O efeito gangue sobre a dinâmica dos homicídios: um estudo sobre o caso de Cambé/PR (artigo)
Artigo publicado originalmente na Revista USP, n. 129 de 2021, Dossiê de Segurança Pública. Para acessar o Dossiê na íntegra, clique aqui.
Autoria:: CLEBER DA SILVA LOPES é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e coordenador do Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança (LEGS), e ANDERSON ALEXANDRE FERREIRA é doutorando em Sociologia da UEL e pesquisador do LEGS.
Resumo[editar | editar código-fonte]
Este trabalho analisa os processos que produzem dinâmicas homicidas ascendentes em territórios marcados por conflitos entre gangues. O objetivo é entender como a emergência de gangues em determinados territórios impacta os padrões de violência letal entre jovens. Para demonstrar como o efeito gangue ocorre, analisamos os padrões de homicídios em um território periférico do município de Cambé, Paraná, ao longo de 15 anos (1991 a 2006). Os resultados mostram que as dinâmicas homicidas são fortemente impactadas por conflitos intragangues, disputas por poder e status entre membros de gangues e, principalmente, “guerras” de gangues.
Introdução [editar | editar código-fonte]
Este trabalho analisa os processos que produzem dinâmicas homicidas ascendentes em territórios marcados por conflitos entre gangues – agrupamentos juvenis cuja identidade se vincula a atividades ilícitas e ao controle do território, não raramente com o uso de armas de fogo (Zilli, 2011; Klein & Maxson, 2006). O objetivo é entender como a emergência de gangues em determinados territórios impacta os padrões de violência letal entre jovens.
Para demonstrar como o efeito gangue ocorre, analisamos os padrões de homicídios em um território periférico do município de Cambé, Paraná, ao longo de 15 anos (1991 a 2006). A análise se baseia (i) no conhecimento pessoal do segundo autor deste artigo, morador do território analisado e integrante de uma das gangues ativas no começo da década de 2000; (ii) nos depoimentos de 11 ex-membros de gangues e de nove moradores locais, obtidos por meio de entrevistas diretivas e conversas informais; (iii) em matérias jornalísticas sobre os crimes ocorridos no território analisado; e (iv) em notas tomadas dos escassos registros disponíveis na Delegacia do município de Cambé [1] .
Os dados mostram que conflitos intragangues, disputas por poder e status entre membros de gangues e “guerras” de gangues produzem taxas de homicídios ascendentes nos territórios dominados por gangues. As guerras de gangues são as que mais impactam os padrões locais de homicídios, pois geram processos de contágio que difundem o homicídio no tempo e no espaço. Assim, uma vez iniciadas, as guerras geram dinâmicas homicidas de médio prazo (gerando mortes até sete anos depois do início da contenda) e capazes de transbordar o território de origem dos conflitos.
Além desta seção introdutória, o trabalho está organizado em mais quatro. A seção dois apresenta o caso que será analisado. A seção três expõe a maneira como a teoria social relaciona gangues e homicídios. A seção seguinte mostra como as gangues impactaram os padrões de violência letal em Cambé. As considerações sumarizam os resultados e chamam a atenção para o fato de Cambé também ser um caso crucial para entendermos melhor por que as taxas de homicídios sobem e caem em determinados territórios.
Do passo do veado ao rastro de sangue: o caso de Cambé[editar | editar código-fonte]
Em tupi-guarani, cambé significa o “passo do veado”. O município que hoje tem cerca de 106 mil habitantes, pertencente à Região Metropolitana de Londrina (RML), surgiu em 1930 e se urbanizou ao redor dos trilhos, sob o impulso da economia cafeeira (Gonzales Neto, 1987). O processo de urbanização dos bairros só veio a ocorrer na segunda metade do século XX. Na região norte da cidade, em particular, o Parque Residencial Ana Rosa (Ana Rosa) foi o primeiro a ser loteado, em 1976. Anos depois, foram loteados os terrenos do que viria a ser o Jardim Tupi (Tupi) e o Conjunto Habitacional Roberto Conceição (Cambé IV), em 1979 e 1983, respectivamente.
Ana Rosa, Tupi e Cambé IV são áreas relativamente pobres do município. Entretanto, as características desses três bairros surpreenderiam um visitante bem informado sobre os espaços urbanos onde ocorre a violência letal das grandes metrópoles brasileiras: são bairros planejados – ruas bem delimitadas e vias largas – que foram ocupados por levas de migrantes vindos de São Paulo e Minas Gerais sob relativo controle do poder público (Figura 1). Ainda assim, esses três bairros formam o palco de algumas dezenas de homicídios que deixaram no município um rastro de sangue a partir da década de 2000.
Até o final dos anos 1990 Cambé foi uma localidade relativamente pacata, com taxa média de homicídios na casa dos 6 por 100 mil habitantes. Entretanto, os casos de violência letal subiram bruscamente a partir de 2001 e o município passou a conviver com taxas de homicídios elevadas em toda a década de 2000, vivenciando picos nos anos 2004 e 2012 que superaram as taxas mais altas já registradas no Brasil, na Região Sul e no estado do Paraná (Gráfico 1). Entre 2004 e 2006, o município chegou a figurar na segunda posição do ranking nacional de vitimização juvenil, que mede a proporção de homicídios de jovens entre 15 e 24 anos em localidades com mais de 70 mil habitantes (Waiselfsz, 2018). Depois de alcançar o recorde de 38 casos por 100 mil habitantes em 2012, Cambé assistiu a uma queda contínua da violência letal intencional, que no final da década de 2010 regressou aos patamares da década de 1990. Essa trajetória dos homicídios é bastante similar à da RML, formada por um conglomerado de cinco municípios com população aproximada de 824 mil habitantes – Cambé, Ibiporã, Londrina, Pitangueiras, Rolândia e Tamarana.
O perfil etário e de gênero das vítimas de homicídios em Cambé a partir da década de 2000 se assemelha ao encontrado no restante do Brasil: são em sua maioria homens com idade entre 15 e 29 anos. Esses jovens geralmente são mortos em vias públicas por meio de armas de fogo, outro padrão característico das estatísticas nacionais. Entretanto, não existe um viés racial claro entre as vítimas em Cambé. No Brasil como um todo o número de vítimas de homicídios negras supera em quase três as vítimas brancas, mas no estado do Paraná esses dados se invertem. Como mostrou Ferreira (2017), Cambé destoa tanto do padrão nacional quanto do padrão paranaense, pois não há uma cor/raça claramente predominante entre as vítimas de homicídios.
Informações sobre o perfil das vítimas de homicídios são úteis para a compreensão do fenômeno. Entretanto, elas pouco ajudam a entender por que as pessoas foram assassinadas e por que os homicídios cresceram de maneira relativamente brusca em Cambé durante a década de 2000. Sustentamos que as principais razões estão relacionadas à proliferação de gangues localmente conhecidas como “bancas” ou “ternos”.
Por que as gangues impactam os homicídios[editar | editar código-fonte]
O senso comum tende a pensar o homicídio como um ato moralmente abjeto e socialmente reprovado. Entretanto, os estudos mostram que em alguns contextos sociais o homicídio não é nem uma coisa nem outra. Do ponto de vista dos indivíduos ou grupos que o cometem, ele tende a ser considerado um ato de justiça, isto é, uma ação realizada para vingar uma agressão anterior e/ou preservar uma honra violada (Black, 1983; Rocha, 2017). Pesquisas realizadas em diferentes locais e momentos históricos mostram que alguns grupos sociais – especialmente jovens, do sexo masculino e de classe baixa – podem vincular a honra a noções de hipermasculinidade que prescrevem o uso da violência física como mecanismo de resolução de conflitos e defesa da reputação (Nisbett, 2008; Polk, 1999; Zaluar, 2001). Nesses grupos, matar ou mostrar disposição para fazê-lo em disputas interpessoais por honra e reputação serve ao propósito de aumentar o status social dos indivíduos e colocá-los em posição de dominância (Papachristos, 2009; Gould, 2003).
Disputas para a manutenção da honra e da reputação ganham contornos distintos quando envolvem indivíduos vinculados a gangues. Entre membros de gangues essas disputas podem se tornar conflitos grupais potencialmente capazes de produzir dinâmicas homicidas ascendentes. Isso ocorre principalmente porque ameaças e ofensas a membros de gangues passam a ser entendidas como um problema de todo o grupo (Decker, 1996; Manso, 2005; Papachristos, 2009). Nesses contextos, o assassinato de um membro de gangue representa uma ameaça ao status e à posição de dominância do grupo e dos indivíduos que o integram. Se o assassinato não for vingado, os membros da gangue perdem status e ficam fragilizados perante inimigos, que podem aproveitar a fraqueza para realizar ataques futuros. Já a retaliação rápida e enérgica ao assassinato aumenta a solidariedade do grupo, restaura o seu status e pode colocar novamente a gangue em posição de dominância. Como alguns grupos retaliarão agressões sofridas de modo a assegurar sua posição de dominância, os homicídios acabam se difundido no tempo e no espaço. Essa difusão ocorre por meio de mecanismos de contágio que operam em duas direções: gerando homicídios e atos violentos entre as partes em contenda ao longo do tempo (retaliação direta); e expandindo as agressões para além dos territórios e pessoas inicialmente envolvidas no conflito (violência generalizada) (Decker, 1996; Papachristos, 2009).
As próximas seções mostram como os processos sociais descritos acima ocorreram na região norte do município de Cambé. Pretendemos mostrar como conflitos intragangues, disputas por poder e status entre membros de gangues e, principalmente, as retaliações a assassinatos de membros de gangues contribuíram para as dinâmicas homicidas ascendentes verificadas em Cambé na década de 2000.
A dinâmica dos homicídios na região norte de Cambé[editar | editar código-fonte]
A curva dos homicídios relacionados a conflitos (interpessoais ou de gangues) ocorridos na região norte de Cambé captados em nossa amostra é basicamente a mesma registrada em Cambé entre 1991 e 20062. A correlação dos dados é extremamente forte (p de Pearson = 0.91!). Essas curvas podem ser divididas em duas fases: uma fase ante-rior à ascensão das bancas na cena criminal local, marcada por um número de homicídios relativamente baixo e estável (13 ocorrências na amostra e 54 no município entre 1991 e 2000); e a fase de atividade das bancas, caracterizada pela rápida elevação dos homicídios (36 ocorrências na amostra e 157 no município entre 2001 e 2006).
A dinâmica anterior às bancas (1991 a 2000)[editar | editar código-fonte]
A nossa amostra registra um total de 13 homicídios ocorridos na região norte de Cambé na fase anterior à dinâmica das bancas. Um deles resulta de retaliação para vingar a morte de um amigo anteriormente assassinado em uma briga entre jovens. Todos os demais estão relacionados a conflitos interpessoais com motivações diversas e que não resultaram em retaliações: discussões por motivos banais como uma “trucada ríspida” ou a expulsão em um jogo de futebol, competições por parceiras amorosas e disputas envolvendo honra. Vários desses homicídios estão relacionados a demonstrações públicas de hipermasculinidade nos espaços públicos de lazer frequentados pelos jovens da década de 1990. Essas demonstrações conferiam status aos seus protagonistas, chamados pelos adolescentes de bancas, que protagonizariam os conflitos da década seguinte dos “caras considerados”.
Os “caras considerados” são responsáveis por sete assassinatos nesse período. Apesar da disposição mostrada para usar violência em conflitos interpessoais – incluindo violência letal –, a maioria dos crimes cometidos por esses jovens não produziu dinâmicas criminais ascendentes. A situação mudou na década seguinte, quando os “caras considerados” foram sucedidos por outros jovens, com uma forma de organização distinta. Os grupos juvenis que nos anos 1990 se reuniam por afinidades, como o gosto pela dança (Black Line, Relâmpagos Funk, dentre outros), pela música (metaleiros, pagodeiros, rappers, dentre outros) ou por práticas espor-tivas (boleiros), deram lugar às “bancas” ou “ternos”. A emergência dessa nova forma de organização juvenil impactou profundamente a dinâmica local dos homicídios.
A dinâmica das bancas (2001 a 2006)[editar | editar código-fonte]
É difícil precisar a data de surgimento das bancas na região norte de Cambé. No ano de 1998, elas já estavam em atividade, formadas quase que exclusivamente por adolescentes e sem protagonismo algum na cena criminal. Já no ano de 2000, o cenário era outro, com ao menos sete delas em atividade (Figura 2). No bairro Ana Rosa concentravam-se cinco grupos: Banca dos Noias; Banca do Vareta; Banca do Cavalo Roubado; Banca do Dinho; e Banca Chapa Coco. No bairro Cambé IV situava-se a Banca do Ciganinho e no bairro Tupi a chamada Banca do Lelo. A Banca do Marcelinho emergiria apenas em 2002 e a Banca do Nitão, em 2004, ambas no bairro Ana Rosa. Como é possível notar, a maioria das bancas trazia nome de um de seus membros, um “líder”, mas não se organizava de forma hierárquica. Elas tinham como referência pontos fixos do espaço público, controlados a seu bel-prazer. Seus membros não eram necessariamente rivais e alianças ocorriam para combater inimigos comuns, para realizar deslocamentos para outros territórios ou em razão de afinidades variadas. Elas possuíam em média 20 jovens, alguns sistematicamente e outros esporadicamente envolvidos com atividades ilícitas como pequenos furtos, roubos, posse de arma, consumo e venda de drogas. O Gráfico 6 apresenta uma categorização de todos os homicídios registrados em nossa amostra no período de maior atividade das bancas (2001 a 2006). Essa categorização segue a literatura especializada (Maxson, 1999), dividindo os homicídios associados a gangues em dois grupos: (i) os “homicídios motivados por gangues”, que incluem crimes que têm relação direta com as atividades dos grupos, tais como aqueles resultantes de disputas por poder e status entre seus membros, retaliações vinculadas a “guerras” grupais e também os decorrentes de conflitos internos relacionados às atividades dos grupos; e (ii) os “homicídios relacionados a gangues”, que envolvem crimes não necessariamente motivados por conflitos entre ou intragangues, mas cujos autores e/ou vítimas eram membros de bancas no momento da ocorrência. Dos 35 homicídios registrados no período 2001 a 2006, apenas um não se enquadra em uma dessas duas categorias – um crime passional ocorrido no Ana Rosa em 2004. Os homicídios relacionados a gangues representam 26% da amostra e os motivados por gangues, 74%. Por razões substantivas (importância) e pragmáticas (limite de espaço), analisaremos apenas os homicídios desta última categoria.
Os homicídios entre gangues motivados por dominância[editar | editar código-fonte]
A nossa base de dados registra sete homicídios entre gangues que estão relacionados a disputas por status no mundo criminal e/ou são respostas a ofensas ou ameaças praticadas no contexto das relações de competição e domínio territorial das bancas. Dois casos representativos desses conflitos letais merecem ser destacados, pois envolvem o ator com maior centralidade nas dinâmicas homicidas da região norte da cidade. Dos 35 homicídios registrados entre 2001 e 2006, 21 (60%) tiveram pessoas ligadas ao grupo de Marcelinho como autores e/ou vítimas. A trajetória de Marcelinho exemplifica bem como disputas por dominância entre membros de gangues podem gerar homicídios.
Com apenas 14 anos, Marcelinho ascendeu na cena criminal local por meio de um lance ousado: matou um fornecedor de armas de outra banca em uma negociação para a compra de um revólver calibre 38. Depois da execução, pediu que seus comparsas acionassem a ambulância e alegassem que a morte havia sido um suicídio por roleta-russa – versão posteriormente aceita pela polícia. Esse assassinato tem caráter tanto instrumental quanto expressivo: por um lado, permitiu que o jovem se armasse para os múltiplos conflitos nos quais começava a se envolver; por outro, serviu para posicioná-lo na dinâmica das bancas como um jovem destemido.
O status que Marcelinho obteve com esse assassinato aumentou a sua capacidade de atrair outros adolescentes envolvidos em rivalidades interpessoais ou grupais. Em territórios marcados por disputas entre gangues, ascensões criminais dessa natureza podem ser interpretadas como uma ameaça à hegemonia de atores há mais tempo estabelecidos na cena criminal, desencadeando novos conflitos. Um conflito dessa natureza é a motivação do segundo assassinato cometido por Marcelinho. Dessa vez a vítima foi um jovem conhecido como Neguinho (21 anos), expoente da Banca do Cavalo Roubado, que havia construído a reputação de “rei” da zona norte com base em ações violentas contra rivais pessoais e rivais de sua banca, da qual se distanciou aos poucos para ações criminais solo. Depois de pouco mais de um ano fora das dinâmicas das bancas, por conta de um assalto malsucedido no qual foi baleado e preso, Neguinho tentou um retorno triunfal: assassinou um homem por ele supostamente ter se envolvido com sua amante à época; e escreveu em uma carta uma lista de 30 pessoas que mataria, incluindo Marcelinho e vários de seus parceiros de banca. Diante das ameaças de Neguinho, o grupo de Marcelinho tramou e executou seu assassinato em maio de 2003. Esse e os demais homicídios classificados como “motivados por dominância” não geraram retaliações. Situação distinta ocorreu com os homicídios descritos a seguir.
Os homicídios entre gangues motivados por “guerras”[editar | editar código-fonte]
Essa categoria reúne 15 homicídios (43% da amostra) tipicamente retaliatórios decorrentes de duas “guerras” travadas pela Banca do Marcelinho, uma com a Banca do Lelo e outra com a Banca do Nitão. São os casos mais numerosos (43% da amostra) e de maior impacto na dinâmica local dos homicídios. Além dos 15 homicídios registrados no período 2002 a 2006, diretamente associados a essa dinâmica, há outros dois casos ocorridos em 2010 e 2012. A Tabela 1 apresenta esses 17 homicídios retaliatórios, o tempo transcorrido entre os crimes e os locais das ocorrências. A “guerra” entre a Banca do Marcelino e a Banca do Lelo foi mais curta (menos de um ano entre o primeiro e o último homi-cídio) e menos sangrenta (quatro vítimas fatais, duas de cada lado). Ela seguiu linhas bastante territorializadas, opondo os bairros Ana Rosa (Banca do Marcelinho) e Tupi/Cambé IV (Banca do Lelo e aliados rivais do grupo do Marcelinho). A motivação inicial do confronto foi assim descrita por um interlocutor:
- “Interlocutor IV: Essa treta começou, Indião, assim, eu sei um pedaço dela. Você lembra de um lugar perto da garagem da TIL, que tinha sinuca, essa briga começou ali. Pesquisador: Não era droga então [o estopim do conflito]? Interlocutor IV: Não, não! Era ‘treta’ mesmo, foi ‘treta’ de birra, essa aí é briga de gangue mesmo, não teve droga no meio. Que na verdade uns traficava aqui, outros traficava lá, e não tinha isso aí”.
Os operadores do sistema de justiça criminal e a mídia tendem a atribuir os assassinatos de pessoas envolvidas com o crime a disputas instrumentais relacionadas ao mercado de drogas. Entretanto, nos territórios com gangues esses conflitos podem começar com brigas banais relacionadas à manutenção da honra ou reputação. Esse foi o caso da “guerra” entre os grupos do Marcelinho e do Lelo, iniciada por causa de olhares atravessados em uma casa de jogos na divisa da região norte com a região central de Cambé. Dias depois da troca de insultos mencionada pelo Interlocutor IV, Adilsinho (25 anos), membro do grupo de Lelo, foi flagrado em um bar no bairro Ana Rosa e morto pelo grupo do Marcelinho. Esse homicídio gerou três outros em um período de 337 dias. O mais emblemático foi o que vitimou Lelo (28 anos), assassinado publicamente em um bar movimentado da região central de Londrina.
- “Pesquisador: Você lembra dessa cena do Coelho e do Lelo? Interlocutor IV: Do Coelho e do Lelo? Eu lembro sim, contado pelo próprio cara que tava junto. Ele diz que eles tava seguindo o Lelo, seguiram o Lelo um tempo, daí não achou. Aí, não lembro quem foi, liga pra ele [Coelho] e fala que o Lelo tá [no bar]. Aí eles saem de carro daqui e vai lá. [...] Tinha um cara lá de dentro [infiltrado] pas-sando a informação [...] na mesa tinha um traidor [...] eu lembro que quase pega tiro nele. Ninguém ia matá, eles ia esperar sair, seguir, e atirar. Daí o Coelho pega a pistola e fala assim: ‘Qui, eu vou entrá lá dentro e vou matá ele, sabe por que vocês não mata ele? Porque toda vez vocês fica querendo espera não ter gente perto, eu vou entrar e vou matá’ [...] Daí ele [Coelho]: ‘Dá aqui essa pistola’ [engatilhou] e foi. E entra e atira no cara no meio de todo mundo [...] depois eles saem e fazem um churrasco.”
Esse homicídio é ilustrativo do modo como as “guerras” entre gangues contribuem para a difusão dos homicídios não apenas no tempo, mas também no espaço. Como mostra a Tabela 1, 12 dos 17 homicídios relacionados diretamente às “guerras” de gangues ocorreram na própria zona norte de Cambé (71%), indicando a natureza predominantemente intracomunitária desses crimes. Entretanto, em alguns casos a violência letal transborda o território de origem das gangues e se manifesta em locais como o sistema prisional (quando alvos de retaliação estão presos), outras regiões da mesma cidade ou cidades da mesma região metropolitana. Embora as gangues sejam grupos fortemente vinculados aos seus territórios, seus membros se deslocam pelo espaço urbano. Ao fazê-lo abrem possibilidade para que os homicídios retaliatórios se difundam no espaço. Esse fenômeno explica parcialmente as semelhanças existentes nas curvas de homicídios de um mesmo conglomerado urbano – no nosso caso, Cambé e Região Metropolitana de Londrina. A menção do Interlocutor IV ao fato de o grupo do Marcelinho ter comemorado a morte de Lelo com um churrasco também é reveladora do modo como os crimes retaliatórios repercutem no interior das gangues e alimentam os conflitos. Eventos comemorativos desse tipo foram diversas vezes organizados pela Banca do Marcelinho para celebrar a morte de opositores. No contexto das rivalidades entre gangues, esses rituais servem ao propósito de revigorar o senso de pertencimento à banca, sua identidade e disposição para retaliar qualquer ofensa ou ameaça aos seus membros. Essa disposição é particularmente visível em vários atos praticados por membros da Banca do Marcelinho, bem como no protagonismo do grupo nas “guerras”. Logo após a execução pública ocorrida em Londrina, por exemplo, jovens ligados a Marcelinho violaram o túmulo de Lelo para deixar, ao lado do corpo, um recado para o seu braço direito: “Valdinho-Demorô-Morreu”. Esse ato “covarde”, por sua vez, explica a última retaliação registrada nessa “guerra”: o assassinato de Costelinha (16 anos), protagonista do episódio de violação do túmulo, por membros do grupo do Lelo pouco mais de três meses depois da execução de seu líder. A “guerra” entre a Banca do Marcelinho e a Banca do Nitão foi bem mais intensa e gerou dinâmicas retaliatórias mais longas, como mostra a Tabela 1. Ela vitimou 13 jovens, sete do lado de Marcelinho e cinco do lado de Nitão. Dentre as vítimas do lado de Nitão estão Chepa (28 anos) e Bola (35 anos), mortos, respectivamente, seis e sete anos depois do homicídio que marca o início do embate grupal. Esse homicídio inicial foi antecedido pelo assassinato do Skatista (19 anos; Banca do Nitão) por Branco (20 anos; Banca do Marcelinho), que mata para antecipar um possível ataque ao seu irmão, que anteriormente havia desferido “alguns tapas na cara” de Skatista. Esse homicídio não foi imediatamente retaliado pelo grupo de Nitão. Primeiro, porque o Skatista não tinha relações fortes com o grupo de Nitão; era um jovem oriundo de São Paulo, que havia se mudado para a casa dos avós em Cambé depois que os pais foram assassinados. Segundo, porque a Banca do Nitão não dispunha, naquele momento, de recursos para iniciar uma “guerra” com a Banca do Marcelinho, que reinava absoluta na cena criminal da zona norte de Cambé. Essa assimetria de poder e reputação entre as duas bancas é crucial para entender o estopim da “guerra”.
- “Interlocutor I: Nitão e Marcelinho? Foi porque do Lagartixa. [ele] ‘tirava’ eles pra macaco, né? ‘É seus macacos’, tirava os mole-ques. Porque os moleques era mais destaca-dão também, né? Não tinha uns pano, não dava rolezão e tal. ‘É seus mendigos’, ‘cadê as espingardas veia’. Porque eles [Banca do Marcelinho] estavam no auge naquela época, né? [...] você lembra, também, uma vez que a gente bateu o carro do Mineiro, isso foi uma das inflamadas [...] pra virar a ‘treta’ do Nitão. O Mineiro tinha comprado um Uno vermelho e nóis falou assim ‘vamo roletá todas as avenidas’ [...]. Roletamo atravessando tudo, nóis roletô tudo, chegou na Jacomo Rosine nóis bateu no Chevette do Boy. Nóis desceu do carro [...] aí eu saí assim e fui batê no Boy ‘tá loco, mano’, [Boy]: ‘oh, é avenida, mano, cêis tá errado’. [Interlocutor I]: ‘vocêis vai pagá o bagulho e é o seguinte, vocêis tá na obrigação’. [...] aí nisso o Boy foi e comunicou o Lagartixa, porque o Boy ‘colava’ com os caras. O Lagartixa comuni-cou o Mineiro: ‘É o seguinte, ninguém vai pagar nada e você tá na obrigação de pagá o Chevette’. Aí o Mineiro chegou em mim e ‘deu a voz’, falei assim: ‘Demorô, então, nóis vai catá o Lagartixa’. Aí nisso ele nem procurô eu, procurô o Nitão e os caras. Daí o Nitão desceu e deu tiro no braço do Lagartixa [risos]. Aí começou essa guerra, ‘ah, os neguim tá querendo guerra’, aí os caras subiam lá e dava tiro na casa do Nitão.”
A Banca do Nitão até então não figurava entre as mais populares da região. Ela era formada por um pequeno grupo de jovens tratados como escória entre as bancas e frequentemente desrespeitados pelos adolescentes da Banca do Marcelinho. O pequeno grupo era formado, basicamente, por colegas moradores da mesma rua, aos quais se atribuiu o envolvimento em pequenos assaltos e o homicídio de um homossexual na região central – o que não é consenso entre os interlocutores. Às ofensas aos adolescentes que andavam com Nitão se somou o evento inesperado narrado pelo Interlocutor I. Esses fatores geraram a primeira agressão de Nitão contra o grupo de Marcelinho: um tiro no braço de Lagartixa. Depois disso, o grupo do Marcelinho deu início a uma série de ataques. O primeiro foi para mostrar seu poderio bélico a Nitão, que teve a casa alvejada por dezenas de disparos de arma de fogo. Ninguém foi vitimado no ataque, mas por conta dele a família de Nitão abandonou o bairro Ana Rosa às pressas. Embora longe do epicentro do conflito, a família de Nitão contribuiria para a “guerra” mais adiante, levantando recursos financeiros para a compra de armas, na esperança de contrabalançar o poder dos rivais, que financiavam suas atividades por meio da venda de drogas e assaltos. O primeiro homicídio dessa guerra foi ocorrer tempos depois, com Zoinho (20 anos; Banca do Marcelinho) matando o Vermelhinho (23 anos; Banca do Nitão) no início de setembro de 2004. Esse assassinato foi sucedido pelos 11 outros descritos na Tabela 1. Marcelinho (15 anos) seria morto pelo grupo de Nitão um ano e sete meses depois, junto com o tio (38 anos), em frente à sua casa. Seis meses depois seria morto seu irmão. Nitão, por sua vez, sobreviveu ao conflito, mas perdeu o irmão, Nitinha (19 anos), assassinado em outubro de 2010 em um tiroteio ocorrido em um posto da região central de Cambé, que feriu aleatoriamente outras três pessoas que estavam no local. Os assassinatos de Marcelinho e Nitinha ilustram como conflitos de gangues também contribuem para a difusão da violência por meio da vitimização de pessoas de fora do conflito.
Os homicídios intragangues[editar | editar código-fonte]
Além das dinâmicas homicidas descritas anteriormente, territórios marcados pela presença de gangues também são impactados pelos conflitos intragangues com desfecho letal. A nossa amostra registra quatro homicídios dessa natureza entre 2001 e 2006. Dois casos são suficientes para mostrar como esses conflitos podem ocorrer. O primeiro envolveu uma desavença relacionada ao consumo de drogas, atividade comum entre os membros da chamada Banca dos Noias, que levou Per-neta (22 anos) a matar Alexzinho (27 anos) a golpes de faca. “Os dois estavam tomando cachaça quando decidiram comprar uma pedra de crack para fumar. Perneta teria empres-tado cinco reais para Alexzinho comprar a droga. Só que Alexzinho acabou fumando sozinho”, contou o delegado da época. O homicídio ocorreu em março de 2002. O segundo caso foi uma “queima de arquivo” dentro da Banca do Nitão, datada em setembro de 2006. O homicídio envolveu dois jovens, Noinha e Beringela, que antes tinham tramado e executado a tiros um membro da Banca do Marcelinho chamado Branco (23 anos). O autor do disparo foi Noinha; Beringela, por sua vez, apenas “passou um pano”. Meses depois Beringela matou a pauladas Noinha, que supostamente estava “falando demais” sobre o assassinato de Branco.
Considerações finais[editar | editar código-fonte]
O estudo de caso que realizamos em Cambé revela que as dinâmicas homicidas são fortemente impactadas por conflitos intragangues; disputas por poder e status entre membros de gangues; e, principalmente, por “guerras” de gangues que geram ações e reações que difundem a violência letal no tempo e no espaço. Esse efeito de contágio produzido pelos conflitos de gangues explica em grande medida por que a violência letal cresce e persiste por períodos relativamente longos em determinados territórios. Os homicídios retaliatórios típicos das “guerras” de gangues formam redes de conflitos grupais que persistem independentemente da morte ou prisão de seus membros. Nesse sentido, políticas públicas meramente repressivas baseadas na prisão de membros de gangues tendem a ser ineficazes. Dinâmicas homicidas motivadas por gangues demandam políticas públicas mais amplas, capazes de combinar repressão qualificada, ações de mediação voltadas à interrupção da reciprocidade violenta e intervenções sociais focalizadas em jovens. O desenho de políticas com essas características demanda grande capacidade de governança por parte de atores estatais e não estatais com responsabilidades diretas ou indiretas na área de segurança. Infelizmente, no Brasil essa capacidade tem sido problemática.
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Referências[editar | editar código-fonte]
- ↑ O material empírico foi produzido pela dissertação de Ferreira (2018). Este artigo é um subproduto da dissertação.