O efeito gangue sobre a dinâmica dos homicídios: um estudo sobre o caso de Cambé/PR (artigo): mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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As  próximas  seções  mostram  como  os processos  sociais  descritos  acima  ocorreram  na  região  norte  do  município  de  Cambé. Pretendemos mostrar como conflitos intragangues, disputas por poder e status  entre  membros de gangues e, principalmente, as retaliações  a  assassinatos  de  membros  de gangues  contribuíram  para  as  dinâmicas homicidas ascendentes verificadas em Cambé na década de 2000.
As  próximas  seções  mostram  como  os processos  sociais  descritos  acima  ocorreram  na  região  norte  do  município  de  Cambé. Pretendemos mostrar como conflitos intragangues, disputas por poder e status  entre  membros de gangues e, principalmente, as retaliações  a  assassinatos  de  membros  de gangues  contribuíram  para  as  dinâmicas homicidas ascendentes verificadas em Cambé na década de 2000.
=== A  DINÂMICA  DOS  HOMICÍDIOS NA REGIÃO NORTE DE CAMBÉ ===
=== A  DINÂMICA  DOS  HOMICÍDIOS NA REGIÃO NORTE DE CAMBÉ ===
A curva dos homicídios relacionados a conflitos (interpessoais ou de gangues) ocorridos  na  região  norte  de  Cambé  captados em nossa amostra é basicamente a mesma registrada em Cambé entre 1991 e 20062.  A  correlação dos dados é extremamente forte (p de Pearson = 0.91!). Essas curvas podem ser divididas em duas fases: uma fase ante-rior  à  ascensão  das  bancas  na  cena  criminal  local,  marcada  por  um  número  de  homicídios  relativamente baixo e estável (13 ocorrências na  amostra  e  54  no  município  entre  1991 e 2000); e a fase de atividade das bancas, caracterizada pela rápida elevação dos homicídios (36 ocorrências na amostra e 157 no município  entre  2001  e  2006).
===== A dinâmica anterior às bancas (1991 a 2000) =====
A nossa amostra registra um total de 13 homicídios ocorridos na região norte de Cambé na fase anterior à dinâmica das bancas. Um deles resulta de retaliação para vingar a morte de um amigo anteriormente assassinado  em  uma  briga  entre  jovens. Todos os demais estão relacionados a conflitos interpessoais com motivações diversas e que não resultaram em retaliações: discussões por motivos banais como uma “trucada  ríspida”  ou  a  expulsão  em  um jogo de futebol, competições por parceiras amorosas e disputas envolvendo honra. Vários desses homicídios estão relacionados a demonstrações públicas de hipermasculinidade  nos  espaços  públicos  de lazer frequentados pelos jovens da década de 1990. Essas demonstrações conferiam status aos seus protagonistas, chamados pelos adolescentes de bancas, que protagonizariam os conflitos da década seguinte dos “caras considerados”.
Os “caras considerados” são responsáveis por  sete  assassinatos  nesse  período.  Apesar  da disposição mostrada para usar violência em conflitos interpessoais – incluindo violência  letal  –,  a  maioria  dos  crimes  cometidos  por  esses  jovens  não  produziu  dinâmicas criminais ascendentes. A situação mudou na década seguinte, quando os “caras considerados” foram sucedidos por outros jovens, com  uma  forma  de  organização  distinta. Os  grupos  juvenis  que  nos  anos  1990  se reuniam por afinidades, como o gosto pela dança (Black Line, Relâmpagos Funk, dentre outros), pela música (metaleiros, pagodeiros, rappers, dentre outros) ou por práticas espor-tivas (boleiros), deram lugar às “bancas” ou “ternos”. A emergência dessa nova forma de organização juvenil impactou profundamente a  dinâmica  local  dos  homicídios.
==== A  dinâmica  das  bancas  (2001  a  2006) ====
É difícil precisar a data de surgimento das bancas na região norte de Cambé. No ano de 1998, elas já estavam em atividade, formadas quase que exclusivamente por adolescentes e sem protagonismo algum na cena criminal. Já no ano de 2000, o cenário era outro, com ao menos sete delas em atividade (Figura 2). No  bairro  Ana  Rosa  concentravam-se cinco grupos: Banca dos Noias; Banca do Vareta; Banca do Cavalo Roubado; Banca do Dinho; e Banca Chapa Coco. No bairro Cambé IV situava-se a Banca do Ciganinho e no bairro Tupi a chamada Banca do Lelo. A Banca do Marcelinho emergiria apenas em  2002  e  a  Banca  do  Nitão,  em  2004, ambas  no  bairro  Ana  Rosa.  Como  é  possível  notar,  a  maioria  das  bancas  trazia nome de um de seus membros, um “líder”, mas não se organizava de forma hierárquica. Elas tinham como referência pontos fixos do espaço público, controlados a seu bel-prazer. Seus  membros  não  eram  necessariamente rivais  e  alianças  ocorriam  para  combater inimigos comuns, para realizar deslocamentos  para  outros  territórios  ou  em  razão  de  afinidades variadas. Elas possuíam em média 20 jovens, alguns sistematicamente e outros esporadicamente envolvidos com atividades ilícitas  como  pequenos  furtos,  roubos,  posse  de arma, consumo e venda de drogas. O Gráfico 6 apresenta uma categorização de todos os homicídios registrados em nossa amostra no período de maior atividade das bancas  (2001  a  2006).  Essa  categorização segue  a  literatura  especializada  (Maxson, 1999), dividindo os homicídios associados a gangues em dois grupos: (i) os “homicídios motivados por gangues”, que incluem crimes que têm relação direta com as atividades dos grupos, tais como aqueles resultantes de disputas  por  poder  e  status  entre  seus  membros,  retaliações vinculadas a “guerras” grupais e também os decorrentes de conflitos internos relacionados às atividades dos grupos; e (ii) os “homicídios relacionados a gangues”, que envolvem crimes não necessariamente motivados por conflitos entre ou intragangues, mas cujos autores e/ou vítimas eram membros de bancas no momento da ocorrência. Dos 35 homicídios registrados no período 2001  a  2006,  apenas  um  não  se  enquadra  em uma dessas duas categorias – um crime passional  ocorrido  no  Ana  Rosa  em  2004.  Os  homicídios  relacionados  a  gangues representam 26% da amostra e os motivados por gangues, 74%. Por razões substantivas (importância)  e  pragmáticas  (limite  de espaço),  analisaremos  apenas  os  homicídios desta última categoria.

Edição das 14h57min de 14 de setembro de 2021

Artigo publicado originalmente na Revista USP, n. 129 de 2021, Dossiê de Segurança Pública. Para acessar o Dossiê na íntegra, clique aqui.

Autores:

CLEBER DA SILVA LOPES é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e coordenador do Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança (LEGS).

ANDERSON ALEXANDRE FERREIRA é doutorando em Sociologia da UEL e pesquisador do LEGS.

Resumo

Este   trabalho   analisa   os   processos   que  produzem  dinâmicas  homicidas  ascendentes  em  territórios  marcados  por conflitos entre gangues. O objetivo é entender como a emergência de gangues em  determinados  territórios  impacta  os  padrões  de  violência  letal  entre  jovens.  Para  demonstrar  como  o  efeito  gangue  ocorre,   analisamos   os   padrões   de   homicídios em um território periférico do município  de  Cambé,  Paraná,  ao  longo  de  15  anos  (1991  a  2006).  Os  resultados  mostram  que  as  dinâmicas  homicidas  são fortemente impactadas por conflitos intragangues,  disputas  por  poder  e  status  entre  membros  de  gangues  e,  principalmente, “guerras” de gangues.

Introdução 

Este  trabalho  analisa  os  processos  que  produzem  dinâmicas  homicidas  ascendentes  em  territórios  marcados  por  conflitos  entre  gangues – agrupamentos juvenis cuja identidade se vincula a atividades  ilícitas  e  ao  controle  do  território,  não  raramente  com o uso de armas de fogo (Zilli,  2011;  Klein  &  Maxson,  2006). O objetivo é entender como a emergência de gangues  em  determinados  territórios  impacta os padrões de violência letal entre jovens.

Para  demonstrar  como  o  efeito  gangue ocorre,  analisamos  os  padrões  de  homicídios  em um território periférico do município de Cambé, Paraná, ao longo de 15 anos (1991 a 2006). A análise se baseia (i) no conhecimento pessoal do segundo autor deste artigo, morador do território analisado e integrante de uma das gangues ativas no começo da década de 2000; (ii) nos depoimentos de 11 ex-membros de gangues e de nove moradores locais, obtidos por meio de entrevistas diretivas e conversas informais; (iii) em matérias jornalísticas sobre os crimes ocorridos no território analisado; e (iv) em notas tomadas dos escassos registros disponíveis na Delegacia do município de Cambé [1] .

Os  dados  mostram  que  conflitos  intragangues, disputas por poder e status  entre  membros de gangues e “guerras” de gangues produzem  taxas  de  homicídios  ascendentes  nos territórios dominados por gangues. As guerras de gangues são as que mais impactam  os  padrões  locais  de  homicídios,  pois  geram processos de contágio que difundem o homicídio no tempo e no espaço. Assim, uma vez iniciadas, as guerras geram dinâmicas homicidas de médio prazo (gerando mortes  até  sete  anos  depois  do  início  da contenda)  e  capazes  de  transbordar  o  território de origem dos conflitos.

Além desta seção introdutória, o trabalho está organizado em mais quatro. A seção dois apresenta o caso que será analisado. A seção três  expõe  a  maneira  como  a  teoria  social relaciona  gangues  e  homicídios.  A  seção seguinte mostra como as gangues impactaram os padrões de violência letal em Cambé. As  considerações  sumarizam  os  resultados e chamam a atenção para o fato de Cambé também ser um caso crucial para entendermos  melhor  por  que  as  taxas  de  homicídios  sobem  e  caem  em  determinados  territórios.

DO  PASSO  DO  VEADO  AO  RASTRO DE SANGUE: O CASO DE CAMBÉ

Em tupi-guarani, cambé significa o “passo do veado”. O município que hoje tem cerca de 106 mil habitantes, pertencente à Região Metropolitana de Londrina (RML), surgiu em 1930 e se urbanizou ao redor dos trilhos, sob o  impulso  da  economia  cafeeira  (Gonzales  Neto, 1987). O processo de urbanização dos bairros só veio a ocorrer na segunda metade do século XX. Na região norte da cidade, em particular,  o  Parque  Residencial  Ana  Rosa  (Ana  Rosa)  foi  o  primeiro  a  ser  loteado,  em  1976. Anos depois, foram loteados os terrenos do que viria a ser o Jardim Tupi (Tupi) e o Conjunto Habitacional Roberto Conceição (Cambé IV), em 1979 e 1983, respectivamente.

Ana Rosa, Tupi e Cambé IV são áreas relativamente  pobres  do  município.  Entretanto, as características desses três bairros surpreenderiam um visitante bem informado sobre os espaços urbanos onde ocorre a violência  letal  das  grandes  metrópoles  brasileiras:  são  bairros  planejados  –  ruas  bem delimitadas e vias largas – que foram ocupados por levas de migrantes vindos de São Paulo e Minas Gerais sob relativo controle do poder público (Figura 1). Ainda assim, esses três bairros formam o palco de algumas  dezenas  de  homicídios  que  deixaram  no município um rastro de sangue a partir da década de 2000.

Até  o  final  dos  anos  1990  Cambé  foi uma  localidade  relativamente  pacata,  com taxa média de homicídios na casa dos 6 por 100  mil  habitantes.  Entretanto,  os  casos  de  violência letal subiram bruscamente a partir de  2001  e  o  município  passou  a  conviver com taxas de homicídios elevadas em toda a  década  de  2000,  vivenciando  picos  nos anos  2004  e  2012  que  superaram  as  taxas  mais altas já registradas no Brasil, na Região Sul e no estado do Paraná (Gráfico 1). Entre 2004 e 2006, o município chegou a figurar na segunda posição do ranking nacional de vitimização juvenil, que mede a proporção de homicídios de jovens entre 15 e 24 anos em localidades com mais de 70 mil habitantes (Waiselfsz, 2018). Depois de alcançar o recorde de 38 casos por 100 mil habitantes em 2012, Cambé assistiu a uma queda contínua da violência letal intencional, que no  final  da  década  de  2010  regressou  aos patamares da década de 1990. Essa trajetória dos homicídios é bastante similar à da RML,  formada  por  um  conglomerado  de cinco municípios com população aproximada de  824  mil  habitantes  –  Cambé,  Ibiporã, Londrina, Pitangueiras, Rolândia e Tamarana.

O perfil etário e de gênero das vítimas de homicídios em Cambé a partir da década de 2000  se  assemelha  ao  encontrado  no  restante do Brasil: são em sua maioria homens com idade entre 15 e 29 anos. Esses jovens geralmente são mortos em vias públicas por meio de armas de fogo, outro padrão característico das estatísticas nacionais. Entretanto, não existe um  viés  racial  claro  entre  as  vítimas  em Cambé. No Brasil como um todo o número de vítimas de homicídios negras supera em quase três as vítimas brancas, mas no estado do Paraná esses dados se invertem. Como mostrou Ferreira (2017), Cambé destoa tanto do  padrão  nacional  quanto  do  padrão  paranaense, pois não há uma cor/raça claramente predominante entre as vítimas de homicídios.

Informações  sobre  o  perfil  das  vítimas de  homicídios  são  úteis  para  a  compreensão  do fenômeno. Entretanto, elas pouco ajudam a  entender  por  que  as  pessoas  foram  assassinadas  e  por  que  os  homicídios  cresceram  de maneira relativamente brusca em Cambé durante a década de 2000. Sustentamos que as  principais  razões  estão  relacionadas  à  proliferação de gangues localmente conhecidas como “bancas” ou “ternos”.

POR  QUE  AS  GANGUES IMPACTAM OS HOMICÍDIOS

O  senso  comum  tende  a  pensar  o  homicídio  como  um  ato  moralmente  abjeto  e socialmente reprovado. Entretanto, os estudos mostram que em alguns contextos sociais o homicídio não é nem uma coisa nem outra. Do ponto de vista dos indivíduos ou grupos que  o  cometem,  ele  tende  a  ser  considerado  um  ato  de  justiça,  isto  é,  uma  ação  realizada para vingar uma agressão anterior e/ou preservar uma honra violada (Black, 1983; Rocha, 2017). Pesquisas realizadas em diferentes  locais  e  momentos  históricos  mostram  que alguns grupos sociais – especialmente jovens, do sexo masculino e de classe baixa – podem vincular a honra a noções de hipermasculinidade que prescrevem o uso da violência física como mecanismo de resolução de conflitos e defesa da reputação (Nisbett, 2008; Polk, 1999; Zaluar, 2001). Nesses grupos, matar ou mostrar disposição para fazê-lo  em  disputas  interpessoais  por  honra  e  reputação  serve  ao  propósito  de  aumentar o status social dos indivíduos e colocá-los em  posição  de  dominância  (Papachristos, 2009; Gould, 2003).

Disputas para a manutenção da honra e da  reputação  ganham  contornos  distintos quando  envolvem  indivíduos  vinculados  a gangues. Entre membros de gangues essas disputas podem se tornar conflitos grupais potencialmente  capazes  de  produzir  dinâmicas  homicidas  ascendentes.  Isso  ocorre principalmente  porque  ameaças  e  ofensas a membros de gangues passam a ser entendidas como um problema de todo o grupo (Decker, 1996; Manso, 2005; Papachristos, 2009).  Nesses  contextos,  o  assassinato  de um membro de gangue representa uma ameaça ao status e à posição de dominância do grupo e dos indivíduos que o integram. Se o assassinato não for vingado, os membros da gangue perdem status e ficam fragilizados perante  inimigos,  que  podem  aproveitar  a fraqueza para realizar ataques futuros. Já a retaliação rápida e enérgica ao assassinato aumenta a solidariedade do grupo, restaura o  seu  status  e  pode  colocar  novamente  a gangue  em  posição  de  dominância.  Como alguns grupos retaliarão agressões sofridas de modo a assegurar sua posição de dominância,  os  homicídios  acabam  se  difundido  no tempo e no espaço. Essa difusão ocorre por meio de mecanismos de contágio que operam em duas direções: gerando homicídios e atos violentos entre as partes em contenda ao longo do tempo (retaliação direta); e  expandindo  as  agressões  para  além  dos territórios e pessoas inicialmente envolvidas no conflito (violência generalizada) (Decker, 1996; Papachristos, 2009).

As  próximas  seções  mostram  como  os processos  sociais  descritos  acima  ocorreram  na  região  norte  do  município  de  Cambé. Pretendemos mostrar como conflitos intragangues, disputas por poder e status  entre  membros de gangues e, principalmente, as retaliações  a  assassinatos  de  membros  de gangues  contribuíram  para  as  dinâmicas homicidas ascendentes verificadas em Cambé na década de 2000.

A  DINÂMICA  DOS  HOMICÍDIOS NA REGIÃO NORTE DE CAMBÉ

A curva dos homicídios relacionados a conflitos (interpessoais ou de gangues) ocorridos  na  região  norte  de  Cambé  captados em nossa amostra é basicamente a mesma registrada em Cambé entre 1991 e 20062.  A  correlação dos dados é extremamente forte (p de Pearson = 0.91!). Essas curvas podem ser divididas em duas fases: uma fase ante-rior  à  ascensão  das  bancas  na  cena  criminal  local,  marcada  por  um  número  de  homicídios  relativamente baixo e estável (13 ocorrências na  amostra  e  54  no  município  entre  1991 e 2000); e a fase de atividade das bancas, caracterizada pela rápida elevação dos homicídios (36 ocorrências na amostra e 157 no município  entre  2001  e  2006).

A dinâmica anterior às bancas (1991 a 2000)

A nossa amostra registra um total de 13 homicídios ocorridos na região norte de Cambé na fase anterior à dinâmica das bancas. Um deles resulta de retaliação para vingar a morte de um amigo anteriormente assassinado  em  uma  briga  entre  jovens. Todos os demais estão relacionados a conflitos interpessoais com motivações diversas e que não resultaram em retaliações: discussões por motivos banais como uma “trucada  ríspida”  ou  a  expulsão  em  um jogo de futebol, competições por parceiras amorosas e disputas envolvendo honra. Vários desses homicídios estão relacionados a demonstrações públicas de hipermasculinidade  nos  espaços  públicos  de lazer frequentados pelos jovens da década de 1990. Essas demonstrações conferiam status aos seus protagonistas, chamados pelos adolescentes de bancas, que protagonizariam os conflitos da década seguinte dos “caras considerados”.

Os “caras considerados” são responsáveis por  sete  assassinatos  nesse  período.  Apesar  da disposição mostrada para usar violência em conflitos interpessoais – incluindo violência  letal  –,  a  maioria  dos  crimes  cometidos  por  esses  jovens  não  produziu  dinâmicas criminais ascendentes. A situação mudou na década seguinte, quando os “caras considerados” foram sucedidos por outros jovens, com  uma  forma  de  organização  distinta. Os  grupos  juvenis  que  nos  anos  1990  se reuniam por afinidades, como o gosto pela dança (Black Line, Relâmpagos Funk, dentre outros), pela música (metaleiros, pagodeiros, rappers, dentre outros) ou por práticas espor-tivas (boleiros), deram lugar às “bancas” ou “ternos”. A emergência dessa nova forma de organização juvenil impactou profundamente a  dinâmica  local  dos  homicídios.

A  dinâmica  das  bancas  (2001  a  2006)

É difícil precisar a data de surgimento das bancas na região norte de Cambé. No ano de 1998, elas já estavam em atividade, formadas quase que exclusivamente por adolescentes e sem protagonismo algum na cena criminal. Já no ano de 2000, o cenário era outro, com ao menos sete delas em atividade (Figura 2). No  bairro  Ana  Rosa  concentravam-se cinco grupos: Banca dos Noias; Banca do Vareta; Banca do Cavalo Roubado; Banca do Dinho; e Banca Chapa Coco. No bairro Cambé IV situava-se a Banca do Ciganinho e no bairro Tupi a chamada Banca do Lelo. A Banca do Marcelinho emergiria apenas em  2002  e  a  Banca  do  Nitão,  em  2004, ambas  no  bairro  Ana  Rosa.  Como  é  possível  notar,  a  maioria  das  bancas  trazia nome de um de seus membros, um “líder”, mas não se organizava de forma hierárquica. Elas tinham como referência pontos fixos do espaço público, controlados a seu bel-prazer. Seus  membros  não  eram  necessariamente rivais  e  alianças  ocorriam  para  combater inimigos comuns, para realizar deslocamentos  para  outros  territórios  ou  em  razão  de  afinidades variadas. Elas possuíam em média 20 jovens, alguns sistematicamente e outros esporadicamente envolvidos com atividades ilícitas  como  pequenos  furtos,  roubos,  posse  de arma, consumo e venda de drogas. O Gráfico 6 apresenta uma categorização de todos os homicídios registrados em nossa amostra no período de maior atividade das bancas  (2001  a  2006).  Essa  categorização segue  a  literatura  especializada  (Maxson, 1999), dividindo os homicídios associados a gangues em dois grupos: (i) os “homicídios motivados por gangues”, que incluem crimes que têm relação direta com as atividades dos grupos, tais como aqueles resultantes de disputas  por  poder  e  status  entre  seus  membros,  retaliações vinculadas a “guerras” grupais e também os decorrentes de conflitos internos relacionados às atividades dos grupos; e (ii) os “homicídios relacionados a gangues”, que envolvem crimes não necessariamente motivados por conflitos entre ou intragangues, mas cujos autores e/ou vítimas eram membros de bancas no momento da ocorrência. Dos 35 homicídios registrados no período 2001  a  2006,  apenas  um  não  se  enquadra  em uma dessas duas categorias – um crime passional  ocorrido  no  Ana  Rosa  em  2004.  Os  homicídios  relacionados  a  gangues representam 26% da amostra e os motivados por gangues, 74%. Por razões substantivas (importância)  e  pragmáticas  (limite  de espaço),  analisaremos  apenas  os  homicídios desta última categoria.

  1. O material empírico foi produzido pela dissertação de Ferreira (2018). Este artigo é um subproduto da dissertação.