Polícia de proximidade

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Agentes da Unidade de Polícia Pacificadora atuando no Complexo do Alemão (RJ)
Agentes da Unidade de Polícia Pacificadora atuando no Complexo do Alemão (RJ)

Polícia de proximidade, também conhecida como policiamento comunitário, é uma estratégia que aposta numa relação entre as populações e as forças de segurança, com o objetivo de atuar diretamente na segurança pública e na redução, portanto, da criminalidade. Este modelo é inspirado em países do Norte, como Canadá e Estados Unidos, e está sendo experimentado, pelo menos, desde a década de 1980 no Brasil. Neste verbete, Palloma Menezes traz uma discussão sobre este tema a partir da experiência das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), implementadas, a partir de 2008, nas favelas do estado do Rio de Janeiro.

Autoria: Palloma Menezes

Os traumas do passado[editar | editar código-fonte]

O primeiro ano após a chegada da polícia nas favelas onde foram inauguradas as primeiras Unidades de Polícia Pacificadora foi um período marcado por uma forte tensão entre moradores e policiais. “Conflituoso”, “conturbado”, “tenso” e “difícil” são apenas alguns dos adjetivos que tanto moradores como policiais utilizam para definir tal período. Um comandante da UPP da Cidade de Deus definiu esse período inicial como um momento de “adaptação” ou de “aclimatação”.

O momento inicial da “ocupação permanente” na Cidade de Deus, assim como no Santa Marta, foi marcado, portanto, por um “choque” entre “quem chega estabelecendo novas regras” e “quem teve sua rotina alterada”. O comandante da UPP da Cidade de Deus da época aponta que a implementação de “novas práticas” e um novo “método”, definido como “policiamento de proximidade”, teve que ser gradual por ter envolvido uma série de desafios e dificuldades. A principal delas talvez tenha sido, e ainda seja, a tentativa de se criar uma aproximação com atores cujo desejo inicial era, quase que espontânea e invariavelmente, o de afastamento.

Pelo menos, três obstáculos impediram a aproximação entre moradores e policiais nos territórios “pacificados”: a) os traumas e sequelas originados em experiências pretéritas vividas nos territórios favelados tanto por moradores e traficantes quanto por policiais; b) o medo gerado pelo rumor de que o projeto das UPPs não ficará indefinidamente, tendo portanto data para acabar – sendo depois das Olimpíadas de 2016 a data mais provável; c) o temor da “contaminação” que qualquer contato com policiais dentro dos territórios “pacificados” pode gerar.

As experiências passadas mantidas vivas em forma de lembrança –juntamente com as expectativas pessimistas quanto à permanência das UPPs e o risco da “contaminação” pelo contato – ajudam a explicar a proximidade sem aproximação existente entre a população das favelas e a polícia no contexto das UPPs. No que concerne à questão dos traumas oriundos de experiências passadas, vários relatos sugerem que a vontade de muitos moradores, no início da ocupação, era de permanecer longe da polícia. Isso porque quase todos os moradores do Santa Marta e da Cidade de Deus já tinham passado por experiências traumáticas com policiais dentro do território das favelas – ou pelo menos conheciam pessoas próximas que também viveram a mesma situação. Como narram alguns moradores do Santa Marta e da Cidade de Deus:

 

Durante esses meus anos de vida, a imagem que eu adquiri do que é um policial – não é um preconceito, é um pós-conceito – por ter convivido vários anos com a polícia vindo à favela. (...) A visão que eu tenho é de um cara violento, uma imagem ruim (...). A imagem que eu tenho de policial é de uma pessoa violenta e intolerante. Para mim não mudou nada (após a UPP), continua a mesma coisa. Polícia é polícia. É tudo a mesma coisa. Não existe essa coisa de “policial bonzinho, policial malzinho”. Polícia é polícia, sempre autoritária e intolerante. (Trecho de entrevista com um jovem morador do morro Santa Marta)

 

Ah, tem diferença da forma como os policiais agem na rua e aqui, porque, na rua, eles agem com mais respeito e, devido a gente morar em morro, eles acham que “ah, não, mora em morro, então, vamos bater, vamos esculachar, vamos fazer o que é certo”. (Trecho de entrevista com uma moradora do Santa Marta)

 

O que tirava a paz era a polícia que vendia a violência para a favela, não é? Ela vendia a violência e depois vinha cobrar com violência. Então, o tráfico comprava o coronel, para deixar frouxo. Isso aí eles aceitavam, isso aí é sabido (...). Quando eu era mais jovem, sempre alguém, na roda de amigos, falava: “Tem que acabar com o tráfico. Bota dois, três, quatro policiais ali [no morro] e acaba”. Então a gente sabia que a culpa do tráfico existir era da polícia. A gente sempre quis distância da polícia porque sabia que eles que geravam a violência aqui na favela e ainda ganhavam dinheiro com isso. Eles sempre lucraram com as mortes dos nossos amigos e parentes. (Trecho de entrevista com um morador da Cidade de Deus)

 

Ainda que a relação entre os policiais e os moradores de favelas seja marcada por uma forte assimetria de poder, é interessante ressaltar que essa relação é traumática para ambas as partes. Assim como muitos moradores têm “trauma de polícia”, diversos policiais também já tiveram inúmeras experiências traumáticas em favelas. Essas memórias de momentos difíceis – como confrontos com traficantes seguidos de morte de moradores inocentes, de “bandidos” e de policiais – afetavam e afetam diretamente a percepção que esses profissionais têm dos territórios favelados.

Em um depoimento que deu sobre o início da ocupação do Santa Marta durante um seminário sobre as UPPs, a major Priscilla Azevedo explicitou, por exemplo, uma de suas experiências traumáticas que viveu em favelas. Ela conta que foi sequestrada perto de sua casa e levada para o Complexo do Alemão em 2007. E, por isso, ficou extremamente incomodada quando foi “convidada” para trabalhar em uma favela para auxiliar na implantação do projeto das UPPs:

 

Eu tive a grata oportunidade de trabalhar no Complexo do Alemão de 2006 a 2008. (…) Era uma área extremamente complicada (…). Em 2008 eu fui convidada, convidada entre aspas, né? Porque no militarismo, nunca é um convite. E aí, confesso que não queria ir. Até porque em 2007 eu também fui vítima dessa violência no nosso Estado, fui roubada na porta da minha casa, fui sequestrada e levada para uma favela. E aí vem o porquê de eu tocar nesse assunto. Porque quando eu fui pedir ajuda para os moradores quando eu estava apanhando dentro da favela, a primeira coisa que eu vi foi uma senhora na porta dela. Expliquei a situação falei que eu tinha sido assaltada, amarrada. Ela chamou o marido dela, vieram com uma vassoura na mão e começaram a me bater. Aí, eu comecei a gritar e eles me acharam de novo, me pegaram de novo. Daí numa segunda vez, tentei novamente fugir, entrei numa casa onde tinha uma família conversando (...). Eu expliquei de novo o que tinha acontecido e eles perguntaram: “ah, foram os meninos que te pegaram? Então, se você não sair da minha casa agora, eu vou chamar eles novo”. E saíram para chamar eles. Então, esse contato, além da cultura que a gente tinha de incursão em favela… ainda fui contaminada, porque não tinha como desvincular dessa oportunidade que eu tive de pedir ajuda e de ter sido tratada dessa forma… Então, quando me mandaram comandar esse policiamento que até então não tinha o nome de UPP, nós éramos ligados a filosofia de policiamento comunitário. A gente procura policiar uma determinada área. Mas como eu ia conseguir fazer isso, colocar isso em prática, se na verdade, eu queria era distância daquilo ali? A gente começa a achar que todo mundo que está ali não presta. (Trecho de um depoimento da major Priscilla Azevedo)

 

A fala de Priscilla revela como a memória de momentos de tensão vividos em favelas no passado a ajudaram a emoldurar as percepções que ela e muitos outros policiais tinham desses territórios e da população que ali vive. Por outro lado, as experiências traumáticas experimentadas por essa parcela da população também colaboraram para que as pessoas desconfiassem fortemente dos policiais que atuavam na favela. E, para completar, essas desconfianças de ambos os lados ganhavam ainda mais força devido à circulação do rumor de que o projeto das UPPs tinha data para acabar. 

 

Medos relacionados ao futuro do projeto da UPP[editar | editar código-fonte]

 

Provavelmente, o rumor que mais circulou desde a criação das UPPs foi o de que o projeto só duraria até a realização dos Jogos Olímpicos em 2016. Ele aparecia em conversas informais de cariocas que moravam em diferentes áreas da cidade, assim como em debates mais formais entre acadêmicos ou mesmo em artigos científicos, em discussões propostas pelos movimentos sociais, em vídeos divulgados em redes sociais e até mesmo em blogs e outros fóruns de discussões, tais como as mídias sociais que alcançam um grande e diverso público. Durante meu trabalho de campo no Santa Marta e na Cidade de Deus ouvi inúmeras especulações sobre o fim do projeto:

 

Essas UPPs nada mais são, nada menos são, que depois de 2016 isso vai acabar. Porque vem a Copa e aí as Olimpíadas e acabou. Porque isso é uma política eleitoreira. É tudo mentira. Esse é o meu ponto, porque isso só existiu... Se a gente colocar em volta de onde estão essas UPPs. Cidade de Deus, perto da Barra, onde vai ter os jogos olímpicos. A gente tem Pavão-Pavãozinho/Cantagalo, Copacabana. Botafogo, tem Leme, Andaraí, Parque da Tijuca, Borel... Gente, isso é muito sério. Estamos pagando milhares, é muito dinheiro em troca de uma Olimpíada, em troca de uma Copa do Mundo. (Depoimento de uma moradora do Santa Marta durante um debate público sobre as UPPs realizado na favela em 2012)

 

Este depoimento ilustra como grande parte da população associa a criação das UPPs à preparação da cidade para realização de grandes eventos. E mostra como, consequentemente, havia uma constante especulação de que a ocupação “permanente” das favelas se tratava na verdade “uma ação temporária” que teria o objetivo de garantir a segurança durante os grandes eventos que ocorreriam no Rio de Janeiro e, além disso, garantir também bastante votos aos políticos que apoiaram a criação do projeto.

Não era raro ouvir nas favelas insinuações de que a UPP era mera “politicagem” ou uma “política eleitoreira”. A recorrente utilização desses termos, especialmente antes das eleições de 2014, evidenciava a existência de um temor de que o projeto acabasse caso viesse a ocorrer uma alternância no Governo do Estado.

 

Esse projeto só me assusta de um lado (…). Será que isso vai continuar mudando [de] governante? Porque se não continuar, vai ter um derramamento de sangue em todo lugar onde tiver UPP. Depois que esse governo sair, quem vai bancar essas UPPs todas aí? (Trecho de entrevista com um morador do Santa Marta)

 

Mesmo quem não entende de política, entende que a UPP é um projeto político. Gol de letra do Sérgio Cabral, não é, meu irmão? O Lula veio com o Bolsa Família, o PAC, o Sérgio Cabral veio com a UPP e com a UPA. Aí fica aquela preocupação nossa de quando o Sérgio Cabral sair. Aí assume o Garotinho e ele tem desavença com o Cabral. Ele vai querer botar o projeto do Cabral para a frente? Você sabe que tudo na UPP é alugado. É viatura alugada, o contêiner é alugado, o computador é alugado, tudo é alugado. Então a gente sabe disso, sabe que a qualquer momento... Então a gente procura manter aquela distância porque nós somos repreendidos. (Trecho de entrevista com um morador da Cidade de Deus)

 

Por já ter vivido inúmeras situações nas quais políticas públicas foram criadas, apresentadas como se fossem a grande solução para o “problema” das favelas e, logo depois, abandonadas, muitas pessoas antecipam que a história irá se repetir no caso das UPPs. Depoimentos de moradores do Santa Marta e da Cidade de Deus expõem como a lembrança de projetos que não tiveram continuidade tem um lugar de destaque no quebra-cabeça das memórias que essa parcela da população possui da atuação do poder público em seus territórios de moradia.

 

A gente não tinha esse conhecimento de como seria, até porque a UPP era um projeto novo e sempre vem aquela desconfiança da gente que está na favela, porque antes disso já vieram outras. Por exemplo, primeiro foi o DPO, depois foram as cabines, que cada localidade tinha umas cabines, aí passava outra e o Garotinho ganhou o Polígono, [n]o outro [governo] criaram aquele balão que ficava rodeando. Então a gente achava que aquilo era algo passageiro, político. (Trecho de entrevista com um morador da Cidade de Deus)

 

Os moradores de áreas “pacificadas” temiam, desde a criação das UPPs, que o padrão de atuação do Estado nas favelas – que tem como uma de suas características centrais a constante descontinuidade de projetos – não se alterasse. Logo, não sentiam que podiam confiar que dessa vez seria diferente, pois como afirmam Burgos et al. (2012), permanecia e ainda permanece entre os moradores de favela um constante “temor de sofrer uma (nova) traição por parte do poder público”.

Os próprios policias que passaram a atuar nas UPPs também temiam a descontinuidade do projeto. Um policial do Santa Marta afirmou em uma entrevista, por exemplo, que “tem um decreto assinado até 2023, mas não vale de nada. É, porque teve o decreto de que a escala nossa ia ser uma e durou dois meses e mudou (…). Então, não vale muito esse decreto, não. São eles que fazem e eles que fiscalizam”. E, devido à essa desconfiança em relação à longevidade desse novo tipo de policiamento, muitos PMs julgavam que para suas carreiras não seria interessante “perder tempo” trabalhando nas UPPs.

Durante uma entrevista, um PM da Cidade de Deus afirmou que achava que “o maior problema do morador da comunidade são esses boatos que a UPP talvez acabe e aí os traficantes voltem e volte o que era antes. O maior receio do morador é esse. Se não ele já tinha se entregado 100%”. Muitos dos policiais com quem conversei diziam acreditar que os “boatos” que circulam pela favela eram propositalmente espalhados e alimentados por traficantes (ou “ex-traficantes”) para evitar que a população se aproxime da polícia. O comandante da UPP do Parque Proletário, afirmou durante uma entrevista que, na visão dele, a utilização de rumores era uma forma daquele elemento que era envolvido com o tráfico de coagir o morador, dizendo: “não, eles vão embora em 2016, aí vai voltar tudo como era antes”.

Priscilla Azevedo, que foi a primeira comandante de uma UPP, compartilhava a mesma opinião. Segundo ela, muitas foram as dificuldades que teve que enfrentar quando chegou ao Santa Marta. A principal delas foi a desconfiança da população local que, mais uma vez, é associada à lembrança de experiências anteriores de ocupação policial que não tiveram continuidade. Como resume Priscilla:

 

Então, quando me mandaram comandar esse policiamento que até então não tinha o nome de UPP, nós éramos ligados à filosofia de policiamento comunitário. A gente procura policiar uma determinada área. Mas como eu ia conseguir fazer isso, colocar isso em prática, se na verdade, eu queria era distância daquilo ali?  A gente começa a achar que todo mundo que está ali não presta. Aí fui trabalhar nessa comunidade. Uma comunidade que já tinha tido experiência de ocupação policial em 1993, o Batalhão de Operações Especiais ocupou essa favela, ficou lá por cerca de 90 dias e saiu e não deu satisfação a ninguém. Em virtude dessa saída, alguns moradores sofreram consequências com o tráfico, às vezes pelo simples fato de dar um bom dia para um policial, ou de num barzinho receber um policial e dar uma água. Então, as pessoas sofreram isso com a saída da polícia militar. Então, a gente começou um programa num local onde a polícia simplesmente não deu satisfação, não disse para que ela veio, o que ela queria e depois foi lá e saiu. Então, os moradores do Santa Marta, eles simplesmente não tinham contato nenhum com a gente. Então, eu passava, dava um bom dia e muitas vezes as pessoas nem olhavam para a minha cara. (Trecho de um depoimento da major Priscilla Azevedo)

 

As “ferramentas de aproximação” utilizadas em áreas “pacificadas”[editar | editar código-fonte]

Diante de tudo que foi debatido até aqui, parece evidente, portanto, que a proximidade física entre moradores e policiais da UPP nos territórios de favelas não foi, de modo algum, sinônimo de aproximação em um primeiro momento. Embora a proximidade física entre policiais e moradores fosse indubitavelmente uma condição necessária para que a polícia pudesse estabelecer uma relação mais próxima com a população, ela não foi uma condição suficiente para garantir que uma aproximação ocorresse, de fato, entre esses dois atores.

Como havia um sério problema de “falta de confiança” na polícia e na continuidade do projeto das UPPs, os policiais que atuam em áreas “pacificadas” tiveram que forjar diversos mecanismos visando uma aproximação com a população desses territórios. Como resume Priscilla: “a polícia militar tinha que ter ferramentas de aproximação para lidar com essas pessoas. Não bastava que participasse de reuniões ou organizasse eventos. A gente tinha que ter algo mais concreto, alguma coisa que não fosse tão pontual”.

As estratégias utilizadas, especialmente pelos comandantes das UPPs, para se aproximar dos moradores no início do processo de “pacificação” incluíam as seguintes medidas: a) percorrer a favela e se fazer presente no cotidiano para conhecer e passar a ser conhecido pelos moradores; b) divulgar para os moradores os números do comandante e da sede da UPP (para que eles pudessem ligar para um dos números caso precisassem de alguma ajuda ou quisessem fazer alguma denúncia); c) participar dos eventos e reuniões promovidos pelos moradores na favela; d) realizar reuniões, eventos, festas, excursões, passeios e atividades culturais organizados pela UPP dentro e fora da favela; e) organizar aulas de futebol, balé, música etc., que incluiam policiais da UPP como professores.

O uso das estratégias mencionadas não começou a acontecer seguindo alguma diretriz ou uma orientação formal dada pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Na realidade, essas estratégias foram mais utilizadas em algumas favelas com UPP do que em outras e, nesses diversos territórios, elas foram usadas de diferentes maneiras. Como a UPP foi um projeto que foi sendo elaborado e formalizado no próprio curso de sua implementação – e experimentado nos primeiros territórios “pacificados”–, os comandantes que estiveram à frente das primeiras UPPs foram os responsáveis por criar e testar táticas, deixadas ao seu próprio arbítrio e estilo pessoal, visando uma possível aproximação com a população. Durante uma entrevista com um policial que trabalhou na Coordenadoria de Polícia Pacificadora nos primeiros anos de UPP, ele narrou como se deu esse processo:

Era tudo muito novo (...). Foi muito na experiência pessoal de cada um. “Ah, eu acho legal fazer dessa forma”, não tinha uma diretriz. Foi dando certo, sabe? “Ah, a gente vai dividir o policiamento assim, vamos colocar aqui, ali”, não teve isso, não. Foi muito da visão pessoal de cada comandante. Por isso que eu falo que a major Priscilla e o major Romeu foram os grandes, tiveram uma grande parcela de influência em todos os outros comandantes que vieram depois. Porque começou a dar certo, deu certo e o pessoal começou a replicar isso. (Trecho de entrevista com um policial que trabalhou na Coordenadoria de Polícia Pacificadora)

O “espírito” do projeto das UPPs e os dilemas da “pacificação”[editar | editar código-fonte]

 

O caso da comandante Priscilla pode ser considerado “bom para pensar” porque através de seu carisma e de sua forma de atuar, ela sintetizava, em alguma medida, o próprio “espírito” do projeto das UPPs e os dilemas da “pacificação”. Isso porque, a policial conseguia, ao mesmo tempo, realizar uma ação mais preventiva na favela, fazendo o trabalho “social” e mediando conflitos no Santa Marta, mas não deixava de lado as ações repressivas “agindo com rigor quando necessário”. Ela era doce e delicada com crianças, idosos e “pessoas de bem”, fazendo um trabalho de aproximação e prevenção. Mas, ao mesmo tempo, mostrava seu “ethos guerreiro” (CECCHETTO, 2004; ZALUAR, 2004, SOARES, 2000) e agia com “firmeza” com “quem merecia”. Como explicou um morador do Santa Marta:

 

Poxa, com as senhoras e as crianças a Priscila era unanimidade. Ela sabe fazer política. Na primeira operação aqui, ela passou uma geral no morro (...) ela foi na associação da terceira idade, ela foi na rádio interagir com o pessoal, debater. Isso é política... Quer dizer, está certo que, às vezes, tem que dar uns tapas mesmo, para ter respeito. Tem gente que é abusada. Até no hospital mesmo, tem gente lá com a seringa na veia e xinga a mãe do médico. Aqui é: “Ah, você vai bater em mim? Eu sou morador!”. É questão cultural, moral e cívica, não é? É aquele negócio: ao invés de ser uma batalha, tem que ter adaptabilidade e ela teve adaptabilidade, conseguiu adaptabilidade. (Trecho de entrevista com um morador do Santa Marta)

 

Embora Priscilla tenha conseguido se adaptar bem ao ambiente da favela e soubesse “fazer política” como afirmou o morador do Santa Marta, não podemos ignorar que o acúmulo de funções colocava policiais, como ela, diante de certos riscos. Por isso, mais uma vez, julgo o caso da comandante exemplar porque ajuda a evidenciar alguns dos principais dilemas da “pacificação” de favelas no Rio de Janeiro.

Um desses dilemas era que o fato de ao reprimir continuamente a ação de “criminosos” na favela e, ao mesmo tempo tentar prevenir que novos jovens se envolvessem no “mundo do crime”, os policiais da UPP acabavam tendo que lidar com certas “tentações”. A principal delas talvez fosse a de transformar as ações sociais – como cursos, passeios e excursões – não apenas em dispositivos pedagógicos de “ensino” e de “aproximação”, mas também em mecanismos de “monitoramento”. Como aponta Teixeira (2015) existia o risco dos policiais da UPP transformarem os projetos sociais em uma forma sutil de vigilância e de controle, utilizando a aproximação com os moradores para se obter informações que podiam ajudar no trabalho policial realizado na favela:

 

É possível pensar que o envolvimento de policiais militares com projetos sociais também poderia potencializar a operatividade do repertório da guerra, sofisticando-a: transformando alunos em informantes, através da manipulação das fronteiras entre os diferentes papéis em jogo. (Teixeira, 2015, p.94)

 

Os moradores de favelas “pacificadas” não ignoravam este risco. Eles sabiam, perfeitamente, que se participassem das atividades realizadas pela UPP na favela, os policiais podiam tentar “usá-los” para obter informações privilegiadas. E ainda que essa tentativa não fosse feita e o morador não passasse qualquer informação à polícia, todos corriam o risco de serem rotulados de “amiguinhos da Priscilla”. Rótulo esse que era considerado bastante arriscado, posto que significava incorrer no risco de ser tomado como um possível delator (“X9”).

Todos na favela sabiam que o simples fato de participar de alguma atividade na UPP ou estabelecer qualquer tipo de contato com a comandante ou com outros PMs dentro do território das favelas “pacificadas” poderia gerar uma “contaminação”. Todos na favela sabiam também que este tipo de acusação poderia colocar a vida de qualquer morador em risco. Por isso, em muitas ocasiões, diversos moradores de áreas “pacificadas” preferiam evitar qualquer tipo de aproximação com a comandante Priscilla e com outros policiais da UPP.

Em julho de 2010, ocorreu um curso do Programa Educacional de Resistência às Drogas – PROERD para Pais na sede da UPP do Santa Marta. Embora Priscilla tenha “recrutado” vários moradores para participar das aulas que ocorriam nas manhãs de sábado, o curso reuniu poucos alunos. Fui convidada por uma moradora que me relatou ter chamado muito mais gente do que apareceu no curso. Ela contou que as pessoas, ao serem convidadas, apresentaram uma forte desconfiança por se tratar de um curso situado dentro da sede da UPP.

Durante uma das aulas, o presidente da Associação de Moradores do Santa Marta também disse ter notado que isso ocorria e lamentou dizendo: “é uma pena porque o pessoal fica naquela neurose e não vem fazer os cursos porque é na UPP, aí não tem as informações que estamos tendo aqui”. Essa “neurose” à qual se refere Zé Mário, o presidente de Associação de Moradores do Santa Marta, resultava, por um lado, de um vasto elenco de experiências traumáticas passadas envolvendo atos violentos praticados por traficantes contra moradores no contexto pré-UPP. E, por outro, se calcava também na circulação de rumores sobre a forma como traficantes vinham atuando em territórios “pacificados”. Tal atuação foi tornando-se mais agressiva ao longo dos últimos anos.

A “rotinização” do projeto das UPPs foi seguida de uma série elementos complexos como: a redução do número de policiais atuando nas favelas “pacificadas”; o “afrouxamento” do policiamento; o (re)fortalecimento do tráfico; o aumento da corrupção (que inicialmente parecia ser menos recorrente nas áreas com UPP); a (re)intensificação dos confrontos armados; assim como o aumento de casos de agressões e mortes violentas em áreas “pacificadas” praticadas tantos por traficantes como por policiais.

A partir da intensificação da presença desses múltiplos elementos em áreas ditas “pacificadas”, começou a ganhar força, entre 2011 e 2012, a percepção de que tudo estava voltando a ser como antes da UPP. Tal percepção intensificou-se ainda mais em 2013 com o caso do desaparecimento do pedreiro Amarildo – que pode ser considerado como um marco desse novo momento da política de “pacificação”. Amarildo de Souza era morador da Rocinha e desapareceu depois de ser levado por policiais da UPP para prestar depoimento em julho de 2013. Apesar do corpo de Amarildo não ter sido encontrado, há fortes indícios de que ele foi torturado e assassinado por policiais. Este caso gerou uma grande comoção nacional. O questionamento “Cadê o Amarildo?” virou uma das principais bandeiras das manifestações que tomaram conta das ruas da cidade do Rio de Janeiro, de quase todas as capitais brasileiras e que ficaram conhecidas como as “Jornadas de Junho”.

É interessante notar que, após a morte de Amarildo, Priscilla Azevedo foi convocada para assumir o comando da UPP na Rocinha. Ainda havia naquele momento uma esperança de que através do carisma pessoal da policial e de toda experiência que ela tinha acumulado ao longo dos anos que trabalhou no Santa Marta, ela poderia tentar reconquistar a confiança da população local no projeto das UPPs. Tal tentativa, no entanto, foi completamente frustrada, já que nesse momento não parecia mais haver qualquer possibilidade de os moradores quererem se aproximar da “polícia de proximidade”.

O caso Amarildo abriu espaço para um amplo questionamento das UPPs, quebrando o consenso que parecia existir em torno do sucesso do projeto dentro e fora das favelas. Isso porque ele mostrou na prática como o medo dos moradores de se aproximar da polícia não envolvia só uma “neurose”. Tal aproximação, diferentemente das brilhantes análises goffmanianas, poderia gerar não o risco de “perder a face” (GOFFMAN, 1967), mas principalmente o risco de perder a própria vida. Portanto, este caso contribuiu para que a aproximação entre moradores e policiais em áreas com UPP se tornasse ainda menos provável e o chamado “policiamento de proximidade” ainda mais impossível.

 

Referências bibliográficas[editar | editar código-fonte]

 

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Ver também[editar | editar código-fonte]