Notas etnográficas sobre o empreendedorismo em favelas cariocas (artigo)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Artigo publicado por Marcella Carvalho de Araujo Silva na Revista Etnográfica. Gentilmente cedido pela autora para replicação e divulgação na Wikifavelas.   

Resumo

Estas notas etnográficas procuram fazer uma descrição preliminar do processo de construção social do empreendedorismo em favelas do Rio de Janeiro e dos ajustamentos a essa nova ideologia econômica, por parte de grupos de moradores. Em primeiro lugar, exploro os trabalhos de mediação de técnicos de programas de inclusão produtiva. Em segundo lugar, volto-me ao exercício de imaginação de lideranças comunitárias, que viram o empreendedorismo se abrir como possibilidade de financiamento público-privado às suas atividades associativas. Faço uma descrição etnográfica desses dois momentos como trabalhos de tradução – o primeiro preocupado com a produção de relatórios de formalização; o segundo interessado em capitalizar novos recursos ao financiamento do associativismo local. O objetivo do artigo é explicitar os mecanismos sociais de produção do “sucesso” de programas de desenvolvimento local.

Introdução

“A gente vai virar ONG ou empresa?”, perguntou uma das integrantes de um coletivo de economia solidária a uma colega, no primeiro semestre de 2013.1 Regina estava preocupada com as questões institucionais envolvidas na formalização do grupo, de modo a ter acesso a financiamento público-privado. Àquele momento, as cinco mulheres haviam sido convidadas a participar de um grupo de trabalho sobre desenvolvimento social e econômico em favelas, no âmbito do Fórum Nacional, associação dos autointitulados “principais economistas, sociólogos e cientistas políticos brasileiros, iniciada em 1988 com a finalidade de oferecer propostas concretas para a modernização da sociedade brasileira”.

 

Desde 2010, o empreendedorismo se colocava no horizonte de favelas com Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), na cidade do Rio de Janeiro.3 Após ocupações militares dos territórios de mais de 30 complexos de favelas da cidade, inúmeros programas sociais foram direcionados a elas. O governo do estado apostava que o controle da circulação de armas permitiria a “abertura de mercado” e a “chegada do Estado” aos territórios de favelas. Entre gestores de programas de inclusão produtiva da prefeitura, havia uma percepção compartilhada de que a “chegada das UPP” finalmente permitiria a desarticulação do tráfico de drogas e o desenvolvimento econômico desses territórios.

Neste trabalho, reconstruo brevemente minha participação como assistente de pesquisa de um consultor do Banco Mundial, responsável por uma avaliação dos programas de inclusão produtiva no Rio de Janeiro. Por meio de contatos em comum, ele chegou até a professora Mariana Cavalcanti, com que eu trabalho há muitos anos, e ela me indicou como assistente de pesquisa, dada minha experiência com trabalho de campo em favelas. O consultor, que prefiro não nomear aqui, precisava de alguém que pudesse mediar seu acesso às favelas e com quem ele pudesse dividir tarefas. Eu não apenas o acompanhei nas entrevistas preliminares com coordenadores de programas de inclusão produtiva, como agendei entrevistas com técnicos em campo, realizei pequenas incursões de acompanhamento do dia a dia dos programas nos territórios e entrevistei beneficiários.

 


Inicialmente, o objetivo da pesquisa era analisar a relação entre a inclusão produtiva, a urbanização (realizada pelas obras do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento) e a “pacificação de favelas” (realizada pelas UPP), tomando alguns casos como controle. Contudo, após uma primeira rodada de entrevistas com os gestores responsáveis pelos programas de inclusão produtiva na cidade do Rio de Janeiro, percebemos um viés nesse recorte, pois os programas de empreendedorismo eram implantados apenas em favelas com Unidades de Polícia Pacificadora. Sem levar isso em consideração, acabaríamos por atribuir peso indevido à pacificação no que diz respeito à “abertura de mercado”. Infelizmente não havia tempo nem equipe suficiente para criar grupos de controle e analisar as relações específicas entre urbanização e inclusão produtiva, por um lado, e pacificação e inclusão produtiva, por outro. O objetivo da pesquisa foi então reformulado e fizemos uma comparação dos efeitos de programas de inclusão produtiva sobre o mercado de trabalho em duas regiões da cidade, uma na Zona Sul e outra na Zona Norte. Optámos então por direcionar os esforços de campo a dois conjuntos de favelas: o Complexo do ­Alemão e o Pavão-Pavãozinho e Cantagalo.

Essa experiência de pesquisa me causou algumas inquietações, desde logo pela distância de vocabulários e expectativas entre o consultor e os gestores, de um lado, e os beneficiários, de outro. Em algumas entrevistas, tive que reformular as perguntas que o consultor fazia, ininteligíveis àqueles moradores de favelas, que, pelos mais variados motivos, se tornavam “empreendedores”. Além disso, havia uma enorme dissonância entre os dados dos gestores e as narrativas dos beneficiários sobre o “processo de formalização”.

Em paralelo a essa pesquisa, eu seguia acompanhando um coletivo composto por diversos grupos de uma favela na Zona Norte, tanto em suas reuniões internas regulares, como no diálogo com o Fórum Nacional, acima mencionado. Os programas de inclusão produtiva da prefeitura também funcionavam nessa favela, que havia passado pela ocupação militar em 2010 e cujas dinâmicas políticas eu acompanhava desde 2009. Com o convite do coletivo a integrar as discussões sobre desenvolvimento econômico de favelas organizadas pelo Fórum Nacional, além da possibilidade de formalização de pequenos negócios, o empreendedorismo se colocava no horizonte político como fonte de financiamento ao associativismo local.

Este artigo é então o fruto da reflexão sobre essas duas experiências. Como assistente de pesquisa de um consultor do Banco Mundial, pude analisar como o “empreendedorismo” estava sendo construído como uma lente para enxergar, compreender e propor soluções ao “problema da geração de trabalho e renda”. Essa experiência, mesmo que curta, foi bastante profícua em elucidar os meandros da produção dos dados sobre empreendedorismo. Por outro lado, minha longa experiência de campo em uma favela com extenso histórico associativo me permitiu acompanhar o esforço de imaginação coletiva que lideranças empreendiam, de modo a costurar aquilo que elas já vinham realizando ao horizonte de possibilidade aberto pelos programas de empreendedorismo. Nesse sentido, as notas etnográficas procuram descrever, ainda que parcialmente, o processo de construção social do empreendedorismo em favelas do Rio de Janeiro e os ajustamentos operados por grupos de moradores a essa nova ideologia.

Faço uma descrição etnográfica do trabalho de mediação dos técnicos e do exercício de imaginação das lideranças como “trabalhos de tradução” – o primeiro preocupado com a produção de relatórios de formalização; o segundo interessado em capitalizar novos recursos para o financiamento do associativismo local. Meu objetivo é explicitar as operações invisíveis de ajustamento que, tanto quanto os processos de produção de dados de “sucesso” pelos técnicos, são fundamentais para que o empreendedorismo se efetive. Segundo Benjamin (2008 [1923]), a tarefa de tradução implica fidelidade ao sentido dos originais e não literalidade. Aproprio-me dessa perspectiva para analisar o duplo “esforço de identificação interessada” da linguagem do empreendedorismo. De um lado, os técnicos traduzem como empreendedorismo as mais variadas atividades de trabalho realizadas por moradores de favelas, preocupados em cumprir as metas dos programas de inclusão produtiva e produzir relatórios e números. Por outro, as lideranças comunitárias estão comprometidas em dizer nas palavras dos financiadores aquilo que já vêm fazendo.