Participação Pacificada

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 19h19min de 15 de abril de 2020 por Caiqueazael (discussão | contribs)

Autoras: Sonia Fleury e Juliana Kabad.

A implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) como parte da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, a partir de 2009, pretendeu apresentar em seu escopo um componente de mobilização social,promoção do desenvolvimento local, redução das desigualdades sociais e ampliação dos direitos da cidadaniapor meio dos programas UPP Social e Territórios da Paz. Mesmo sendo uma política pública fortemente vinculada aos interesses empresariais, a inclusão da participação social como cerne da proposta de segurança pública singularizou essa política.

Compreender a participação requer, primeiramente, o exercício de definição de um conceito tão fluido, frequentemente nominado como participação social, popular ou cidadã. Ainda que a noção de participação seja constitutiva da teoria democrática, seu significado varia grandemente, o que dá lugar a diferentes traduções institucionais. Estas variações, ao longo do tempo e do espaço, dão forma à arquitetura da participação em cada país. Para a análise das políticas públicas assumimos que a participação trata da relação entre Estado e sociedade civil, corporificada em estruturas institucionais que permitem a interação entre agentes governamentais e usuários, individualmente ou como membros de organizações da sociedade civil. As instituições participativas são canais ou espaços criados para esse intuito, mobilizados pelo poder público ou pela sociedade civil, nos quais as variações na participação dependem de inúmeros outros fatores. Fundamentalmente, o que diferencia os vários tipos de participação é sua posição em relação ao eixo que vai da manipulação ao compartilhamento do poder.

A articulação de diferentes atores, públicos e privados surgiu naquele contexto como imprescindível ao aumento da efetividade e a eficácia da ação das UPPs. Por isso, a política de pacificação envolveu um componente de articulação interinstitucional com participação de distintos atores governamentais e não governamentais, e outro componente que se referiu à ampla mobilização de moradores e setores empresariais e filantrópicos, vistos como prioritários para o sucesso do programa. O grande apoio dos meios de comunicação às ações do programa e o envolvimento de atores da elite empresarial e intelectual também foram um traço distintivo dessa política.

A existência simultânea de dois programas –UPP Social e Territórios da Paz– com a função de intermediar a relação das favelas pacificadas com o governo, evidencia a falta de coordenação, característica da debilidade da gestão das políticas sociais. As diferenças entre os dois programas localizam-se mais no plano da execução do que na concepção da proposta que ocasionou, com frequência, confusão entre moradores e entre os próprios militares a esse respeito, em uma visão comumente sintetizada na fala: “é tudo UPP”.

A implantação das UPP´s nos territórios foi seguida de um conjunto de transformações urbanas e habitacionais, financiadas em convênios do governo estadual com o governo federal (como o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC das Favelas). Outros programas dos governos regional e local também se dedicaram à melhoria da infraestrutura nas favelas, sendo responsáveis pelas melhorias habitacionais, de saneamento básico e da mobilidade, com a abertura de ruas, pavimentação, construção de teleféricos e bondinhos – boa parte destasações também adotaram estratégias de participação. É muito frequente encontrarmos, no campo das políticas sociais, esse efeito de metástase institucional, onde a duplicação de funções em cascata revela fragilidades e baixa prioridade, apesar de ser apregoado justamente o contrário, como justificativa para a institucionalização de programas superpostos.

Contudo, do ponto de vista das populações atendidas pelas UPPs, evidências empíricas em diferentes comunidades, indicouuma diversidade de significados atribuídos à participação, bem como, a coexistência de contradições entre o modelo preconizado de governança participativa e sua subordinação a um processo de militarização da participação popular.

Observou-se diferentes modos de participação nesse processo, seja como aproximação, negociação constante, enfrentamento direto, construção de vínculos afetivos e interpessoais, entre outros formatos. O repertório de interações possíveis entre agentes públicos e moradores é variado, incluindo o controle e coerção, convencimento e transmissão de normas de boa conduta, passando por alianças e identificações entre gestores sociais e grupos comunitários. Esses últimos, por sua vez, assumem múltiplas estratégias que envolvem ações de resistência, adesão, clientela, barganha, legitimação, entre outras formas de adequação ao novo quadro institucional inaugurado pela política de pacificação.

A UPP se propôs a atuar como polícia de proximidade, prevendo espaços de diálogo e de participação comunitária, cujo resultado final, além de alterar a imagem da polícia poderia, inclusive, propiciar uma nova estrutura de poder local.A instalação de uma unidade permanente da PM nas favelas orientava-se pela ocupação militar do território e pela alteração da relação anterior entre agentes públicos e a população, caracterizada pelas tradicionais incursões com confrontos entre policiais e narcotraficantes, vistas pela população como desorganizadoras de suas rotinas de vida e ameaçadoras de sua integridade. Essa relação de confronto entre a PM e os moradores gerou estereótipos mútuos, e um grande potencial de conflitos que ainda persiste. 

A aproximação recomendada pela PM se expressa na oferta das instalações da UPP para realização de cursos para as crianças, de música e aulas de judô, por exemplo, algumas vezes ministradas pelos próprios agentes policiais. Esta ação é compreendida como uma forma de participação que pretende estreitar laços entre os agentes policiais e moradores, por vezes autorizados a fazer até mesmo reuniões comunitárias nas unidades policiais. Como uma forma de aproximação, alguns comandantes chegam a oferecer um café da manhã para permitir o encontro na UPP com os moradores. Lideranças comunitárias veem como positiva a busca de aproximação, especialmente para o aperfeiçoamento da postura dos policiais para com os moradores, contudo, denunciavam a inocuidade de muitas dessas medidas, sendo que por vezes nem mesmo o comandante que os convidou está presente aos encontros. Existe descrédito existiu também por parte de alguns comandantes que descreem da eficácia da participação, e manifestaram seu menosprezo acerca da efetividade dos fóruns comunitários convocados pelos programas de gestão social.

Nas políticas de urbanização, apesar de prever a participação dos moradores, a população denunciava com frequência a falta de esclarecimentos sobre os projetos das obras, ocorrendo casos nos quais sequer o projeto foi apresentado, apesar da constante solicitação dos moradores. A mobilização da população em busca de informações sobre remoções e obras em geral chega a ser vista como um problema por alguns técnicos. Resistências às remoções, não aceitação das propostas de negociação apresentadas pelas empresas ou encaminhamento de alterações na proposta original são atitudes vistas como um problema a ser enfrentado com autoridade e coerção. As organizações comunitárias, por outro lado, utilizaram tanto recursos técnicos, como contralaudos, para anular diagnósticos de exposição a riscos quanto recursos políticos, como o apoio de parlamentares e o acionamento da Defensoria Pública e do Ministério Público para se contraporem às mudanças projetadas. Dessa forma, procuravam aumentar seu poder de barganha e vencer a fragmentação existente dentro de cada favela. Para enfrentar a falta de articulação entre as favelas buscaram a construção de redes de resistência, articulando lideranças comunitárias de várias favelas, agentes governamentais, ONGs e intelectuais.

O Programa da UPP Social foiconcebido como uma modalidade matricial de governança, capaz de reunir e articular políticas e inovações institucionais nas áreas de segurança, urbana e de participação social. O fato de se coordenarem em um mesmo território, em um ambiente participativo e com o envolvimento do setor empresarial, seria a grande novidade da política de pacificação, operada pelos programas de gestão social. Seu modelo de atuação envolveu a metodologia da escuta sistemática das demandas da população e sua articulação com as diferentes frentes de ofertas de bens pelos poderes público, privado e terceiro setor, por meio de fóruns, ouvidorias e apoio a organizações e ações cidadãs desenvolvidas em cada comunidade.

Contudo, verificou-se, impedimentos à participação efetiva da população como um problema recorrente, seja em horários inadequados ou mesmo na disposição do espaço e do direito à voz.A atitude de enfrentamento era vista por muitos moradores como a forma mais eficaz para aumentar sua capacidade de participação, na medida em que buscavam ser assim escutados e reverter decisões políticas já tomadas. Já os responsáveis pela participação viam essa atitude como problemática e buscavam convencer os moradores a aceitarem as decisões, esvaziando lideranças e buscando interlocutores apropriados conforme os seus interesses ou, ainda, construindo espaços de negociação que desmobilizem a população.Ainda que algumas iniciativas e projetos promovidos por ambos os programas pudessem obter melhores resultados, especialmente entre os mais jovens, verificou-se uma distância grande entre o que o programa pretendia em teoria e o que seus gestores e representantes conseguiam implementar na prática, em constante colisão com as expectativas e anseios dos moradores atendidos por esses programas.

Uma das primeiras atividades da UPP Social nas favelas foi a revisão do arruamento existente e a convocação da população para dar novos nomes às ruas, gerando endereços antes inexistentes. Essa tradicional demanda cidadã por um endereço reconhecido se somou à necessidade empresarial de cobrança de serviços e instalação de relógios como os de energia elétrica pela empresa responsável pelo seu fornecimento no município. Tal empresa é uma das grandes beneficiárias, junto com as provedoras de TV a cabo, deste processo de formalização das antigas ligações clandestinas. Representantes dessas empresas compareceram aos fóruns participativos, estabelecendo assim relações de proximidade com os moradores. A tal ponto que em um Fórum Social no qual se discutia o aumento abusivo das contas de luz foi observado pelos moradores que era necessário distinguir a simpática figura do funcionário, já conhecido de todos, do interesse lucrativo da empresa na comunidade.

A expansão do mercado foi parte intrínseca do processo de pacificação, com a formalização das relações de fornecimento de diferentes serviços públicos e dos negócios já existentes, além da expansão de novos negócios por parte de empresas interessadas ou de empreendedores locais. Estas e outras empresas participam do projeto de pacificação como parte da sua “responsabilidade social”, misto de marketing e dispositivo ideológico, visto com grande entusiasmo pelos gestores sociais como parte das iniciativas de superação da partição social e urbana, por meio da oferta de oportunidades à população local. A participação das empresas é também concebida pelos gestores públicos como expressão de sua adesão ao projeto de pacificação.

Portanto, participar nesse contexto, significa aderir ao projeto, seja por financiamento direto às UPP, seja gerando ofertas, ainda que esta oferta não tenha sido construída de acordo com as necessidades locais. As resistências dos moradores ou mesmo o esvaziamento de alguns cursos e projetos desenvolvidos pelo mercado são vistas como falta de interesse da população, a serem superados por meio do diálogo e convencimento. Aausência quase sistemática da participação, nos Fóruns Sociais, de profissionais vinculados aos sistemas públicos de saúde e educação mostra claramente que o social passa a ser significado a partir do modelo de consumo e coerção.

Para os moradores e lideranças locais, os fóruns são espaços a serem ocupados, mesmo quando não os veem como participação democrática, por considerarem que não há compartilhamento do poder decisório com os moradores. Enquanto uma das gestoras locais chega a afirmar que a metodologia de escuta-forte é o melhor exemplo de exercício da democracia, alguns moradores tinham consciência de que o poder decisório continuava restrito, já que os gestores dos Fóruns da UPP Social detinham o controle sobre a agenda e a pauta dos debates, a metodologia de discussão, o horário da reunião, a disposição dos assentos, os convidados que estavam autorizados a falar e o tempo de fala.

Os moradores, mesmo quando não autorizados a fazer uso da fala nos Fóruns, utilizavam outros recursos de poder, algumas vezes apenas simbólicos, de forma a reverter esta situação e introduzir suas demandas na agenda dos encontros. Um caso emblemático foi, em um dos fóruns realizados em uma das comunidades estudadas, a presença muda de um casal que estava prestes a ser removido de sua habitação. Tal presença era suficiente para atuar como fato gritante, representativo das relações de interdição dessa temática no evento. Com sua força silenciosamente expressiva, conseguiram impor a discussão sobre a remoção em todos os fóruns participativos, pois, invariavelmente eles terminavam sendo chamados a falar sobre seu drama por alguns daqueles que haviam sido autorizados a ter acesso ao microfone.

Não foram, porém, essas limitações na participação que comprometeram a efetividade do programa da UPP Social ou foram responsáveis pela sua mudança de rumo nas favelas. Ao contrário, a participação da população terminou por ensinar aos gestores que novos rumos deveriam ser buscados para permitir a interação.  Prevaleceu, aos poucos, a percepção dos fóruns como ineficientes, que só aconteciam esporadicamente e que não ultrapassavam o efeito catártico, sem impacto nas políticas públicas. De acordo com os gestores, os fóruns foram avaliados como inoperantes e a partir de então mudaram de tácita, passaram da escuta-forte a fazer a escuta-qualificada, realizando visitas às casas e em conversas diretas com os moradores.

Distinguem-se nos territórios estudados algumas ONG que têm projetos locais e algumas das organizações comunitárias construídas por moradores, por destoarem dessa lógica e se caracterizarem por uma atuação crítica com vistas à formação e consolidação da consciência cidadã. Sem deixarem de atender à convocatória para participação nos fóruns ou de estarem envolvidas no projeto de pacificação, estas organizações tentaram manter uma posição de independência crítica, dando maior atenção às necessidades políticas da população. As discussões e os conflitos sobre que tipo de integração estaria sendo proposta aos moradores constituem-se em analisador natural dos diferentes projetos políticos que atravessam a comunidade: uma integração subordinada e descaracterizada, uma integração via mercado que poderia ser insustentável e levaria à remoção branca; uma integração que respeitasse a identidade e reconhecesse a existência prévia de vínculos da favela com o “asfalto”, enfim, que respeitasse a identidade e singularidade da sociabilidade construída pelos moradores.

Do ponto de vista da população, foi possível observar frequente desconfiança e insatisfação com relação à concepção da política de pacificação, quando considerada libertadora da população local, desconhecendo a história de resistência que haviam construído. Em um seminário, uma moradora que participa de grupo comunitário de ação cultural diz que retirou a palavra “agora” do seu dicionário, de tanto ouvi-la de forma inapropriada, como se tudo tivesse começado depois da pacificação, desconsiderando todo um passado de lutas e resistências populares.

O fato de serem interpelados a participar em inúmeras instâncias, a inocuidade dos levantamentos de dados, reiteradamente realizados, e a incapacidade dos gestores de mobilizar as autoridades responsáveis pelas políticas que realmente são demandadas pelos moradores, foram fatores apontados como críticos na falta de efetividade da atuação social. A coleta de dados sobre os moradores foi percebida como controle social, que não assegura efetividade das políticas, mas que permite aos técnicos mostrar aos superiores sua produção. Alguns moradores se recusam a dar novas informações.

O programa Territórios da Paz se diferencia da UPP Social por ter construído uma proposta que incorporou aprendizados das experiências dos primeiros gestores sociais e que visou à promoção de políticas públicas de forma participativa, sendo o gestor social um mobilizador de redes comunitárias e formador de capital social. Nessa concepção, o trabalho social, ao invés de centrar-se no levantamento de demandas e alocação de ofertas, volta-se para o papel do gestor como articulador de redes comunitárias que desemboquem em políticas públicas.

Essa estreita relação dos gestores do Territórios da Paz com as redes comunitárias, foi, porém, criticada por gestores e funcionários da UPP Social que viram nessa atuação uma forma “política” ao invés de uma ação governamental técnica. Os gestores dos Territórios procuram também se diferenciar dos gestores da UPP Social por serem funcionários de carreira, enquanto os últimos eram contratados por um programa das Nações Unidas, o que acarretava elevada rotatividade das equipes de campo. A tensão entre agir como governo ou tomar partido em favor da população foi permanente neste trabalho. As críticas à forma de atuação do “outro programa de gestão social” manifestam-se no campo, como uma clara disputa de espaços e de legitimidade entre os dois programas. Observou-se que, quando se trata de problemas bastante pontuais, como por exemplo, alguma deficiência específica em alguma prestação de serviços, os gestores de ambos os programas conversam entre si e juntos encaminham as demandas tanto para a prefeitura como para o estado. Contudo, verificou-se que os programas não atuaram de maneira articulada quando se tratava de demandas que viessem a alterar o planejamento e a execução de políticas públicas, o que colabora para a fragmentação das políticas sociais e para o fortalecimento da concepção setorial que predomina no setor público – aspectos fortemente criticados no projeto dos idealizadores de ambos os programas.

Se bem a participação dos gestores dos Territórios representou crescente identificação com as demandas dos moradores, fortalecendo sua organização em torno do fato catalisador, ao encaminharem a demanda ao órgão competente os gestores de campo perdiam o controle sobre como esta seria tratada no interior do governo. Ao colocar a população em contato com o órgão governamental responsável, o gestor social terminava propiciando, paradoxalmente, a desmobilização da, quase sempre frágil, ação coletiva. Isto porque o governo não aceitava negociar a demanda com o coletivo, exigindo a eleição de um representante, ou mesmo indicado diretamente um morador para ser seu interlocutor, operando a seletividade ao tornar técnicas demandas políticas. A empatia dos gestores dos Territórios com a população encontrava, como limite de sua ação, a barreira da política pública que eles não alcançavam transformar. Ao contrário, por não se articularem em uma atuação social conjunta, o acirramento da disputa e a sobreposição das ações expunha a fragilidade e debilidade da proposta de articulação interinstitucional de órgãos com a mesma incumbência e baixa capacidade resolutiva, o que ocasionava maior desgaste institucional e um aumento significativo da descrença da população frente aos programas sociais.

Um exemplo da atuação de gestores do Territórios da Paz pode ser encontrado no “Dá Teu Papo”, coletivo associativo de jovens das comunidades do Chapéu Mangueira e Babilônia. Idealizado por jovens envolvidos com produção cultural naquelas comunidades, recebeu o apoio das gestoras locais por possibilitar o fortalecimento de iniciativas locais e da organização política comunitária. De uma iniciativa autóctone se transformou, na linguagem oficial, em um “projeto”, em parceria com gestores dos Territórios. Segundo seus idealizadores, as gestoras locais eram vistas como parceiras muito mais devido a características pessoais do que do ponto de vista institucional. Essa percepção foi partilhada por muitos moradores para os quais o “apoio” de gestores era visto como um atributo de determinado gestor e não um traço da institucionalidade.  Igualmente, outro projeto considerado de destaque para o programa foi o Plano Estadual de Memória, oriundo de demandas dos moradores para os quais a recuperação de sua memória reforça e valoriza aidentidade coletiva. Porém, estas demandas rapidamente assumiram a feição de proposta do programa e se estenderam para todas as comunidades atendidas pelo Territórios da Paz -TP, independentemente de ter surgido ou não como demanda dos moradores. Novamente se coloca a seletividade das instituições políticas, que destituem as demandas de seu conteúdo político ao transforma-las em projetos governamentais.A queixa de lideranças comunitárias sobre o papel dessas iniciativas do TP se refere ao fato de que o associativismo comunitário, tradicional meio de organização e defesa dos interesses dessas populações, passa a ser deslocado para o interior de iniciativas estatais, enfraquecendo o capital social autóctone, cuja confiança foi gerada nas lutas comuns pela melhoria da qualidade de vida.

Observamos que enquanto em umas favelas os programas sociais se superpunham, em outras se encontram ausentes. A intenção de fortalecer o capital social era traduzida na ação dos TP na concepção do programa como “incubadora de projetos sociais”, resultantes da estreita relação estabelecida entre moradores e gestores. O “social” aqui se refere muito mais às ações coletivas comunitárias do que a oferta de serviços públicos, muito embora os gestores públicos venham assumindo um papel de mobilizadores, que tradicionalmente fora desenvolvido pelo associativismo local nas favelas.

Os gestores foram unânimes em apontar esse aspecto como a marca do seu trabalho, ao qual é atribuída fundamental importância para o processo participativo da população. Em suas percepções, o principal desafio para sua atuação era aconstrução do vínculo, pois percebem desconfiança generalizada da população a respeito do propósito das suas ações, identificando que há um primeiro momento de desconfiança, depois ocorre o teste, em que os gestores são colocados em situações em que precisam se posicionar politicamente e, caso conquistem alguma confiança dos moradores, encontram abertura para participar de espaços e mobilizações até então exclusivas dos moradores.

No entanto, os moradores das quatro comunidades apontam que gestores sociais não conseguem responder às demandas levantadas por eles, tais como a falta de luz ou de coleta de lixo, seja porque desconhecem a atuação dos órgãos responsáveis, seja porque não há dialogo com eles, o que inviabiliza o trabalho de mediação e consequentemente o alcance de uma resposta concreta. Essa interação entre os gestores e grupos comunitários não deixa de afetar as formas de organização e as identidades dos sujeitos políticos. Progressivamente, observa-se que muitas lideranças locais passaram a utilizar a linguagem tecnocrática ao invés do discurso político: falam em projetos ao invés de mobilizações coletivas, de gentrificação ao invés de remoção, memória ao invés de identidade de favelados.

Os arranjos institucionais destes programas limitam as possibilidades de ação dos gestores sociais pela ausência de recursos de poder para cumprir sua missão de canalização das demandas e articulação da resposta governamental.  Esta fragilidade institucional se expressa em contratos temporários, deslocamento de programas e de dirigentes por critérios políticos, superposição de ações, ausência de projetos e estratégias institucionais e sua substituição por iniciativas personalizadas. Assim, os programas exibem baixa efetividade tanto na inclusão das demandas quanto na solução das questões estruturais e conflitos apresentados pelos moradores, demonstrando eficácia limitada apenas em relação a demandas pontuais.

A ineficácia também pode ser atribuída à falta de clareza em relação à ação social, que ora se reduz à legitimação da estratégia policial junto à comunidade, ora se limita a buscar parcerias entre entes públicos e privados, vistos como indispensáveis para gerar melhores oportunidades para os moradores. Nesse sentido, a efetividade dessa política social é também comprometida pelo seu distanciamento em relação ao paradigma das políticas sociais universais, fundadas nos direitos de cidadania – saúde, assistência, educação – áreas que se mantiveram, regra geral, alheias a essas iniciativas desenvolvidas nos territórios pacificados.

A ênfase na busca de laços de afetividade entre agentes governamentais e moradores terminava em uma militância política por parte dos gestores e na progressiva adoção de seus modelos técnicos por parte dos moradores. Essas relações muitas vezes esvaziavam o associativismo local, forjado em uma história de resistência, deslocando-o para o interior das políticas públicas, cuja seletividade estrutural destitui as demandas do seu conteúdo político e reformata-os como projetos governamentais. Porém, a própria existência desses espaços, ainda que limitados e controlados, cria uma esfera pública onde identidades prévias são resignificadas e novos sujeitos, práticas, alianças e projetos podem emergir.

Nesse sentido, observou-se que quanto mais tais programas se distanciavam da proposta de controle ostensivo, mais abriam um espaço para construção de arenas públicas, nas quais o significado da participação é disputado. No entanto, também é certo que quanto mais se afastam do controle, apresentam menor efetividade no cumprimento da sua missão institucional e frustram compromissos assumidos com a população nas arenas participativas. O repertório de interações possíveis entre agentes públicos e moradores é variado, incluindo o controle e coerção, convencimento e transmissão de normas de boa conduta, passando por alianças e identificações entre gestores sociais e grupos comunitários, Esses últimos, por sua vez, assumem múltiplas estratégias que envolvem ações de resistência, adesão, clientela, barganha, legitimação, entre outras formas de adequação ao novo quadro institucional inaugurado pela política de pacificação. Disputas em relação à identidade coletiva revelam diferentes formas de ajustamento acerca da interpelação que a política de pacificação direciona aos moradores sob o lema da integração da favela à cidade.

Finalmente, apesar dos programas sociais se fundamentarem na diretriz da participação, podemos constatar que, longe de ser é um traço intrínseco ao desenho e implementação da política, a participação nesse contexto possui um caráter altamente pacificado, onde não há espaço para o conflito, o contraditório e a diversidade. Observou-se que, só deixa de ser pacificada, quando ela expressa a existência prévia do associativismo local na forma de movimentos organizados, de tal modo a se impor, de forma autônoma e organizada às políticas públicas territoriais.

 

Fonte:https://www.academia.edu/10484668/FLEURY_S._KABAD_J._Meton%C3%ADmias_da_Participa%C3%A7%C3%A3o_Pacificada

Referências biliográficas 

FLEURY, S. KABAD, J. Metonímias da Participação Pacificada. ScriptaNova
Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona, Vol. XVIII, núm. 497, 10 de diciemnre de 2014