O ‘progresso’ e o direito à moradia: um Rio de remoções (Artigo)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 14h23min de 27 de setembro de 2021 por Gabriel (discussão | contribs)

Originalmente publicado pelo Portal Maré de Notícias Online em 19 de agosto de 2021.

Por Tamyres Matos.

Texto

A retirada de construções apontadas como irregulares é parte marcante do cotidiano nas atividades da Prefeitura do Rio de Janeiro. Em ações que contam geralmente com a presença de funcionários das secretarias de Ordem Pública (Seop) e Conservação (Seconserva), a gestão do prefeito Eduardo Paes aponta reiteradamente este combate como uma de suas prioridades. No último dia 6 de agosto, noticiamos a demolição de 32 destas construções na Nova Holanda. Em maio deste ano, uma situação similar havia ocorrido na favela Rubens Vaz.

A narrativa oficial geralmente dá conta de que as construções representam riscos, seja para o meio ambiente, seja para a população. No caso das demolições na Nova Holanda, as notas enviadas à imprensa apontam que houve aviso aos responsáveis pelas obras, que “casas de alto padrão”  estavam sendo construídas irregularmente ou que teriam propósitos comerciais. 

No entanto, o discurso dos representantes do poder público geralmente contrastam com as falas dos moradores e associações. Na situação da Nova Holanda, por exemplo, diversos moradores deram depoimentos que contradizem a fala oficial, como Bárbara Lima: “Não sabia de nada. Gastei R$ 50 mil, que agora foram destruídos, um sonho que foi por água abaixo”.

Para Carlos Bernardo Vainer, doutor em desenvolvimento econômico e social e membro do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), os valores proibitivos praticados pelo mercado imobiliário e a ausência de políticas públicas de garantia do direito à moradia têm relação direta com esse tipo de situação. 

“Se há um fato urbano que marca a história e o presente das cidades brasileiras, este fato é o seguinte: o mercado imobiliário não atende às necessidades da imensa maioria da população. As classes trabalhadoras sempre tiveram que se virar para encontrar meios de morar na cidade – uma cidade que é profundamente desigual, injusta”, aponta.

O presidente da Associação de Moradores da Nova Holanda, Gilmar Junior, reiterou que, no caso do início de agosto, o grupo que construía no local sequer foi avisado. “Os moradores estão desesperados, pois não há direito ao aluguel social ou ao Programa Casa Verde e Amarela. Hoje destruíram o sonho do morador. Antes era um terreno vazio, sem nenhum projeto para o local. A periferia sempre fica para trás. Estamos indignados”, protestou.

Diego Vaz, subprefeito da zona norte, argumentou que a ocupação era irregular: “Derrubamos as casas que estavam à margem do rio. Elas obstruíam a passagem da água e traziam prejuízos para a clínica da família. Essa gestão vai retirar tudo que é irregular e traga perigo ou transtorno, seja onde for”.

Segundo Vainer, a história da propriedade da terra no Brasil é de “grilagem e apropriação violenta” e, muitas vezes, a parcela mais pobre da população fica à mercê dos conflitos fundiários que envolvem, inclusive, grupos criminosos. “Isso vale para a Barra da Tijuca, mas também para vastas áreas periféricas do que, nos anos 1930 e 1940, ainda eram áreas rurais, como Campo Grande, Santa Cruz… isso para não falar da periferia da região metropolitana – Caxias, Nova Iguaçu, grande Niterói – cujo processo de urbanização e ocupação por moradias das classes trabalhadoras foram resultados de loteamentos quase sempre irregulares sob a proteção de chefes políticos locais e suas famílias”, explica.

Histórico de remoções

Em publicações nos perfis oficiais da Prefeitura (incluindo as das citadas secretarias), o termo ‘remoção’ não é utilizado. As palavras usadas geralmente são “demolição” e “retirada”. Há uma lei de setembro de 2020 que determina a suspensão do cumprimento de mandados de reintegração de posse, despejos e remoções judiciais ou extrajudiciais no período de pandemia.

O livro “SMH 2016: remoções no Rio de Janeiro Olímpico” recupera o desenrolar dos fatos durante o período de preparação para as Olimpíadas de 2016, realizadas na capital fluminense. Eduardo Paes é apontado como o prefeito que mais removeu na história do Rio de Janeiro, superando, inclusive, Pereira Passos, chefe do Executivo do Rio no início do século XX, célebre pela política de remoções por motivos sanitários e urbanísticos. À época, Paes qualificou o livro como “panfleto de oposição”.

De acordo com Carlos Vainer, o Rio teve três grandes ondas de remoção ao longo de sua história. A primeira é a Reforma Pereira Passos, na primeira década do século XX; a segunda ocorre nos governos de Carlos Lacerda e Negrão de Lima, governadores do então estado da Guanabara, com uma ampla e radical remoção de favelas encravadas na Zona Sul; e a mais recente ocorreu a partir de 2014.

“A terceira era de grandes remoções aconteceu recentemente, como se sabe, durante o ciclo dos megaeventos esportivos – Olimpíadas, Copa do Mundo -. Quando mais de 100 mil pessoas foram removidas à força de áreas de interesse do capital financeiro-imobiliário e empurradas para periferias distantes. A história do Rio de Janeiro pode ser contada com a história das remoções forçadas”, analisa o pesquisador.

Vainer acredita que, embora seja o cumprimento da função social da propriedade e da cidade esteja em todas as declarações de direitos humanos e na nossa Constituição, a única maneira de tornar realidade o direito à moradia digna é a luta organizada dos trabalhadores, dos sem teto e das pessoas que vivem e moram em condições precárias.

“O usucapião urbano é uma grande conquista obtida na Constituição de 1988, mas permanece no papel. Milhões de pessoas em todo o Brasil, pelo que diz a Constituição, deveriam ser consideradas proprietários das terras que ocupam com suas moradias, mas o direito de propriedade da terra no Brasil é monopólio de poucos”, considera.

‘Memória não se remove’


Um museu social de resistência: é desta maneira que se apresenta o Museu das Remoções. Entre as obras expostas existem esculturas construídas com os escombros das casas removidas da Vila Autódromo, na Barra da Tijuca, no período pré-Jogos Olímpicos de 2016. Esta foi a única remoção que a Prefeitura do Rio reconheceu estar diretamente associada ao megaevento.

Para Diana Bogado, arquiteta e urbanista e cogestora do centro cultural, a Vila Autódromo é símbolo representativo de um processo mais abrangente do Rio de Janeiro. Ela relembra que, antes do início das remoções, um plano popular foi apresentado pelos moradores da comunidade, em parceria com as universidades federais UFF e UFRJ, para evidenciar que o Projeto Olímpico poderia ser realizado sem expulsar os moradores de suas casas.

A iniciativa ficou, inclusive, em primeiro lugar no Urban Age Award, importante prêmio internacional que reconhece e celebra iniciativas criativas para as cidades. A premiação é organizada pelo Deutsche Bank e pela London School of Economics e cerca de 170 projetos da Região Metropolitana do Rio de Janeiro concorreram. Mas nada disso adiantou.

“Não é possível que o planejamento urbano continue sendo pautado por remoções. Retirar das pessoas moradoras o direito à moradia viola a Constituição. A forma como essas remoções são feitas viola os direitos humanos. Gestões como a de Eduardo Paes colocam interesses privados acima dos interesses coletivos, isso contraria completamente o que é o que deveria ser o papel do Estado. Existe a obrigação de organizar e ordenar o território sim, mas a forma como isso vem sendo implementado faz com que o mercado defina o que vai acontecer com o território segundo seus próprios interesses”, argumenta.

A arquiteta acredita que a maneira de começar a combater o déficit habitacional (estimado em 340 mil, no contexto dos municípios da região metropolitana do Rio, pela Casa Fluminense) passa por requalificação urbanística e das casas nas favelas e pela efetivação de um plano diretor que atenda realmente às necessidades da população dentro das regiões periféricas. Além disso, ela destaca a importância das habitações sociais no centro da cidade, que constam nos planos anunciados recentemente pela Prefeitura.

Para Carlos Vainer, somente a luta e a organização populares têm a capacidade de criar as condições políticas, econômicas e sociais para alcançarmos objetivo. “É quando um coletivo numa favela ou bairro popular se organiza e reivindica, é quando uma rede de solidariedade se estrutura, é quando um grupo cultural, quando grupos de jovens, de mulheres, de LGBTQ+ se reúnem para enfrentar seus problemas e desafios, é quando isso acontece que estamos nos preparando para acabar com o déficit de moradias e mudar nossa cidade”, acredita.

Atualmente, os moradores da Vila Autódromo cobram o cumprimento da segunda parte do acordo firmado após muita luta e diálogo: a construção de um parque, um centro cultural e outros equipamentos para a região por parte da Prefeitura. Inicialmente, mais de 500 famílias viviam na Vila Autódromo, mas só restaram 20. Além do Parque Olímpico, as remoções foram realizadas sob a justificativa da construção do Centro de Mídia e das reformas de mobilidade urbana.