Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (resenha): mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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'''Autora''': Ana Clara Macedo.
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Roberto Kant de Lima é doutor em Antropologia pela Universidade de Harvard e membro titular da Academia Brasileira de Ciências. Coordena o Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC), sediado na Universidade Federal Fluminense.<p>O texto “Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro” é um clássico dos estudos de violência. O autor realiza a sua obra a partir do trabalho etnográfico e analítico da atuação da polícia civil no estado do Rio de Janeiro. Como escopo de pesquisa, Kant de Lima busca investigar as formas e práticas das instituições policiais na aplicação da lei e a sua relação com a formalidade do sistema judiciário. O autor escreve em um período anterior à redemocratização e em relação à constituição de 1969, ainda vigente o regime militar.</p><p>Kant de Lima afirma que os princípios de julgamento do sistema de justiça contrariam a própria constituição no que tange o tratamento igualitário entre os cidadãos. A constituição prevê o tratamento igualitário de todos os cidadãos e, concomitantemente, hierarquiza o tratamento entre os pares em relação à aplicação do julgamento penal. Como resolução desse problema crucial, o sistema de justiça criminal brasileiro concedeu poderes discricionários para a polícia. Nesse sentido, o autor define que“as práticas policiais são um complemento do sistema judicial e não uma violação ou degradação dele”.</p><p>Para o autor, a polícia representa um elo que une as contradições do sistema judiciário hierarquizado e elitista com o sistema político igualitário e previsto constitucionalmente, se tornando o bode expiatório de um sistema judiciário desigual e elitista e, em última instancia, aplicando as leis desiguais de maneira desigual.</p><p>A atuação da polícia possui critérios formais de atuação, nos quais estão incluidos duas formas específicas de cada critério. A primeira delas é a função administrativa, responsável pela atuação na vigilância da população e na prevenção dos efeitos da criminalidade. Essa função leva em consideração a conduta criminosa potencial dos cidadãos. Já na função judiciária, a polícia atua como um braço auxiliar do sistema de justiça nas investigações criminais, levando em consideração a conduta criminosa real dos indivíduos, trabalhando na apuração e investigação dos fatos.</p><p>&nbsp;Nessa atuação se entrecruzam as funções judiciária e administrativa, na qual a polícia atua vigiando a população, prevendo um perfil delinquente baseado em suposições estereotipadas e arrigadas pelo status social dos indivíduos. Há uma “contaminação” da natureza das duas técnicas, se imbricando e prevendo tipos preferenciais de suspeitos que são escolhidos para extração de fatos e não do processo ao contrário, a apuração de fatos para a investigação de suspeitos.</p><p>Os inquéritos policiais são praticados, na perspectiva do autor, por uma correlação entre estereótipos de criminosos, marcados e estigmatizados na prática investigativa policial. Esses estereótipos servem para reforçar teoricamente e complementar o volume de dados estatísticos nos quais se baseiam as investigações criminais. Quando os criminosos não correspondem aos estereótipos pré-estabelecidos, os inquéritos policiais encontram dificuldade de resolução.</p><p>O autor identifica o uso da tortura como prática policial na resolução dos acontecimentos investigados. Os policiais tentam achar a correlação entre tortura e confissão criminal. Formas de torturas análogas as torturas utilizadas nos escravizados. Essas torturas são aplicadas de acordo com o perfil social dos sujeitos, sendo recorrente nos indivíduos das classes mais baixas, estigmatizados como marginais.</p><p>Segundo os dados coletados por Kant na sua pesquisa etnográfica, a polícia exerce funções sociais diferentes dependendo de onde a delegacia esteja localizada geograficamente na cidade e atua diferentemente dependendo do status dos indivíduos ali predominantes. Em áreas mais pobres e com características culturais consideradas inferiores, os policiais adotam uma postura de autoridade. Ao contrário dos bairros nobres, onde os policiais são tratados como agentes públicos (ou mero funcionários) que estão à serviço dos ricos. Essa característica confirma o estado ilógico da atuação da polícia, que aceita uma hierarquia do sistema jurídico e econômico na sua atuação que deveria ser pautada numa prática política igualitária e universal.</p><p>O texto de Kant de Lima demonstra a importância de uma etnografia das instituições que se propõe a compreender traços marcantes da sociedade brasileira. Ao analisar o dia a dia e acompanhar de perto as formas de ação do poder judiciário, o autor revela aspectos fundamentais e contraditórios sobre as diferentes formas de atuação do poder judiciário em sua chave mais cotidiana, a atuação policial. O autor nos apresenta através dos seus dados colhidos em campo que há uma profunda desigualdade no tratamento criminal em uma sociedade politicamente igualitária, comprovando um caráter ambíguo.</p><p>[[Category:Temática - Violência]] [[Category:Resenha]] [[Category:Polícia]] [[Category:Rio de Janeiro]]</p>
Roberto Kant de Lima é doutor em Antropologia pela Universidade de Harvard e membro titular da Academia Brasileira de Ciências. Coordena o Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC), sediado na Universidade Federal Fluminense.<p>O texto “Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro” é um clássico dos estudos de violência. O autor realiza a sua obra a partir do trabalho etnográfico e analítico da atuação da polícia civil no estado do Rio de Janeiro. Como escopo de pesquisa, Kant de Lima busca investigar as formas e práticas das instituições policiais na aplicação da lei e a sua relação com a formalidade do sistema judiciário. O autor escreve em um período anterior à redemocratização e em relação à constituição de 1969, ainda vigente o regime militar.</p><p>Kant de Lima afirma que os princípios de julgamento do sistema de justiça contrariam a própria constituição no que tange o tratamento igualitário entre os cidadãos. A constituição prevê o tratamento igualitário de todos os cidadãos e, concomitantemente, hierarquiza o tratamento entre os pares em relação à aplicação do julgamento penal. Como resolução desse problema crucial, o sistema de justiça criminal brasileiro concedeu poderes discricionários para a polícia. Nesse sentido, o autor define que“as práticas policiais são um complemento do sistema judicial e não uma violação ou degradação dele”.</p><p>Para o autor, a polícia representa um elo que une as contradições do sistema judiciário hierarquizado e elitista com o sistema político igualitário e previsto constitucionalmente, se tornando o bode expiatório de um sistema judiciário desigual e elitista e, em última instancia, aplicando as leis desiguais de maneira desigual.</p><p>A atuação da polícia possui critérios formais de atuação, nos quais estão incluidos duas formas específicas de cada critério. A primeira delas é a função administrativa, responsável pela atuação na vigilância da população e na prevenção dos efeitos da criminalidade. Essa função leva em consideração a conduta criminosa potencial dos cidadãos. Já na função judiciária, a polícia atua como um braço auxiliar do sistema de justiça nas investigações criminais, levando em consideração a conduta criminosa real dos indivíduos, trabalhando na apuração e investigação dos fatos.</p><p>&nbsp;Nessa atuação se entrecruzam as funções judiciária e administrativa, na qual a polícia atua vigiando a população, prevendo um perfil delinquente baseado em suposições estereotipadas e arrigadas pelo status social dos indivíduos. Há uma “contaminação” da natureza das duas técnicas, se imbricando e prevendo tipos preferenciais de suspeitos que são escolhidos para extração de fatos e não do processo ao contrário, a apuração de fatos para a investigação de suspeitos.</p><p>Os inquéritos policiais são praticados, na perspectiva do autor, por uma correlação entre estereótipos de criminosos, marcados e estigmatizados na prática investigativa policial. Esses estereótipos servem para reforçar teoricamente e complementar o volume de dados estatísticos nos quais se baseiam as investigações criminais. Quando os criminosos não correspondem aos estereótipos pré-estabelecidos, os inquéritos policiais encontram dificuldade de resolução.</p><p>O autor identifica o uso da tortura como prática policial na resolução dos acontecimentos investigados. Os policiais tentam achar a correlação entre tortura e confissão criminal. Formas de torturas análogas as torturas utilizadas nos escravizados. Essas torturas são aplicadas de acordo com o perfil social dos sujeitos, sendo recorrente nos indivíduos das classes mais baixas, estigmatizados como marginais.</p><p>Segundo os dados coletados por Kant na sua pesquisa etnográfica, a polícia exerce funções sociais diferentes dependendo de onde a delegacia esteja localizada geograficamente na cidade e atua diferentemente dependendo do status dos indivíduos ali predominantes. Em áreas mais pobres e com características culturais consideradas inferiores, os policiais adotam uma postura de autoridade. Ao contrário dos bairros nobres, onde os policiais são tratados como agentes públicos (ou mero funcionários) que estão à serviço dos ricos. Essa característica confirma o estado ilógico da atuação da polícia, que aceita uma hierarquia do sistema jurídico e econômico na sua atuação que deveria ser pautada numa prática política igualitária e universal.</p><p>O texto de Kant de Lima demonstra a importância de uma etnografia das instituições que se propõe a compreender traços marcantes da sociedade brasileira. Ao analisar o dia a dia e acompanhar de perto as formas de ação do poder judiciário, o autor revela aspectos fundamentais e contraditórios sobre as diferentes formas de atuação do poder judiciário em sua chave mais cotidiana, a atuação policial. O autor nos apresenta através dos seus dados colhidos em campo que há uma profunda desigualdade no tratamento criminal em uma sociedade politicamente igualitária, comprovando um caráter ambíguo.</p><p>[[Category:Temática - Violência]] [[Category:Resenhas]] [[Category:Polícia]] [[Category:Rio de Janeiro]]</p>

Edição das 09h49min de 22 de setembro de 2021

Autora: Ana Clara Macedo.

A resenha

Roberto Kant de Lima é doutor em Antropologia pela Universidade de Harvard e membro titular da Academia Brasileira de Ciências. Coordena o Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC), sediado na Universidade Federal Fluminense.

O texto “Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro” é um clássico dos estudos de violência. O autor realiza a sua obra a partir do trabalho etnográfico e analítico da atuação da polícia civil no estado do Rio de Janeiro. Como escopo de pesquisa, Kant de Lima busca investigar as formas e práticas das instituições policiais na aplicação da lei e a sua relação com a formalidade do sistema judiciário. O autor escreve em um período anterior à redemocratização e em relação à constituição de 1969, ainda vigente o regime militar.

Kant de Lima afirma que os princípios de julgamento do sistema de justiça contrariam a própria constituição no que tange o tratamento igualitário entre os cidadãos. A constituição prevê o tratamento igualitário de todos os cidadãos e, concomitantemente, hierarquiza o tratamento entre os pares em relação à aplicação do julgamento penal. Como resolução desse problema crucial, o sistema de justiça criminal brasileiro concedeu poderes discricionários para a polícia. Nesse sentido, o autor define que“as práticas policiais são um complemento do sistema judicial e não uma violação ou degradação dele”.

Para o autor, a polícia representa um elo que une as contradições do sistema judiciário hierarquizado e elitista com o sistema político igualitário e previsto constitucionalmente, se tornando o bode expiatório de um sistema judiciário desigual e elitista e, em última instancia, aplicando as leis desiguais de maneira desigual.

A atuação da polícia possui critérios formais de atuação, nos quais estão incluidos duas formas específicas de cada critério. A primeira delas é a função administrativa, responsável pela atuação na vigilância da população e na prevenção dos efeitos da criminalidade. Essa função leva em consideração a conduta criminosa potencial dos cidadãos. Já na função judiciária, a polícia atua como um braço auxiliar do sistema de justiça nas investigações criminais, levando em consideração a conduta criminosa real dos indivíduos, trabalhando na apuração e investigação dos fatos.

 Nessa atuação se entrecruzam as funções judiciária e administrativa, na qual a polícia atua vigiando a população, prevendo um perfil delinquente baseado em suposições estereotipadas e arrigadas pelo status social dos indivíduos. Há uma “contaminação” da natureza das duas técnicas, se imbricando e prevendo tipos preferenciais de suspeitos que são escolhidos para extração de fatos e não do processo ao contrário, a apuração de fatos para a investigação de suspeitos.

Os inquéritos policiais são praticados, na perspectiva do autor, por uma correlação entre estereótipos de criminosos, marcados e estigmatizados na prática investigativa policial. Esses estereótipos servem para reforçar teoricamente e complementar o volume de dados estatísticos nos quais se baseiam as investigações criminais. Quando os criminosos não correspondem aos estereótipos pré-estabelecidos, os inquéritos policiais encontram dificuldade de resolução.

O autor identifica o uso da tortura como prática policial na resolução dos acontecimentos investigados. Os policiais tentam achar a correlação entre tortura e confissão criminal. Formas de torturas análogas as torturas utilizadas nos escravizados. Essas torturas são aplicadas de acordo com o perfil social dos sujeitos, sendo recorrente nos indivíduos das classes mais baixas, estigmatizados como marginais.

Segundo os dados coletados por Kant na sua pesquisa etnográfica, a polícia exerce funções sociais diferentes dependendo de onde a delegacia esteja localizada geograficamente na cidade e atua diferentemente dependendo do status dos indivíduos ali predominantes. Em áreas mais pobres e com características culturais consideradas inferiores, os policiais adotam uma postura de autoridade. Ao contrário dos bairros nobres, onde os policiais são tratados como agentes públicos (ou mero funcionários) que estão à serviço dos ricos. Essa característica confirma o estado ilógico da atuação da polícia, que aceita uma hierarquia do sistema jurídico e econômico na sua atuação que deveria ser pautada numa prática política igualitária e universal.

O texto de Kant de Lima demonstra a importância de uma etnografia das instituições que se propõe a compreender traços marcantes da sociedade brasileira. Ao analisar o dia a dia e acompanhar de perto as formas de ação do poder judiciário, o autor revela aspectos fundamentais e contraditórios sobre as diferentes formas de atuação do poder judiciário em sua chave mais cotidiana, a atuação policial. O autor nos apresenta através dos seus dados colhidos em campo que há uma profunda desigualdade no tratamento criminal em uma sociedade politicamente igualitária, comprovando um caráter ambíguo.