelas medidas de saúde pública que viam nas comunidades negras apenas depósitos das mais variadas doenças [8].

Em pesquisa do IPEA [11] de 2008, constatou-se que a cobertura do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil abrangia 76% da população autodeclarada negra, ao passo que apenas 54% dos brancos eram dependentes do sistema público. Um estudo publicado em 2019 [9] avaliando os efeitos da recessão econômica e das políticas de austeridade a partir de 2012 no Brasil, evidenciou impacto significativo do subfinanciamento do SUS sobre a mortalidade geral da população negra, bem como sobre os índices de desemprego gerando uma maior dificuldade de acesso a medicamentos e maior exposição a atividades trabalhistas de risco.

Simultaneamente ao desmonte progressivo do serviço público de saúde, observamos um avanço quase proporcional do sistema de saúde privado, que cresce com incentivos estatais e aparta do direito à saúde uma parcela importante da população que não pode pagar por esses serviços. Percebemos então a desassistência como mecanismo de extermínio de grupos específicos da sociedade e como parte do avanço das políticas neoliberais.

A experiência de adoecimento nas favelas: muito além da doença

O adoecimento constitui uma experiência única de cada indivíduo ou povo. Ainda que o corpo humano reproduza sinais e sintomas semelhantes associados a determinada doença ou distúrbio na fisiologia normal, a experiência subjetiva do sintoma físico é característica do indivíduo que a experimenta e do impacto que a doença gera em sua vida em sociedade [14]. Tendo isso como base, observamos como a doença além de uma entidade biológica é também uma realidade forjada historicamente pelas estruturas sociais, e o doente, um personagem deste processo [15]. Moira Stewart [13], no clássico Medicina Centrada na Pessoa, ao citar os trabalhos pioneiros de Mishler e Barry et al, ressalta como as experiências de adoecimento são definidas pela dialética estabelecida entre o “mundo da vida” e o “mundo da medicina”, duas vozes contrastantes que determinam significados diferentes para o adoecimento. O mundo da vida é definido pelo contexto social e cultural no qual o indivíduo está inserido e reflete a forma como este irá experimentar e dar significado à sua doença ou ao seu sofrimento. Já o mundo da medicina resume a centralidade tecnocrática que os serviços e profissionais de saúde dão às alterações estruturais e orgânicas que a doença gera, deixando de lado as outras dimensões que compõem o sujeito adoecido.

Este “mundo da medicina”, pode englobar tanto o conhecimento biológico quanto todo o aparato burocrático estatal, usado para normatizar, regular e restringir o acesso à técnica e aos serviços de saúde. Desta maneira, as experiências de adoecimento da população favelada não se resumiriam apenas à simples significação subjetiva de sintomas clínicos, mas à experiência de uma desassistência crônica que resulta em uma elevada carga de adoecimento e da negação do acesso ao império da técnica médica fundado pela branquitude, como demonstram os dados da pesquisa Nascer no Brasil [10] realizada pela Fiocruz nos anos de 2011 e 2012, que evidenciaram menor oferta de anestesia durante o parto de mulheres negras nos hospitais brasileiros. Em relatório [12] da Organização Panamericana da Saúde de 2013, constatou-se ainda que o Rio de Janeiro reproduz o padrão da tripla carga de doenças (afecções agudas e condições materno-infantis, doenças crônicas e causas externas como a violência urbana e acidentes) observado em todo o país de forma proporcional ao nível de vulnerabilidade social experimentado por estas populações. Além disso, de acordo com o relatório, o acesso da população aos serviços é dificultado pela alta densidade populacional dos territórios adscritos e número insuficiente de médicos e equipes de saúde da família.

A historiadora Beatriz Nascimento [2] ressalta como a morte engloba também aspectos simbólicos do sujeito constituído em comunidade. Ao afirmar que esta morte  simbólica alcança o indivíduo antes mesmo da morte física, quando o faz perder a perspectiva de ser, e de afirmar-se enquanto pessoa e sujeito histórico, percebemos como o adoecimento serve ao propósito de minar a agência histórica dos sujeitos. O indivíduo que experimenta o medo da morte na doença, e sobretudo na negação do socorro e do provimento básico das suas necessidades de cuidado, entende que a sua existência não é desejada. Segundo Achille Mbembe [6] a política, muito mais do que o império da razão em eterno movimento dialético, é a diferença colocada em prática, ou seja, a inimizade e a exceção fazendo emergir um inimigo fictício. Nesta situação, a vida é tomada de refém pela morte, sempre à espreita. Segundo o filósofo Georges Bataille, conforme cita Mbembe, a vida passa a existir apenas em movimentos paroxísticos de troca com a morte. As experiências de adoecimento para a pessoa favelada revelariam então uma outra dimensão dialética, que se expressa através de um “mundo da medicina” omisso e que por meio da desassistência progressiva do estado rompe com os limites da morte. A favela se reconfigura como um território anômalo, onde a lógica da plantation impera, em oposição ao conjunto da cidade. Cabe ressaltar como, de acordo com Marielle Franco [1] em “UPP: A redução da favela a três letras. Uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro”, o próprio controle da saúde coletiva e individual da população favelada, propicia o enquadramento do “anormal” e reforça o apartheid social.

 

O Estado Necropolítico e a negação do direito à saúde

O Estado nacionalista, segundo o jurista e filósofo brasileiro Silvio Almeida [4], enquanto construção moderna, depende de práticas de poder que garantam a divisão social e formalizem a violência estatal e, para isso, é necessário um planejamento territorial que permita controlar e vigiar não só as populações ditas indesejadas, mas também a formação de suas subjetividades.

Partindo do princípio de que o nosso sistema de saúde, público e estatal, inscreve-se sob a lógica neoliberal, na qual os Estados, de acordo com Almeida, têm o racismo como garantia de manutenção do poder, percebemos como estes mesmos valem-se da norma jurídica para excluir ou incluir determinados grupos da vida política.

O racismo, enquanto invenção europeia e tecnologia colonial, tem como característica o fato de ter fragmentado o contínuo biológico da espécie humana. Criou-se então uma linha que separou os seres indesejáveis da sociedade (que, por sua vez, mereceriam a morte) daquelas categorias humanas que mereceriam viver, com base em pressupostos biológicos. Uma divisão entre aqueles que teriam as suas vidas prolongadas pela assistência do poder estatal e aqueles que seriam deixados para a morte física, simbólica e política. Esta é a Biopolítica de Foucault [7], que afirmou ser o racismo a tecnologia de poder que possibilita o exercício da soberania e da função assassina do Estado. O advento da necessidade de prolongar a vida, como garantia da união do Estado soberano nacional em torno das suas raças puras, veio acompanhado da tecnificação crescente da medicina e de outras ciências biológicas, ao mesmo tempo em que a Eugenia, a Higiene e a Medicina Preventiva buscavam colocar sob vigilância disciplinar as fraturas desta almejada pureza biológica.

No entanto, o filósofo camaronês Achille Mbembe [6] chama atenção para o fato de que mesmo nesses Estados hoje pretensamente democráticos, o fazer colonial, inaugurado pela modernidade, nunca foi de fato abandonado. O “deixar morrer” veio acompanhado de um aparato intrincado e bem arquitetado que garantia ao estado o poder da morte. A isso, o filósofo chama Necropolítica. O Estado de Exceção, conforme Giorgio Agamben (apud MBEMBE, 2018, p. 8) [6] aponta, tendo se tornado a regra em vez de uma situação excepcional, tira do caminho das máquinas de morte do Estado Soberano os impedimentos legais da pretensa liberdade e igualdade constitucionais. Os corpos negros, hoje impedidos pelo fim do colonialismo de serem mantidos como mercadorias e ferramentas a serviço do progresso civilizatório da Europa, tornaram-se indesejáveis. E por consequência, a norma da higiene não se compadece caso estejam adoecidos ou mortos.

Nesta lógica, o direito à saúde, inscreve-se sob a mesma estrutura que visa instituir estes aparatos de morte. De acordo com o filósofo sulafricano David Theo Goldberg (apud ALMEIDA, 2019, p. 87) [6], o racismo não é um dado acidental, mas um elemento constitutivo do Estado. E ainda para o filósofo e jurista argentino Carlos Cossio (apud SÃO BERNARDO, 2016 p. 35) [5] o direito é a conduta diária, um dado cultural, e não a pura norma jurídica como prega a tradição juspositivista. Isso significa que estamos diante de um direito garantido de acordo com as bases fundantes da própria sociedade brasileira: racista, e pautada juridicamente na lógica da exceção colonial, cuja finalidade básica é garantir a preservação da sociedade branca.

Por fim, observamos como a desassistência em saúde, operada sob a lógica de um direito constitucional historicamente excludente, vem sendo usada de forma programada pelo Estado, visando o extermínio físico, cultural e subjetivo de segmentos específicos da população. A negação do direito constitucional à saúde, constitui assim um mecanismo cruel de exclusão política, ao mesmo tempo em que molda subjetividades adoecidas pela experiência da morte iminente. A desassistência em saúde operando pela lógica necropolítica, determina cargas e experiências de adoecimento, causando a morte material e simbólica de indivíduos e comunidades. A desassistência mata porque antes de tudo tira também a perspectiva de ser.

Referências Bibliográficas

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  1.  

Franco, Marielle. UPP A REDUÇÃO DA FAVELA EM TRÊS LETRAS: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro - São Paulo: n-1 edições, 2018. 

  1.  

Nascimento, Maria Beatriz. Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidade nos dias de destruição. Maria Beatriz Nascimento. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018. 

  1.  

Moura, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro - 2ed.-São Paulo: Fundação Maurício Grabois co-edição com Anita Garibaldi, 2014. 

  1.  

Almeida, Silvio Luiz de. Racismo estrutural.--São Paulo: Sueli Carneiro;Pólen, 2019.

  1.  

São Bernardo, Augusto Sérgio dos Santos de. Xangô e Thémis -- Estudos sobre filosofia, direito e racismo/ Augusto Sérgio dos Santos de São Bernardo.-Salvador:J.Andrade, 2016.

  1.  

Mbembe, Achille. Necropolítica. 2ed. São Paulo. n-1 edições, 2018

  1.  

Foucault, Michel. Em Defesa da Sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. - São Paulo: Martins Fontes, 1999

  1.  

De Paula, Aline Baptista. Territórios desiguais - Racismo e o acesso à cidade. [SYN]THESIS, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 64-82, jun./dez. 2016. Cadernos do Centro de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

  1.  

Hone, T. et al. Effect of economic recession and impact of health and social protection expenditures on adult mortality: a longitudinal analysis of 5565 Brazilian municipalities. Lancet Global Health 2019

  1.  

Leal MC, Gama SGN, Pereira APE, Pacheco VE, Carmo CN, Santos RV. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cadernos de Saúde Pública 2017; 

  1.  

Pinheiro, Luana et al. Retrato das desigualdades de gênero e raça. 3. ed. Brasília: Ipea; SPM; Unifem, 2008.

  1.  

Harzheim, Erno. Reforma da Atenção Primária à Saúde na cidade do Rio de Janeiro - Avaliação dos primeiros três anos de Clínicas da Família.Pesquisa avaliativa sobre aspectos de implantação, estrutura, processo e resultados das Clínicas da Família na cidade do Rio de Janeiro. Porto Alegre: OPAS. 2013

  1.  

Stewart, Moira et al. Medicina centrada na pessoa : transformando o método clínico / ; tradução: Anelise Burmeister, Sandra Maria Mallmann da Rosa ; revisão técnica: José Mauro Ceratti Lopes . – 3. ed. – Porto Alegre: Artmed, 2017

  1.  

McWhinney, Ian R; Freeman, Thomas R. Manual de Medicina de Família e Comunidade de McWhinney. 4 ed. Porto Alegre: ARTMED, 2018

  1.  

Campos, G W et al. Tratado de saúde coletiva. 2ed. São Paulo Editora HUCITEC, 2012

  1.  

Góes, Luciano. A tradução de Lombroso na obra de Nina Rodrigues: o racismo como base estruturante da criminologia brasileira. - 1 ed. Rio de Janeiro: Renvan, 2016