Posse e Propriedade: mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Uma vez que moradia também pressupõe território, lugar para morar, sua prestação atravessa uma complicada e ideologicamente conformada disputa por espaço, seja na cidade, seja no campo. Essa disputa é travada principalmente com o modelo tradicional do direito de propriedade, o qual cultiva uma herança excessivamente individualista e formal.
<p style="text-align:justify"><span style="tab-stops:42.55pt">O acesso à moradia depende fundamentalmente do acesso à terra, pressupondo antes de tudo a posse, não a propriedade. Entretanto, existe uma tradição na sociedade brasileira que entende que a estabilidade da relação de um morador com um bem imóvel, ou seja, que a segurança da posse somente é atingida quando se adquire a titularidade definitiva do bem, individual e registrada, regulamentada pelo modelo tradicional do direito de propriedade.</span></p> <p style="text-align:justify"><span style="tab-stops:42.55pt">Ter o domínio exclusivo e registrado de bens imóveis não é natural no sentido de ser inerente à condição humana. A propriedade imobiliária só existe como um direito na medida em que o Estado, através das suas normas, a instituiu como tal e estabeleceu suas características. Logo, a instituição da propriedade como um direito e sua regulamentação são determinados pelo sistema jurídico, o qual determina que a propriedade de imóveis somente se transfere com o registro imobiliário em cartório e regulamenta em que situações se tem propriedade. No entanto, o sistema jurídico, a partir da Constituição de 1988, também prevê que toda propriedade deve cumprir uma função social para ser garantida.</span></p> <p style="text-align:justify"><span style="tab-stops:42.55pt">Já a posse de um imóvel, ou seja, sua utilização concreta para fins pessoais ou coletivos acontece naturalmente, existe no mundo real independente de seu reconhecimento pelo sistema jurídico. A posse, assim como a propriedade, também deve cumprir sua função social. A posse que respeita a função social é um direito porque é instrumento de satisfação de necessidades humanas e porque dá uso efetivo a um imóvel. Em situações onde há conflitos entre um possuidor que dá função social a um bem imóvel e um proprietário (formal) que não dá função social a esse mesmo bem, é possível fazer prevalecer o direito do possuidor.</span></p> <p style="text-align:justify"><span style="tab-stops:42.55pt">A posse também pode ser oficializada e existem diferentes mecanismos legais para isso, como por exemplo concessões feitas pelo poder público a famílias de baixa renda para moradia em terras públicas dentre outros instrumentos. De modo geral, para aplicação destes instrumentos de oficialização da posse é necessária a sua comprovação, a qual pode se dar de diferentes formas como apresentação de contratos, contas de luz, registro de cadastro em postos de saúde locais, testemunho de vizinhos.</span></p>
Na regularização fundiária, a moradia pressupõe posse, não propriedade. Todavia, existe uma tradição arraigada na sociedade brasileira e nos países de cultura ocidental, no sentido de interpretar que a estabilidade da relação com um bem imóvel, ou seja, que a segurança da posse somente é atingida quando se adquire a propriedade do bem, a titularidade definitiva sobre ele. Certamente este é um dos fatores determinantes para atualmente se incluir a apropriação privada como fase das políticas públicas de moradias para população de baixa renda. No entanto, não se pode ignorar que a posse é tanto um direito com é a propriedade.  
Deter o domínio exclusivo de bens imóveis não é natural no sentido de ser inerente à condição humana. A propriedade imobiliária, portanto, não é algo natural. Ela só existe enquanto direito na medida o Estado, através das suas normas, qualifica-a como tal. Logo, a propriedade e seu respectivo conteúdo são determinados pelo sistema jurídico que, atualmente, somente protege a propriedade que cumpre sua função social. O mesmo sistema jurídico prevê que a propriedade de imóveis somente se transmite com o registro imobiliário em cartório e regulamenta em que situações se tem propriedade (foro, superfície, direito de laje, usucapião, legitimação fundiária). No entanto, o princípio da função social da propriedade permite que, mesmo com o registro do imóvel no nome, o proprietário pode perde-lo para quem dá utilidade ao bem.
Já a posse existe no mundo fático independente das variações a respeito de seu reconhecimento pelos operadores do direito e, assim como a propriedade, ela também tem função social a observar. A posse qualificada pela função social é um direito, porque instrumento de satisfação de necessidades humanas e porque a um só tempo viabiliza, atende e materializa direitos humanos. A posse pode ser materializada por diferentes mecanismos legais (CUEM, CDRU, permissão, legitimação de posse etc) e pode ser comprovada de diferentes formas (contrato, documentos, contas por serviços, registro no posto de saúde, testemunhos de moradores etc). Em conflitos entre um possuidor que dá função social a um bem e um proprietário (formal) que não dá, é possível fazer prevalecer o direito do possuidor.
 
Autores: Adauto Lucio Cardoso, Rosângela Luft e Luciana Ximenes.
Autores: Adauto Lucio Cardoso, Rosângela Luft e Luciana Ximenes.

Edição das 12h14min de 25 de abril de 2019

O acesso à moradia depende fundamentalmente do acesso à terra, pressupondo antes de tudo a posse, não a propriedade. Entretanto, existe uma tradição na sociedade brasileira que entende que a estabilidade da relação de um morador com um bem imóvel, ou seja, que a segurança da posse somente é atingida quando se adquire a titularidade definitiva do bem, individual e registrada, regulamentada pelo modelo tradicional do direito de propriedade.

Ter o domínio exclusivo e registrado de bens imóveis não é natural no sentido de ser inerente à condição humana. A propriedade imobiliária só existe como um direito na medida em que o Estado, através das suas normas, a instituiu como tal e estabeleceu suas características. Logo, a instituição da propriedade como um direito e sua regulamentação são determinados pelo sistema jurídico, o qual determina que a propriedade de imóveis somente se transfere com o registro imobiliário em cartório e regulamenta em que situações se tem propriedade. No entanto, o sistema jurídico, a partir da Constituição de 1988, também prevê que toda propriedade deve cumprir uma função social para ser garantida.

Já a posse de um imóvel, ou seja, sua utilização concreta para fins pessoais ou coletivos acontece naturalmente, existe no mundo real independente de seu reconhecimento pelo sistema jurídico. A posse, assim como a propriedade, também deve cumprir sua função social. A posse que respeita a função social é um direito porque é instrumento de satisfação de necessidades humanas e porque dá uso efetivo a um imóvel. Em situações onde há conflitos entre um possuidor que dá função social a um bem imóvel e um proprietário (formal) que não dá função social a esse mesmo bem, é possível fazer prevalecer o direito do possuidor.

A posse também pode ser oficializada e existem diferentes mecanismos legais para isso, como por exemplo concessões feitas pelo poder público a famílias de baixa renda para moradia em terras públicas dentre outros instrumentos. De modo geral, para aplicação destes instrumentos de oficialização da posse é necessária a sua comprovação, a qual pode se dar de diferentes formas como apresentação de contratos, contas de luz, registro de cadastro em postos de saúde locais, testemunho de vizinhos.

Autores: Adauto Lucio Cardoso, Rosângela Luft e Luciana Ximenes.