O efeito gangue sobre a dinâmica dos homicídios: um estudo sobre o caso de Cambé/PR (artigo)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 15h19min de 14 de setembro de 2021 por Caiqueazael (discussão | contribs)

Artigo publicado originalmente na Revista USP, n. 129 de 2021, Dossiê de Segurança Pública. Para acessar o Dossiê na íntegra, clique aqui.

Autores:

CLEBER DA SILVA LOPES é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e coordenador do Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança (LEGS).

ANDERSON ALEXANDRE FERREIRA é doutorando em Sociologia da UEL e pesquisador do LEGS.

Resumo

Este   trabalho   analisa   os   processos   que  produzem  dinâmicas  homicidas  ascendentes  em  territórios  marcados  por conflitos entre gangues. O objetivo é entender como a emergência de gangues em  determinados  territórios  impacta  os  padrões  de  violência  letal  entre  jovens.  Para  demonstrar  como  o  efeito  gangue  ocorre,   analisamos   os   padrões   de   homicídios em um território periférico do município  de  Cambé,  Paraná,  ao  longo  de  15  anos  (1991  a  2006).  Os  resultados  mostram  que  as  dinâmicas  homicidas  são fortemente impactadas por conflitos intragangues,  disputas  por  poder  e  status  entre  membros  de  gangues  e,  principalmente, “guerras” de gangues.

Introdução 

Este  trabalho  analisa  os  processos  que  produzem  dinâmicas  homicidas  ascendentes  em  territórios  marcados  por  conflitos  entre  gangues – agrupamentos juvenis cuja identidade se vincula a atividades  ilícitas  e  ao  controle  do  território,  não  raramente  com o uso de armas de fogo (Zilli,  2011;  Klein  &  Maxson,  2006). O objetivo é entender como a emergência de gangues  em  determinados  territórios  impacta os padrões de violência letal entre jovens.

Para  demonstrar  como  o  efeito  gangue ocorre,  analisamos  os  padrões  de  homicídios  em um território periférico do município de Cambé, Paraná, ao longo de 15 anos (1991 a 2006). A análise se baseia (i) no conhecimento pessoal do segundo autor deste artigo, morador do território analisado e integrante de uma das gangues ativas no começo da década de 2000; (ii) nos depoimentos de 11 ex-membros de gangues e de nove moradores locais, obtidos por meio de entrevistas diretivas e conversas informais; (iii) em matérias jornalísticas sobre os crimes ocorridos no território analisado; e (iv) em notas tomadas dos escassos registros disponíveis na Delegacia do município de Cambé [1] .

Os  dados  mostram  que  conflitos  intragangues, disputas por poder e status  entre  membros de gangues e “guerras” de gangues produzem  taxas  de  homicídios  ascendentes  nos territórios dominados por gangues. As guerras de gangues são as que mais impactam  os  padrões  locais  de  homicídios,  pois  geram processos de contágio que difundem o homicídio no tempo e no espaço. Assim, uma vez iniciadas, as guerras geram dinâmicas homicidas de médio prazo (gerando mortes  até  sete  anos  depois  do  início  da contenda)  e  capazes  de  transbordar  o  território de origem dos conflitos.

Além desta seção introdutória, o trabalho está organizado em mais quatro. A seção dois apresenta o caso que será analisado. A seção três  expõe  a  maneira  como  a  teoria  social relaciona  gangues  e  homicídios.  A  seção seguinte mostra como as gangues impactaram os padrões de violência letal em Cambé. As  considerações  sumarizam  os  resultados e chamam a atenção para o fato de Cambé também ser um caso crucial para entendermos  melhor  por  que  as  taxas  de  homicídios  sobem  e  caem  em  determinados  territórios.

DO  PASSO  DO  VEADO  AO  RASTRO DE SANGUE: O CASO DE CAMBÉ

Em tupi-guarani, cambé significa o “passo do veado”. O município que hoje tem cerca de 106 mil habitantes, pertencente à Região Metropolitana de Londrina (RML), surgiu em 1930 e se urbanizou ao redor dos trilhos, sob o  impulso  da  economia  cafeeira  (Gonzales  Neto, 1987). O processo de urbanização dos bairros só veio a ocorrer na segunda metade do século XX. Na região norte da cidade, em particular,  o  Parque  Residencial  Ana  Rosa  (Ana  Rosa)  foi  o  primeiro  a  ser  loteado,  em  1976. Anos depois, foram loteados os terrenos do que viria a ser o Jardim Tupi (Tupi) e o Conjunto Habitacional Roberto Conceição (Cambé IV), em 1979 e 1983, respectivamente.

Ana Rosa, Tupi e Cambé IV são áreas relativamente  pobres  do  município.  Entretanto, as características desses três bairros surpreenderiam um visitante bem informado sobre os espaços urbanos onde ocorre a violência  letal  das  grandes  metrópoles  brasileiras:  são  bairros  planejados  –  ruas  bem delimitadas e vias largas – que foram ocupados por levas de migrantes vindos de São Paulo e Minas Gerais sob relativo controle do poder público (Figura 1). Ainda assim, esses três bairros formam o palco de algumas  dezenas  de  homicídios  que  deixaram  no município um rastro de sangue a partir da década de 2000.

Até  o  final  dos  anos  1990  Cambé  foi uma  localidade  relativamente  pacata,  com taxa média de homicídios na casa dos 6 por 100  mil  habitantes.  Entretanto,  os  casos  de  violência letal subiram bruscamente a partir de  2001  e  o  município  passou  a  conviver com taxas de homicídios elevadas em toda a  década  de  2000,  vivenciando  picos  nos anos  2004  e  2012  que  superaram  as  taxas  mais altas já registradas no Brasil, na Região Sul e no estado do Paraná (Gráfico 1). Entre 2004 e 2006, o município chegou a figurar na segunda posição do ranking nacional de vitimização juvenil, que mede a proporção de homicídios de jovens entre 15 e 24 anos em localidades com mais de 70 mil habitantes (Waiselfsz, 2018). Depois de alcançar o recorde de 38 casos por 100 mil habitantes em 2012, Cambé assistiu a uma queda contínua da violência letal intencional, que no  final  da  década  de  2010  regressou  aos patamares da década de 1990. Essa trajetória dos homicídios é bastante similar à da RML,  formada  por  um  conglomerado  de cinco municípios com população aproximada de  824  mil  habitantes  –  Cambé,  Ibiporã, Londrina, Pitangueiras, Rolândia e Tamarana.

O perfil etário e de gênero das vítimas de homicídios em Cambé a partir da década de 2000  se  assemelha  ao  encontrado  no  restante do Brasil: são em sua maioria homens com idade entre 15 e 29 anos. Esses jovens geralmente são mortos em vias públicas por meio de armas de fogo, outro padrão característico das estatísticas nacionais. Entretanto, não existe um  viés  racial  claro  entre  as  vítimas  em Cambé. No Brasil como um todo o número de vítimas de homicídios negras supera em quase três as vítimas brancas, mas no estado do Paraná esses dados se invertem. Como mostrou Ferreira (2017), Cambé destoa tanto do  padrão  nacional  quanto  do  padrão  paranaense, pois não há uma cor/raça claramente predominante entre as vítimas de homicídios.

Informações  sobre  o  perfil  das  vítimas de  homicídios  são  úteis  para  a  compreensão  do fenômeno. Entretanto, elas pouco ajudam a  entender  por  que  as  pessoas  foram  assassinadas  e  por  que  os  homicídios  cresceram  de maneira relativamente brusca em Cambé durante a década de 2000. Sustentamos que as  principais  razões  estão  relacionadas  à  proliferação de gangues localmente conhecidas como “bancas” ou “ternos”.

POR  QUE  AS  GANGUES IMPACTAM OS HOMICÍDIOS

O  senso  comum  tende  a  pensar  o  homicídio  como  um  ato  moralmente  abjeto  e socialmente reprovado. Entretanto, os estudos mostram que em alguns contextos sociais o homicídio não é nem uma coisa nem outra. Do ponto de vista dos indivíduos ou grupos que  o  cometem,  ele  tende  a  ser  considerado  um  ato  de  justiça,  isto  é,  uma  ação  realizada para vingar uma agressão anterior e/ou preservar uma honra violada (Black, 1983; Rocha, 2017). Pesquisas realizadas em diferentes  locais  e  momentos  históricos  mostram  que alguns grupos sociais – especialmente jovens, do sexo masculino e de classe baixa – podem vincular a honra a noções de hipermasculinidade que prescrevem o uso da violência física como mecanismo de resolução de conflitos e defesa da reputação (Nisbett, 2008; Polk, 1999; Zaluar, 2001). Nesses grupos, matar ou mostrar disposição para fazê-lo  em  disputas  interpessoais  por  honra  e  reputação  serve  ao  propósito  de  aumentar o status social dos indivíduos e colocá-los em  posição  de  dominância  (Papachristos, 2009; Gould, 2003).

Disputas para a manutenção da honra e da  reputação  ganham  contornos  distintos quando  envolvem  indivíduos  vinculados  a gangues. Entre membros de gangues essas disputas podem se tornar conflitos grupais potencialmente  capazes  de  produzir  dinâmicas  homicidas  ascendentes.  Isso  ocorre principalmente  porque  ameaças  e  ofensas a membros de gangues passam a ser entendidas como um problema de todo o grupo (Decker, 1996; Manso, 2005; Papachristos, 2009).  Nesses  contextos,  o  assassinato  de um membro de gangue representa uma ameaça ao status e à posição de dominância do grupo e dos indivíduos que o integram. Se o assassinato não for vingado, os membros da gangue perdem status e ficam fragilizados perante  inimigos,  que  podem  aproveitar  a fraqueza para realizar ataques futuros. Já a retaliação rápida e enérgica ao assassinato aumenta a solidariedade do grupo, restaura o  seu  status  e  pode  colocar  novamente  a gangue  em  posição  de  dominância.  Como alguns grupos retaliarão agressões sofridas de modo a assegurar sua posição de dominância,  os  homicídios  acabam  se  difundido  no tempo e no espaço. Essa difusão ocorre por meio de mecanismos de contágio que operam em duas direções: gerando homicídios e atos violentos entre as partes em contenda ao longo do tempo (retaliação direta); e  expandindo  as  agressões  para  além  dos territórios e pessoas inicialmente envolvidas no conflito (violência generalizada) (Decker, 1996; Papachristos, 2009).

As  próximas  seções  mostram  como  os processos  sociais  descritos  acima  ocorreram  na  região  norte  do  município  de  Cambé. Pretendemos mostrar como conflitos intragangues, disputas por poder e status  entre  membros de gangues e, principalmente, as retaliações  a  assassinatos  de  membros  de gangues  contribuíram  para  as  dinâmicas homicidas ascendentes verificadas em Cambé na década de 2000.

A  DINÂMICA  DOS  HOMICÍDIOS NA REGIÃO NORTE DE CAMBÉ

A curva dos homicídios relacionados a conflitos (interpessoais ou de gangues) ocorridos  na  região  norte  de  Cambé  captados em nossa amostra é basicamente a mesma registrada em Cambé entre 1991 e 20062.  A  correlação dos dados é extremamente forte (p de Pearson = 0.91!). Essas curvas podem ser divididas em duas fases: uma fase ante-rior  à  ascensão  das  bancas  na  cena  criminal  local,  marcada  por  um  número  de  homicídios  relativamente baixo e estável (13 ocorrências na  amostra  e  54  no  município  entre  1991 e 2000); e a fase de atividade das bancas, caracterizada pela rápida elevação dos homicídios (36 ocorrências na amostra e 157 no município  entre  2001  e  2006).

A dinâmica anterior às bancas (1991 a 2000)

A nossa amostra registra um total de 13 homicídios ocorridos na região norte de Cambé na fase anterior à dinâmica das bancas. Um deles resulta de retaliação para vingar a morte de um amigo anteriormente assassinado  em  uma  briga  entre  jovens. Todos os demais estão relacionados a conflitos interpessoais com motivações diversas e que não resultaram em retaliações: discussões por motivos banais como uma “trucada  ríspida”  ou  a  expulsão  em  um jogo de futebol, competições por parceiras amorosas e disputas envolvendo honra. Vários desses homicídios estão relacionados a demonstrações públicas de hipermasculinidade  nos  espaços  públicos  de lazer frequentados pelos jovens da década de 1990. Essas demonstrações conferiam status aos seus protagonistas, chamados pelos adolescentes de bancas, que protagonizariam os conflitos da década seguinte dos “caras considerados”.

Os “caras considerados” são responsáveis por  sete  assassinatos  nesse  período.  Apesar  da disposição mostrada para usar violência em conflitos interpessoais – incluindo violência  letal  –,  a  maioria  dos  crimes  cometidos  por  esses  jovens  não  produziu  dinâmicas criminais ascendentes. A situação mudou na década seguinte, quando os “caras considerados” foram sucedidos por outros jovens, com  uma  forma  de  organização  distinta. Os  grupos  juvenis  que  nos  anos  1990  se reuniam por afinidades, como o gosto pela dança (Black Line, Relâmpagos Funk, dentre outros), pela música (metaleiros, pagodeiros, rappers, dentre outros) ou por práticas espor-tivas (boleiros), deram lugar às “bancas” ou “ternos”. A emergência dessa nova forma de organização juvenil impactou profundamente a  dinâmica  local  dos  homicídios.

A  dinâmica  das  bancas  (2001  a  2006)

É difícil precisar a data de surgimento das bancas na região norte de Cambé. No ano de 1998, elas já estavam em atividade, formadas quase que exclusivamente por adolescentes e sem protagonismo algum na cena criminal. Já no ano de 2000, o cenário era outro, com ao menos sete delas em atividade (Figura 2). No  bairro  Ana  Rosa  concentravam-se cinco grupos: Banca dos Noias; Banca do Vareta; Banca do Cavalo Roubado; Banca do Dinho; e Banca Chapa Coco. No bairro Cambé IV situava-se a Banca do Ciganinho e no bairro Tupi a chamada Banca do Lelo. A Banca do Marcelinho emergiria apenas em  2002  e  a  Banca  do  Nitão,  em  2004, ambas  no  bairro  Ana  Rosa.  Como  é  possível  notar,  a  maioria  das  bancas  trazia nome de um de seus membros, um “líder”, mas não se organizava de forma hierárquica. Elas tinham como referência pontos fixos do espaço público, controlados a seu bel-prazer. Seus  membros  não  eram  necessariamente rivais  e  alianças  ocorriam  para  combater inimigos comuns, para realizar deslocamentos  para  outros  territórios  ou  em  razão  de  afinidades variadas. Elas possuíam em média 20 jovens, alguns sistematicamente e outros esporadicamente envolvidos com atividades ilícitas  como  pequenos  furtos,  roubos,  posse  de arma, consumo e venda de drogas. O Gráfico 6 apresenta uma categorização de todos os homicídios registrados em nossa amostra no período de maior atividade das bancas  (2001  a  2006).  Essa  categorização segue  a  literatura  especializada  (Maxson, 1999), dividindo os homicídios associados a gangues em dois grupos: (i) os “homicídios motivados por gangues”, que incluem crimes que têm relação direta com as atividades dos grupos, tais como aqueles resultantes de disputas  por  poder  e  status  entre  seus  membros,  retaliações vinculadas a “guerras” grupais e também os decorrentes de conflitos internos relacionados às atividades dos grupos; e (ii) os “homicídios relacionados a gangues”, que envolvem crimes não necessariamente motivados por conflitos entre ou intragangues, mas cujos autores e/ou vítimas eram membros de bancas no momento da ocorrência. Dos 35 homicídios registrados no período 2001  a  2006,  apenas  um  não  se  enquadra  em uma dessas duas categorias – um crime passional  ocorrido  no  Ana  Rosa  em  2004.  Os  homicídios  relacionados  a  gangues representam 26% da amostra e os motivados por gangues, 74%. Por razões substantivas (importância)  e  pragmáticas  (limite  de espaço),  analisaremos  apenas  os  homicídios desta última categoria.

Os  homicídios  entre  gangues  motivados  por  dominância

A  nossa  base  de  dados  registra  sete homicídios entre gangues que estão relacionados  a  disputas  por  status  no  mundo  criminal e/ou são respostas a ofensas ou ameaças praticadas no contexto das relações de competição e domínio territorial das  bancas.  Dois  casos  representativos desses  conflitos  letais  merecem  ser  destacados, pois envolvem o ator com maior centralidade  nas  dinâmicas  homicidas  da  região norte da cidade. Dos 35 homicídios registrados entre 2001 e 2006, 21 (60%) tiveram pessoas ligadas ao grupo de Marcelinho como autores e/ou vítimas. A trajetória  de  Marcelinho  exemplifica  bem  como  disputas  por  dominância  entre  membros  de  gangues podem gerar homicídios.

Com  apenas  14  anos,  Marcelinho  ascendeu  na  cena  criminal  local  por  meio  de  um  lance  ousado:  matou  um  fornecedor  de  armas de outra banca em uma negociação para a compra de um revólver calibre 38. Depois da execução, pediu que seus comparsas acionassem a ambulância e alegassem que a morte havia sido um suicídio por roleta-russa – versão posteriormente aceita  pela  polícia.  Esse  assassinato  tem  caráter tanto instrumental quanto expressivo: por um lado, permitiu que o jovem se  armasse  para  os  múltiplos  conflitos  nos  quais começava a se envolver; por outro, serviu para posicioná-lo na dinâmica das bancas como um jovem destemido.

O status  que  Marcelinho  obteve  com esse  assassinato  aumentou  a  sua  capacidade  de atrair outros adolescentes envolvidos em rivalidades interpessoais ou grupais. Em territórios marcados por disputas entre gangues, ascensões criminais dessa natureza podem ser interpretadas como uma ameaça à hegemonia de atores há mais tempo estabelecidos  na  cena  criminal,  desencadeando  novos conflitos. Um conflito dessa natureza  é  a  motivação  do  segundo  assassinato cometido por Marcelinho. Dessa vez a  vítima  foi  um  jovem  conhecido  como Neguinho (21 anos), expoente da Banca do Cavalo Roubado, que havia construído a reputação de “rei” da zona norte com base em ações violentas contra rivais pessoais e rivais de sua banca, da qual se distanciou aos poucos para ações criminais solo. Depois de pouco mais de um ano fora das dinâmicas  das  bancas,  por  conta  de  um  assalto  malsucedido  no  qual  foi  baleado  e  preso, Neguinho tentou um retorno triunfal:  assassinou  um  homem  por  ele  supostamente ter se envolvido com sua amante à  época; e escreveu em uma carta uma lista de 30 pessoas que mataria, incluindo Marcelinho e vários de seus parceiros de banca. Diante das ameaças de Neguinho, o grupo de Marcelinho tramou e executou seu assassinato em maio de 2003. Esse e os  demais  homicídios  classificados  como  “motivados por dominância” não geraram retaliações. Situação distinta ocorreu com os homicídios descritos a seguir.

Os  homicídios  entre  gangues  motivados  por  “guerras”

Essa  categoria  reúne  15  homicídios (43% da amostra) tipicamente retaliatórios decorrentes de duas “guerras” travadas pela Banca do Marcelinho, uma com a Banca do Lelo e outra com a Banca do Nitão. São os casos mais numerosos (43% da amostra) e  de  maior  impacto  na  dinâmica  local  dos  homicídios. Além dos 15 homicídios registrados  no  período  2002  a  2006,  diretamente  associados a essa dinâmica, há outros dois casos ocorridos em 2010 e 2012. A Tabela 1 apresenta esses 17 homicídios retaliatórios,  o  tempo  transcorrido  entre  os  crimes  e os locais das ocorrências. A “guerra” entre a Banca do Marcelino e a Banca do Lelo foi mais curta (menos de um  ano  entre  o  primeiro  e  o  último  homi-cídio) e menos sangrenta (quatro vítimas fatais, duas de cada lado). Ela seguiu linhas bastante  territorializadas,  opondo  os  bairros  Ana Rosa (Banca do Marcelinho) e Tupi/Cambé IV (Banca do Lelo e aliados rivais do  grupo  do  Marcelinho).  A  motivação inicial  do  confronto  foi  assim  descrita  por  um  interlocutor:

“Interlocutor IV: Essa treta começou, Indião, assim, eu sei um pedaço dela. Você lembra de um lugar perto da garagem da TIL, que tinha sinuca, essa briga começou ali. Pesquisador: Não era droga então [o estopim do conflito]? Interlocutor IV: Não, não! Era ‘treta’ mesmo, foi ‘treta’ de birra, essa aí é briga de gangue mesmo,  não  teve  droga  no  meio.  Que  na verdade uns traficava aqui, outros traficava lá, e não tinha isso aí”.

Os operadores do sistema de justiça criminal  e  a  mídia  tendem  a  atribuir  os  assassinatos de pessoas envolvidas com o crime a disputas  instrumentais  relacionadas  ao  mercado de drogas. Entretanto, nos territórios com gangues esses conflitos podem começar com brigas banais relacionadas à manutenção da honra ou reputação. Esse foi o caso da “guerra” entre os grupos do Marcelinho e do  Lelo,  iniciada  por  causa  de  olhares  atravessados em uma casa de jogos na divisa da região norte com a região central de Cambé. Dias depois da troca de insultos mencionada pelo  Interlocutor  IV,  Adilsinho  (25  anos), membro do grupo de Lelo, foi flagrado em um  bar  no  bairro  Ana  Rosa  e  morto  pelo  grupo do Marcelinho. Esse homicídio gerou três outros em um período de 337 dias. O mais emblemático foi o que vitimou Lelo (28 anos),  assassinado  publicamente  em  um  bar  movimentado da região central de Londrina.

“Pesquisador:  Você  lembra  dessa  cena  do Coelho e do Lelo? Interlocutor IV: Do Coelho e do Lelo? Eu lembro  sim,  contado  pelo  próprio  cara  que  tava junto. Ele diz que eles tava seguindo o Lelo, seguiram o Lelo um tempo, daí não achou.  Aí,  não  lembro  quem  foi,  liga  pra ele [Coelho] e fala que o Lelo tá [no bar]. Aí eles saem de carro daqui e vai lá. [...] Tinha um cara lá de dentro [infiltrado] pas-sando a informação [...] na mesa tinha um traidor [...] eu lembro que quase pega tiro nele. Ninguém ia matá, eles ia esperar sair, seguir, e atirar. Daí o Coelho pega a pistola e fala assim: ‘Qui, eu vou entrá lá dentro e vou matá ele, sabe por que vocês não mata ele?  Porque  toda  vez  vocês  fica  querendo espera não ter gente perto, eu vou entrar e vou  matá’  [...]  Daí  ele  [Coelho]:  ‘Dá  aqui essa  pistola’  [engatilhou]  e  foi.  E  entra  e atira no cara no meio de todo mundo [...] depois eles saem e fazem um churrasco.”

Esse  homicídio  é  ilustrativo  do  modo como as “guerras” entre gangues contribuem para  a  difusão  dos  homicídios  não  apenas  no  tempo,  mas  também  no  espaço.  Como mostra  a  Tabela  1,  12  dos  17  homicídios relacionados  diretamente  às  “guerras”  de gangues  ocorreram  na  própria  zona  norte de Cambé (71%), indicando a natureza predominantemente intracomunitária desses crimes. Entretanto, em alguns casos a violência letal transborda o território de origem das gangues e se manifesta em locais como o sistema prisional (quando alvos de retaliação estão presos), outras regiões da mesma cidade ou cidades da mesma região metropolitana. Embora as gangues sejam grupos fortemente vinculados aos seus territórios, seus  membros  se  deslocam  pelo  espaço urbano. Ao fazê-lo abrem possibilidade para que  os  homicídios  retaliatórios  se  difundam  no espaço. Esse fenômeno explica parcialmente as semelhanças existentes nas curvas de homicídios de um mesmo conglomerado urbano – no nosso caso, Cambé e Região Metropolitana  de  Londrina.  A menção do Interlocutor IV ao fato de o  grupo  do  Marcelinho  ter  comemorado  a morte de Lelo com um churrasco também é reveladora do modo como os crimes retaliatórios repercutem no interior das gangues e alimentam os conflitos. Eventos comemorativos desse tipo foram diversas vezes organizados pela  Banca  do  Marcelinho  para  celebrar  a morte de opositores. No contexto das rivalidades  entre  gangues,  esses  rituais  servem ao propósito de revigorar o senso de pertencimento  à  banca,  sua  identidade  e  disposição para retaliar qualquer ofensa ou ameaça aos seus membros. Essa disposição é particularmente visível em vários atos praticados por membros da Banca do Marcelinho, bem como no protagonismo do grupo nas “guerras”. Logo após a execução pública ocorrida em Londrina, por exemplo, jovens ligados a Marcelinho violaram o túmulo de Lelo para deixar,  ao  lado  do  corpo,  um  recado  para  o  seu braço direito: “Valdinho-Demorô-Morreu”. Esse  ato  “covarde”,  por  sua  vez,  explica  a última retaliação registrada nessa “guerra”: o assassinato de Costelinha (16 anos), protagonista do episódio de violação do túmulo, por membros do grupo do Lelo pouco mais de três meses depois da execução de seu líder. A “guerra” entre a Banca do Marcelinho e  a  Banca  do  Nitão  foi  bem  mais  intensa e gerou dinâmicas retaliatórias mais longas, como  mostra  a  Tabela  1.  Ela  vitimou  13 jovens, sete do lado de Marcelinho e cinco do lado de Nitão. Dentre as vítimas do lado de Nitão estão Chepa (28 anos) e Bola (35 anos),  mortos,  respectivamente,  seis  e  sete anos  depois  do  homicídio  que  marca  o  início do embate grupal. Esse homicídio inicial foi  antecedido  pelo  assassinato  do  Skatista (19  anos;  Banca  do  Nitão)  por  Branco  (20 anos; Banca do Marcelinho), que mata para antecipar um possível ataque ao seu irmão, que  anteriormente  havia  desferido  “alguns tapas  na  cara”  de  Skatista.  Esse  homicídio não foi imediatamente retaliado pelo grupo de  Nitão.  Primeiro,  porque  o  Skatista  não tinha relações fortes com o grupo de Nitão; era  um  jovem  oriundo  de  São  Paulo,  que havia  se  mudado  para  a  casa  dos  avós  em Cambé depois que os pais foram assassinados. Segundo, porque a Banca do Nitão não dispunha,  naquele  momento,  de  recursos  para  iniciar uma “guerra” com a Banca do Marcelinho, que reinava absoluta na cena criminal da zona norte de Cambé. Essa assimetria de poder  e  reputação  entre  as  duas  bancas  é crucial para entender o estopim da “guerra”.

“Interlocutor  I:  Nitão  e  Marcelinho?  Foi porque do Lagartixa. [ele] ‘tirava’ eles pra macaco, né? ‘É seus macacos’, tirava os mole-ques.  Porque  os  moleques  era  mais  destaca-dão também, né? Não tinha uns pano, não dava rolezão e tal. ‘É seus mendigos’, ‘cadê as espingardas veia’. Porque eles [Banca do Marcelinho] estavam no auge naquela época, né? [...] você lembra, também, uma vez que a gente bateu o carro do Mineiro, isso foi uma das inflamadas [...] pra virar a ‘treta’ do Nitão.  O  Mineiro  tinha  comprado  um  Uno  vermelho  e  nóis  falou  assim  ‘vamo  roletá todas as avenidas’ [...]. Roletamo atravessando tudo,  nóis  roletô  tudo,  chegou  na  Jacomo Rosine nóis bateu no Chevette do Boy. Nóis desceu do carro [...] aí eu saí assim e fui batê no Boy ‘tá loco, mano’, [Boy]: ‘oh, é avenida, mano, cêis tá errado’. [Interlocutor I]: ‘vocêis vai pagá o bagulho e é o seguinte, vocêis tá na obrigação’. [...] aí nisso o Boy foi e comunicou o Lagartixa, porque o Boy ‘colava’ com os caras. O Lagartixa comuni-cou o Mineiro: ‘É o seguinte, ninguém vai pagar nada e você tá na obrigação de pagá o Chevette’. Aí o Mineiro chegou em mim e ‘deu a voz’, falei assim: ‘Demorô, então, nóis vai catá o Lagartixa’. Aí nisso ele nem procurô eu, procurô o Nitão e os caras. Daí o Nitão desceu e deu tiro no braço do Lagartixa  [risos].  Aí  começou  essa  guerra,  ‘ah, os neguim tá querendo guerra’, aí os caras subiam lá e dava tiro na casa do Nitão.”

A Banca do Nitão até então não figurava entre as mais populares da região. Ela era formada por um pequeno grupo de jovens tratados  como  escória  entre  as  bancas  e  frequentemente  desrespeitados  pelos  adolescentes  da  Banca  do  Marcelinho.  O  pequeno grupo era formado, basicamente, por colegas moradores  da  mesma  rua,  aos  quais  se  atribuiu o envolvimento em pequenos assaltos e o homicídio de um homossexual na região central  –  o  que  não  é  consenso  entre  os interlocutores.  Às  ofensas  aos  adolescentes  que andavam com Nitão se somou o evento inesperado narrado pelo Interlocutor I. Esses fatores geraram a primeira agressão de Nitão contra o grupo de Marcelinho: um tiro no braço de Lagartixa. Depois disso, o grupo do  Marcelinho  deu  início  a  uma  série  de ataques.  O  primeiro  foi  para  mostrar  seu  poderio bélico a Nitão, que teve a casa alvejada  por  dezenas  de  disparos  de  arma  de fogo. Ninguém foi vitimado no ataque, mas por  conta  dele  a  família  de  Nitão  abandonou  o  bairro  Ana  Rosa  às  pressas.  Embora  longe  do  epicentro  do  conflito,  a  família de Nitão contribuiria para a “guerra” mais adiante, levantando recursos financeiros para a compra de armas, na esperança de contrabalançar  o  poder  dos  rivais,  que  financiavam suas atividades por meio da venda de drogas e assaltos.  O  primeiro  homicídio  dessa  guerra  foi ocorrer  tempos  depois,  com  Zoinho  (20  anos;  Banca  do  Marcelinho)  matando  o  Vermelhinho  (23  anos;  Banca  do  Nitão)  no  início  de  setembro  de  2004.  Esse  assassinato  foi  sucedido  pelos  11  outros  descritos  na  Tabela 1. Marcelinho (15 anos) seria morto pelo grupo de Nitão um ano e sete meses depois, junto com o tio (38 anos), em frente à sua casa. Seis meses depois seria morto seu  irmão.  Nitão,  por  sua  vez,  sobreviveu ao  conflito,  mas  perdeu  o  irmão,  Nitinha (19 anos), assassinado em outubro de 2010 em  um  tiroteio  ocorrido  em  um  posto  da  região central de Cambé, que feriu aleatoriamente  outras  três  pessoas  que  estavam no  local.  Os  assassinatos  de  Marcelinho  e  Nitinha ilustram como conflitos de gangues também contribuem para a difusão da violência por meio da vitimização de pessoas de fora do conflito.

Os  homicídios  intragangues

Além das dinâmicas homicidas descritas anteriormente,  territórios  marcados  pela  presença  de  gangues  também  são  impactados pelos  conflitos  intragangues  com  desfecho letal. A nossa amostra registra quatro homicídios dessa natureza entre 2001 e 2006. Dois casos são suficientes para mostrar como esses conflitos podem ocorrer. O primeiro envolveu uma desavença relacionada ao consumo de drogas, atividade comum entre os membros da chamada Banca dos Noias, que levou Per-neta (22 anos) a matar Alexzinho (27 anos) a golpes de faca. “Os dois estavam tomando cachaça quando decidiram comprar uma pedra de crack para fumar. Perneta teria empres-tado  cinco  reais  para  Alexzinho  comprar  a  droga.  Só  que  Alexzinho  acabou  fumando sozinho”,  contou  o  delegado  da  época.  O homicídio  ocorreu  em  março  de  2002.  O segundo caso foi uma “queima de arquivo” dentro da Banca do Nitão, datada em setembro de 2006. O homicídio envolveu dois jovens, Noinha e Beringela, que antes tinham tramado e executado a tiros um membro da Banca do Marcelinho  chamado  Branco  (23  anos).  O autor do disparo foi Noinha; Beringela, por sua  vez,  apenas  “passou  um  pano”.  Meses depois Beringela matou a pauladas Noinha, que  supostamente  estava  “falando  demais” sobre o assassinato de Branco.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O  estudo  de  caso  que  realizamos  em  Cambé  revela  que  as  dinâmicas  homicidas são fortemente impactadas por conflitos intragangues;  disputas  por  poder  e status  entre  membros  de  gangues;  e,  principalmente, por “guerras” de gangues que geram ações e reações que difundem a violência letal no tempo e no espaço. Esse efeito de contágio produzido pelos conflitos de gangues explica em grande medida por que a violência letal cresce e persiste por períodos relativamente longos em determinados territórios. Os homicídios retaliatórios típicos das “guerras” de gangues formam redes de conflitos grupais que  persistem  independentemente  da  morte  ou  prisão  de  seus  membros.  Nesse  sentido,  políticas públicas meramente repressivas baseadas na prisão de membros de gangues tendem a ser ineficazes. Dinâmicas homicidas motivadas por gangues demandam políticas públicas  mais  amplas,  capazes  de  combinar  repressão qualificada, ações de mediação voltadas à interrupção da reciprocidade violenta e intervenções sociais focalizadas em jovens. O desenho  de  políticas  com  essas  características  demanda grande capacidade de governança por  parte  de  atores  estatais  e  não  estatais  com  responsabilidades  diretas  ou  indiretas  na área de segurança. Infelizmente, no Brasil essa capacidade tem sido problemática.


Para acompanhar os gráficos e referências bibliográficas, clique aquiCategorias

  1. O material empírico foi produzido pela dissertação de Ferreira (2018). Este artigo é um subproduto da dissertação.