Rede Só Cria de Educação Popular: mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
(link faferj)
(Entrevista, resultado do módulo 4 da oficina do Projeto Tamo Junto!)
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Em meio ao desmonte da educação pública no Brasil, tivemos uma grande conquista ao longo do ano, nossa primeira aprovação no vestibular. A jovem Korê, pertencente à nação Canela, originária do estado do Maranhão, quis resgatar a cultura de sua etnia na Universidade Federal, passando para Educação do Campo na UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro)<ref>https://noticiapreta.com.br/estudante-indigena-do-pre-vestibular-popular-so-cria-da-favela-da-rocinha-ingressa-na-faculdade/</ref><ref>https://www.brasildefato.com.br/2019/07/26/no-rio-jovem-indigena-quer-resgatar-cultura-da-etnia-canela-na-universidade-federal/?fbclid=IwAR3fWCmm-OIKU3eS2kYvPTEZKBl0yYWdczN3KewfItTmE6vWrWtEjcaJQrU</ref><ref>Pré-Vestibular 'Só Cria' da Rocinha, Homenageado na ALERJ, Tem a Primeira Aluna Aprovada: A Indígena Korê Canela</ref>. Um grande feito para o projeto, demarcando que não falarão mais por nós e que, com nossos corpos e vivências, ocuparemos todos os espaços que historicamente nos foi negado, incluindo a Universidade Pública.
Em meio ao desmonte da educação pública no Brasil, tivemos uma grande conquista ao longo do ano, nossa primeira aprovação no vestibular. A jovem Korê, pertencente à nação Canela, originária do estado do Maranhão, quis resgatar a cultura de sua etnia na Universidade Federal, passando para Educação do Campo na UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro)<ref>https://noticiapreta.com.br/estudante-indigena-do-pre-vestibular-popular-so-cria-da-favela-da-rocinha-ingressa-na-faculdade/</ref><ref>https://www.brasildefato.com.br/2019/07/26/no-rio-jovem-indigena-quer-resgatar-cultura-da-etnia-canela-na-universidade-federal/?fbclid=IwAR3fWCmm-OIKU3eS2kYvPTEZKBl0yYWdczN3KewfItTmE6vWrWtEjcaJQrU</ref><ref>Pré-Vestibular 'Só Cria' da Rocinha, Homenageado na ALERJ, Tem a Primeira Aluna Aprovada: A Indígena Korê Canela</ref>. Um grande feito para o projeto, demarcando que não falarão mais por nós e que, com nossos corpos e vivências, ocuparemos todos os espaços que historicamente nos foi negado, incluindo a Universidade Pública.


== Entrevista com uma Ex-estudante Aprovada no UERJ ==
O Só Cria é uma Rede de Educação Popular que nasceu em 2019, na Rocinha, a partir da necessidade de fortalecer a luta por uma educação de qualidade para todos e pela democratização do acesso ao ensino superior. Como todo movimento social, contamos com uma rede de apoio que fortalece nosso cotidiano de lutas. Nesse sentido, um  dos incentivos mais importantes que tivemos nos últimos meses foi através do Projeto Tamo Junto!, organizado pelo Dicionário de Favelas Marielle Franco, que realizou oficinas de capacitação, com ajuda financeira, para diversos movimentos sociais organizados em favelas do Rio de Janeiro com a finalidade de estimular o trabalho desses movimentos em seus territórios. Essa entrevista é resultado do último módulo da oficina, que foi uma capacitação sobre tipos de entrevistas e coleta e análise de dados.
Com o objetivo de entender mais profundamente o papel do Só Cria na vida dos nossos estudantes, dentro do contexto de pandemia da covid-19, entrevistamos uma ex-estudante, que aqui chamaremos ficticiamente de C para preservar sua identidade e privacidade, que aprovada no Vestibular da UERJ em 2021, no curso de Serviço Social. A temática da entrevista está relacionada com a chegada dessa crise sanitária  no Brasil, pois apesar de todas as dificuldades impostas, principalmente no setor da educação, nós elaboramos um plano de ensino remoto para continuar nossos trabalhos. Porém, os desafios que nós precisamos enfrentar nesse período para manter o pré-vestibular de pé foram muitos, principalmente com relação a falta de acesso a uma estrutura adequada para o ensino remoto por parte dos estudantes, bem como a crise econômica e social que prejudicou, principalmente, as parcelas mais pobres da sociedade.
Na entrevista em questão, nossas perguntas giraram em torno da importância de compreender a rotina de estudo de uma estudante matriculada no ano de 2020, levando em consideração que ela é uma aluna que concluiu o Ensino Médio em  2019, porém sua aprovação veio em meados de 2021, após sua entrada em nosso projeto. Procuramos compreender também como foi o ano de 2020 e 2021 dessa estudante com o objetivo de entender como o pré vestibular contribuiu para a sua aprovação na UERJ e o que significou o projeto Só Cria pra ela nesse processo. Por fim, buscamos entender como está sendo a nova rotina de estudante universitária, quais são seus planos e sonhos para o futuro e, levando em consideração que se trata de uma aluna politicamente ativa e que anseia a transformação social, entender como ela se movimenta/pretende se movimentar em prol das lutas sociais.
Começamos perguntando sobre a sua história. C tem 21 anos, foi nascida e criada na Rocinha. Nossa ex-aluna morava com sua tia, pois perdeu sua mãe. No ano de 2020 também teve a triste perda dessa mesma tia - que não foi de covid-19. Atualmente, ela compartilha a moradia com um primo, na própria favela e trabalha como Baby Sitter. Em seus momentos de lazer gosta de assistir séries e filmes com temáticas criminais. Como a maioria da população de favela, C estudou a vida inteira na rede pública e sabe das dificuldades desse sistema de ensino, mas, apesar disso, valoriza a escola pública e defende o ensino gratuito e de qualidade para todos. A estudante, hoje universitária, relatou como foi importante para a sua aprendizagem e crescimento o contato que teve com um professor de História, que a ajudou a abrir os olhos para as injustiças sociais e que sempre acreditou potencialidades dos estudantes da rede pública de ensino e, para ela, essa experiência foi fundamental em sua vida. “E foi no ensino médio em que comecei realmente a crescer e comecei a ver com outros olhos e pensar sobre certas questões e tal. Eu acho que o ensino médio me mudou bastante comparado ao que eu era anos atrás”, disse nossa entrevistada.
Em seguida, procuramos entender como a pandemia atingiu a vida pessoal da estudante, com perguntas relacionadas às questões de emprego e renda, sociabilidade, saúde física e mental. C nos contou que fez isolamento social, se afastou dos seus amigos e precisou parar de frequentar o terreiro onde realizava seus cultos religiosos, pois o mesmo havia fechado. Para ela foi um período difícil, pois ela tinha uma rotina de ir ao seu terreiro todos os sábados. Ela julga também que seu círculo de amizades foi fragilizado por conta do afastamento. C também teve sua vida financeira afetada pela pandemia. Ela morava com sua falecida tia e era sua dependente. Com o falecimento, C contou com a ajuda de um tio próximo, pois não conseguia um emprego. Com relação à área da saúde, ela considera que a pandemia dificultou bastante o atendimento nas unidades de saúde, apesar de, felizmente, não ter ficado sem atendimento quando necessitou, ela nos contou que o tempo de espera nos hospitais e postos de saúde aumentou bastante. Outro aspecto sinalizado por C foi a questão da sua saúde mental que, julgou ela, ficou bastante afetada, sendo necessário procurar acompanhamento psicológico para amenizar a situação: “Acho que afetou bastante, pensando que eu estou aí, né, fazendo terapia pra tentar voltar ao normal, não normal, né?! Mas pra voltar num jeito mediano. Após essa pandemia ninguém vai estar normal, 100%, né, mas estável pelo menos tem que estar.”
Conversamos com ela também questões sobre educação, sua rotina de estudos e os impactos da pandemia nessas áreas. C nos revelou que fez o ENEM em 2019, ano de sua conclusão no Ensino Médio, mas não conseguiu passar e considera que não conseguiu organizar bem seus estudos naquele ano. Perguntamos também qual foi a diferença entre 2019 e 2020 e ela nos respondeu que foi fundamental ter entrado para o Só Cria para conseguir melhorar sua rotina de estudos. “eu acho que me ajudou bastante, né? Criar uma rotina de estudo. E antes eu não tinha, né? E aí fazendo no pré-vestibular me ajudou bastante assim encontrar uma rotina”, disse ela. C assistia as aulas online, tirava dúvida com os professores, que estavam sempre à disposição, recebeu ajuda para organizar o estudo. Ela não foi aprovada em 2020 e acredita que a pandemia teve um grande peso em sua reprovação por conta das barreiras relacionadas à estrutura para realização do ensino remoto. Mas apesar disso, ela melhorou sua nota e julga que fez um bom ENEM.
Pedimos para nossa ex-estudante para falar da importância do Só Cria em todo esse processo e ela nos contou: “o Só Cria me ajudou bastante com o Google Sala de Aula e as vídeo aulas. Não só os professores mas também toda a coordenação foram importantes porque me ajudaram a me achar e saber onde é o meu lugar, que é na universidade pública e isso ninguém tira. Foi essencial os professores me ajudarem, né? Tanto na redação como nas matérias. Eu cheguei na prova bem tranquila e tal. Fiquei bem confortável fazendo a prova do ENEM. O Ricardo e a Carol disponibilizaram o tempo deles na época pra me ajudar com o livro da prova da UERJ e conversaram comigo sobre. E estar no grupo de estudos foi bem bacana. Então eu não cheguei na prova nervosa como sempre eu fazia e isso foi essencial nessa aprovação”.
Por fim, nos encaminhamos para entender melhor como está a vida de C na nova universidade, quais são seus novos planos, suas metas e sonhos. Perguntamos se ela tinha ficado feliz com a aprovação e a resposta foi: “nossa, eu chorei! Fiquei sabendo a partir de uma ligação de uma amiga. Eu estava dormindo e aí me acordaram quando tinha saído a nota. Eu fui correndo pra ver, cheia de remela, estava começando o dia. Aí a minha amiga viu a lista, ela viu que eu tinha passado. Aí eu falei, não! Não sou eu, não! É outra pessoa. Eu nem acreditei”.
Lembramos que quando recebemos a notícia da aprovação da C no pré-vestibular nós ficamos eufóricos, assim como em todas as outras aprovações. C sempre foi uma aluna muito ativa e participativa e nós estávamos torcendo bastante por ela e sua aprovação foi motivo de muita felicidade para nós do projeto. Perguntamos também como estava sua rotina de estudo na nova universidade e se ela estava conseguindo conciliar com o trabalho. C nos respondeu que as aulas ainda estão de forma remota, que está conseguindo organizar seus estudos e acompanhar as leituras, mesmo estando trabalhando. Nos disse também que, apesar do ensino a distância, já conseguiu fazer algumas amizades e não vê a hora de começar presencialmente. Sobre seus planos para o futuro, ela nos respondeu: “já quero fazer concurso público quando terminar, né, pra trabalhar na Vara da Infância e do Adolescente [...] eu acho que eu sou mais habilidosa nessa área, né, porque eu fui criança, né, então eu já estou mais acostumada nessa área fora que tem muita coisa que acontece na comunidade que é meio injustiça sabe? Então eu quero tentar mudar esse cenário.”
Nossa querida estudante foi a primeira da sua família a entrar em uma universidade pública e entende a importância de lutar para que mais pessoas negras e faveladas como ela ocupem esse espaço que por tantos anos nos foi negado. Ela sonha com um mundo melhor, com uma sociedade mais justa para as pessoas pobres, negras e de favelas e deseja contribuir com as lutas por Direitos Humanos na Rocinha.  C é uma inspiração para nós do Só Cria e nosso objetivo é justamente esse! Contribuir, através de projetos de educação popular, com a formação humana e crítica de nossos jovens e adultos das favelas, para que eles entrem nas universidades com esse desejo de mudança, para conhecer e produzir conhecimento para a favela e a partir da perspectiva favelada.


== Nossos Prêmios e Homenagens ==
== Nossos Prêmios e Homenagens ==

Edição das 22h35min de 3 de março de 2022

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O Só Cria é um projeto que carrega o Popular em seu nome e em sua prática. Somos uma rede de Educação Popular que atualmente atua com curso de pré-vestibular com pólos na Favela da Rocinha e Barreira do Vasco, em São Cristóvão, além do curso de pré-encceja, na Favela da FICAP, na Pavuna. Lutamos pela democratização do acesso da favela à educação de qualidade e aos espaços historicamente negados à população favelada. Por meio das nossas aulas, atividades de extensão, formações e grupos de acolhimento, buscamos compartilhar entre voluntários e estudantes o conhecimento ligado à prática, à realidade da favela, e as nossas vidas cotidianas. Temos como um de nossos objetivos lutar pela aprovação de nossos estudantes no Enem e demais vestibulares, bem como a formação plena de nossos jovens e adultos que, por conta das desigualdades sociais, foram impedidos de acessar a educação na nas fases corretas de escolarização. Buscamos construir, para além disso, uma prática de Educação Popular, em que o conhecimento crítico sobre a realidade parte do cotidiano e das vivências de todos e todas que participam e constroem conosco essa iniciativa.

Pré-vestibular Só Cria na Rocinha.jpg

A luta do Só Cria também ultrapassa a sala de aula! Por meio da organização popular, chamamos nossos estudantes e voluntários a intervir na realidade da favela, da cidade e do país. Realizamos mutirões, saraus, visitas, intervenções artísticas e muitas outras ações que buscam, por meio da reflexão, organização e ação, construir uma ferramenta de transformação da realidade.

Na pandemia do Coronavirus, trabalhamos na construção de uma plataforma de Educação Remota Emergencial, na qual, além das aulas, organizamos estratégias de acolhimento, campanhas de solidariedade e de conscientização e atividades de Extensão, como cineclubes, clubes de leitura, formações e rodas de conversas.

Queremos que os crias e as crias da Favela tenham o direito a uma formação crítica e de qualidade e ao acesso às Universidades. Queremos Criar um mundo novo, transformar a realidade.

O Início

O Só Cria nasce em 2019 da ideia de dois movimentos sociais que atuavam na Favela da Rocinha, o Movimenta Rocinha e as Brigadas Populares. Tínhamos como desejo que esse projeto fosse um movimento de organização popular, de transformação da sociedade, de possibilidades de novos futuros e horizontes para nós que somos favelados e, consequentemente, mais afetados pelo descaso do Estado. Em pesquisa realizada em 2011 pela FGV, constatou-se que a Rocinha possuía média de escolaridade de 5,1 anos, a mais baixa entre todas as regiões administrativas do Rio de Janeiro. Em estudo de 2016 do CESEC, nas favelas cariocas que contavam com UPPs(Unidades de Polícia Pacificadora), entre as quais se inclui a Rocinha, apenas 2,3% da população com mais de 16 anos possuía ensino superior, enquanto 26,9% possuía ensino médio completo ou superior incompleto, em comparação com 33% de toda a população do município. Na época, esses dados nos apontaram uma demanda importante de construir instrumentos comunitários que contribuam para a situação da Educação na comunidade, em especial para o acesso dos nossos estudantes ao ensino superior, que se tornou possível graças a parceria com o CIEP – AYRTON SENNA, que cedeu seu espaço para nossa primeira turma e ao apoio do seu Grêmio Estudantil. Entre os anos de 2020 e 2021, apesar dos desafios impostos pela pandemia do Coronavírus, o Só Cria cresceu e se tornou uma rede de Educação Popular e atualmente possui espaços próprios com sede na Rocinha, São Cristóvão e na Pavuna.

Primeira sede da Rede Só Cria:  O Espaço Comunal Elízia Pirozi

Espaço Comunal Elízia Pirozi, na Rocinha.jpg

Em 2021, indo para o seu terceiro ano de existência, o pré-vestibular popular Só Cria conseguiu um espaço próprio na Favela da Rocinha. Isso foi possível graças a parceria entre o Pré-vestibular e as Brigadas Populares, que juntos organizaram e conseguiram o lugar para suas atuações no território. O espaço foi inaugurado dia 17 de Abril, carregando o nome de Espaço Comunal Elízia Pirozi[1], uma homenagem à educadora Francisca Elizia de Medeiros Pirozi, que morreu em 2017 aos seus 77 anos. Ela era conhecida por sua luta pela educação na Rocinha, desenvolvendo trabalhos de alfabetização de crianças e adultos na favela. Também tivemos a inauguração da Biblioteca Eliezer Pedro de Oliveira, homenageando o Tio Li da Cachopa, líder comunitário que desenvolve, desde 1992, trabalho social com as crianças e adolescentes da Favela, levando cultura, educação, arte e esporte para nossa comunidade, e que nos doou boa parte da nossa Biblioteca Popular. A atividade contou com a presença dos artistas Pedro Paiva, que é cria da Rocinha, e Marcela Cantuária colaboradora do projeto para o desenvolvimento da pintura de um mural. Além disso, também ocorreu uma atividade com o tema trazido pelos estudantes do projeto e que impacta diretamente o território há anos: A luta por água e saneamento básico na Rocinha. A inauguração do Espaço Comunal Elízia Pirozi trouxe em si o significado de luta, resistência, memória e construção popular, fazendo desse espaço, um local de troca, coletividade e possibilidade de um futuro de esperança nos anos que estão por vir.

POR UMA EDUCAÇÃO POPULAR, SÓ CRIA NO VESTIBULAR!

Nossa Primeira Aprovação

A INDÍGENA KORÊ CANELA APROVADA PARA A UFRRJ.jpg

Em meio ao desmonte da educação pública no Brasil, tivemos uma grande conquista ao longo do ano, nossa primeira aprovação no vestibular. A jovem Korê, pertencente à nação Canela, originária do estado do Maranhão, quis resgatar a cultura de sua etnia na Universidade Federal, passando para Educação do Campo na UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro)[2][3][4]. Um grande feito para o projeto, demarcando que não falarão mais por nós e que, com nossos corpos e vivências, ocuparemos todos os espaços que historicamente nos foi negado, incluindo a Universidade Pública.

Entrevista com uma Ex-estudante Aprovada no UERJ

O Só Cria é uma Rede de Educação Popular que nasceu em 2019, na Rocinha, a partir da necessidade de fortalecer a luta por uma educação de qualidade para todos e pela democratização do acesso ao ensino superior. Como todo movimento social, contamos com uma rede de apoio que fortalece nosso cotidiano de lutas. Nesse sentido, um  dos incentivos mais importantes que tivemos nos últimos meses foi através do Projeto Tamo Junto!, organizado pelo Dicionário de Favelas Marielle Franco, que realizou oficinas de capacitação, com ajuda financeira, para diversos movimentos sociais organizados em favelas do Rio de Janeiro com a finalidade de estimular o trabalho desses movimentos em seus territórios. Essa entrevista é resultado do último módulo da oficina, que foi uma capacitação sobre tipos de entrevistas e coleta e análise de dados.

Com o objetivo de entender mais profundamente o papel do Só Cria na vida dos nossos estudantes, dentro do contexto de pandemia da covid-19, entrevistamos uma ex-estudante, que aqui chamaremos ficticiamente de C para preservar sua identidade e privacidade, que aprovada no Vestibular da UERJ em 2021, no curso de Serviço Social. A temática da entrevista está relacionada com a chegada dessa crise sanitária no Brasil, pois apesar de todas as dificuldades impostas, principalmente no setor da educação, nós elaboramos um plano de ensino remoto para continuar nossos trabalhos. Porém, os desafios que nós precisamos enfrentar nesse período para manter o pré-vestibular de pé foram muitos, principalmente com relação a falta de acesso a uma estrutura adequada para o ensino remoto por parte dos estudantes, bem como a crise econômica e social que prejudicou, principalmente, as parcelas mais pobres da sociedade.

Na entrevista em questão, nossas perguntas giraram em torno da importância de compreender a rotina de estudo de uma estudante matriculada no ano de 2020, levando em consideração que ela é uma aluna que concluiu o Ensino Médio em  2019, porém sua aprovação veio em meados de 2021, após sua entrada em nosso projeto. Procuramos compreender também como foi o ano de 2020 e 2021 dessa estudante com o objetivo de entender como o pré vestibular contribuiu para a sua aprovação na UERJ e o que significou o projeto Só Cria pra ela nesse processo. Por fim, buscamos entender como está sendo a nova rotina de estudante universitária, quais são seus planos e sonhos para o futuro e, levando em consideração que se trata de uma aluna politicamente ativa e que anseia a transformação social, entender como ela se movimenta/pretende se movimentar em prol das lutas sociais.

Começamos perguntando sobre a sua história. C tem 21 anos, foi nascida e criada na Rocinha. Nossa ex-aluna morava com sua tia, pois perdeu sua mãe. No ano de 2020 também teve a triste perda dessa mesma tia - que não foi de covid-19. Atualmente, ela compartilha a moradia com um primo, na própria favela e trabalha como Baby Sitter. Em seus momentos de lazer gosta de assistir séries e filmes com temáticas criminais. Como a maioria da população de favela, C estudou a vida inteira na rede pública e sabe das dificuldades desse sistema de ensino, mas, apesar disso, valoriza a escola pública e defende o ensino gratuito e de qualidade para todos. A estudante, hoje universitária, relatou como foi importante para a sua aprendizagem e crescimento o contato que teve com um professor de História, que a ajudou a abrir os olhos para as injustiças sociais e que sempre acreditou potencialidades dos estudantes da rede pública de ensino e, para ela, essa experiência foi fundamental em sua vida. “E foi no ensino médio em que comecei realmente a crescer e comecei a ver com outros olhos e pensar sobre certas questões e tal. Eu acho que o ensino médio me mudou bastante comparado ao que eu era anos atrás”, disse nossa entrevistada.

Em seguida, procuramos entender como a pandemia atingiu a vida pessoal da estudante, com perguntas relacionadas às questões de emprego e renda, sociabilidade, saúde física e mental. C nos contou que fez isolamento social, se afastou dos seus amigos e precisou parar de frequentar o terreiro onde realizava seus cultos religiosos, pois o mesmo havia fechado. Para ela foi um período difícil, pois ela tinha uma rotina de ir ao seu terreiro todos os sábados. Ela julga também que seu círculo de amizades foi fragilizado por conta do afastamento. C também teve sua vida financeira afetada pela pandemia. Ela morava com sua falecida tia e era sua dependente. Com o falecimento, C contou com a ajuda de um tio próximo, pois não conseguia um emprego. Com relação à área da saúde, ela considera que a pandemia dificultou bastante o atendimento nas unidades de saúde, apesar de, felizmente, não ter ficado sem atendimento quando necessitou, ela nos contou que o tempo de espera nos hospitais e postos de saúde aumentou bastante. Outro aspecto sinalizado por C foi a questão da sua saúde mental que, julgou ela, ficou bastante afetada, sendo necessário procurar acompanhamento psicológico para amenizar a situação: “Acho que afetou bastante, pensando que eu estou aí, né, fazendo terapia pra tentar voltar ao normal, não normal, né?! Mas pra voltar num jeito mediano. Após essa pandemia ninguém vai estar normal, 100%, né, mas estável pelo menos tem que estar.”

Conversamos com ela também questões sobre educação, sua rotina de estudos e os impactos da pandemia nessas áreas. C nos revelou que fez o ENEM em 2019, ano de sua conclusão no Ensino Médio, mas não conseguiu passar e considera que não conseguiu organizar bem seus estudos naquele ano. Perguntamos também qual foi a diferença entre 2019 e 2020 e ela nos respondeu que foi fundamental ter entrado para o Só Cria para conseguir melhorar sua rotina de estudos. “eu acho que me ajudou bastante, né? Criar uma rotina de estudo. E antes eu não tinha, né? E aí fazendo no pré-vestibular me ajudou bastante assim encontrar uma rotina”, disse ela. C assistia as aulas online, tirava dúvida com os professores, que estavam sempre à disposição, recebeu ajuda para organizar o estudo. Ela não foi aprovada em 2020 e acredita que a pandemia teve um grande peso em sua reprovação por conta das barreiras relacionadas à estrutura para realização do ensino remoto. Mas apesar disso, ela melhorou sua nota e julga que fez um bom ENEM.

Pedimos para nossa ex-estudante para falar da importância do Só Cria em todo esse processo e ela nos contou: “o Só Cria me ajudou bastante com o Google Sala de Aula e as vídeo aulas. Não só os professores mas também toda a coordenação foram importantes porque me ajudaram a me achar e saber onde é o meu lugar, que é na universidade pública e isso ninguém tira. Foi essencial os professores me ajudarem, né? Tanto na redação como nas matérias. Eu cheguei na prova bem tranquila e tal. Fiquei bem confortável fazendo a prova do ENEM. O Ricardo e a Carol disponibilizaram o tempo deles na época pra me ajudar com o livro da prova da UERJ e conversaram comigo sobre. E estar no grupo de estudos foi bem bacana. Então eu não cheguei na prova nervosa como sempre eu fazia e isso foi essencial nessa aprovação”.

Por fim, nos encaminhamos para entender melhor como está a vida de C na nova universidade, quais são seus novos planos, suas metas e sonhos. Perguntamos se ela tinha ficado feliz com a aprovação e a resposta foi: “nossa, eu chorei! Fiquei sabendo a partir de uma ligação de uma amiga. Eu estava dormindo e aí me acordaram quando tinha saído a nota. Eu fui correndo pra ver, cheia de remela, estava começando o dia. Aí a minha amiga viu a lista, ela viu que eu tinha passado. Aí eu falei, não! Não sou eu, não! É outra pessoa. Eu nem acreditei”.

Lembramos que quando recebemos a notícia da aprovação da C no pré-vestibular nós ficamos eufóricos, assim como em todas as outras aprovações. C sempre foi uma aluna muito ativa e participativa e nós estávamos torcendo bastante por ela e sua aprovação foi motivo de muita felicidade para nós do projeto. Perguntamos também como estava sua rotina de estudo na nova universidade e se ela estava conseguindo conciliar com o trabalho. C nos respondeu que as aulas ainda estão de forma remota, que está conseguindo organizar seus estudos e acompanhar as leituras, mesmo estando trabalhando. Nos disse também que, apesar do ensino a distância, já conseguiu fazer algumas amizades e não vê a hora de começar presencialmente. Sobre seus planos para o futuro, ela nos respondeu: “já quero fazer concurso público quando terminar, né, pra trabalhar na Vara da Infância e do Adolescente [...] eu acho que eu sou mais habilidosa nessa área, né, porque eu fui criança, né, então eu já estou mais acostumada nessa área fora que tem muita coisa que acontece na comunidade que é meio injustiça sabe? Então eu quero tentar mudar esse cenário.”

Nossa querida estudante foi a primeira da sua família a entrar em uma universidade pública e entende a importância de lutar para que mais pessoas negras e faveladas como ela ocupem esse espaço que por tantos anos nos foi negado. Ela sonha com um mundo melhor, com uma sociedade mais justa para as pessoas pobres, negras e de favelas e deseja contribuir com as lutas por Direitos Humanos na Rocinha.  C é uma inspiração para nós do Só Cria e nosso objetivo é justamente esse! Contribuir, através de projetos de educação popular, com a formação humana e crítica de nossos jovens e adultos das favelas, para que eles entrem nas universidades com esse desejo de mudança, para conhecer e produzir conhecimento para a favela e a partir da perspectiva favelada.

Nossos Prêmios e Homenagens

Prêmio "Todo Mundo Tem Direitos".jpg

Ao fim do nosso primeiro ano letivo, no Dia Internacional dos Direitos Humanos, fomos homenageados na Sessão Solene "Todo Mundo Tem Direitos" na Alerj[5], promovida pela mandata da deputada estadual Renata Souza. Foi muito simbólico para nós, que construímos uma educação popular, recebermos o prêmio que leva o nome de Carolina Maria de Jesus, uma das principais intelectuais do Brasil. Uma mulher negra e favelada que rompeu barreiras, se tornando uma grande referência.




Expansão da Rede Só Cria para a Barreira do Vasco e Favela da FICAP

Diante de tantas conquistas e feitos, muito embora a pandemia tenha nos freado severamente, em nome da segurança da saúde de todos, resolvemos expandir nosso trabalho e abrir mais um pré-vestibular popular, dessa vez na Barreira do Vasco, em São Cristovão[6] e a nossa primeira unidade de pré-encceja, na Favela da FICAP, na Pavuna[7]. Passamos todo o ano de 2020 nos planejando, arrecadando fundos e pensando como realizar nosso projeto na pandemia e, no futuro, também no presencial. Começamos o ano de 2021 com a seleção de professores e alunos, que foi um sucesso e temos a alegria de dizer que nossas aulas no Só Cria Barreira do Vasco já iniciaram e o pré-encceja da FICAP terá inauguração em 2022. Nos permitimos somente olhar pra frente, almejando dias melhores, em que muitos moradores de comunidades ocupem seu lugar devido nas universidades.

Dados Gerais da Rocinha

Rocinha 1 Rocinha 2
População 32.525 36.831
Gênero
Mulheres 50,4% 19,6%
Homens 52,9% 49,1%
Emprego na Rocinha
Taxa de desocupação (18 anos ou mais) 7,79% 6,39%
Ocupados sem carteira  (18 anos ou mais) 13,36% 17,97%
Ocupados com carteira  (18 anos ou mais) 73,27% 71,42%
Escolaridade na Rocinha
Taxa de analfabetismo 6,41% 7,72%
Frequentam o ensino médio (18 a 24 anos) 10,97% 10,96%
Taxa de frequência no Ensino Médio 36,05% 32,23%
Condições de moradia
Pessoas em domicílios com paredes que não sejam de alvenaria ou madeira aparelhada 1,13% 0,32%
População que vive em domicílios com densidade superior a 2 pessoas por dormitório 47,02% 47,39%

*ROCINHA 1: Cachopa – Cachopinha – Dionéia / ROCINHA 2: Roupa Suja – Rua 2 – Boiadeiro

Saneamento Básico na Rocinha

A Rede Só Cria de Educação Popular busca estar inserida no cotidiano de lutas das comunidades em que atua. Nesse sentido nós apoiamos os movimentos de luta pelo saneamento básico na Rocinha e com esse objetivo, buscamos alguns dados acerca do acesso a esse serviço na comunidade da Rocinha. Dos inscritos no pré-vestibular Só Cria 5,73% sofreram com falta de água, desses, 80% reside na zona 2 da favela

Recentemente a Cedae foi leiloada e foram cerca de extraordinários 14 bilhões obtidos pela venda da instituição. A nossa luta em parceria com a FAFERJ, visto a recente privatização da empresa, é que parte desse recurso seja aplicado em infraestrutura nas favelas, dando prioridade para essas questões, pois, de acordo com o Painel Saneamento Brasil de 2019, o tempo de escolaridade dos jovens com saneamento básico é 3,89 anos superior ao dos que residem em locais sem acesso ao serviço[8]. Na Rocinha o tempo de escolaridade dos jovens com saneamento básico é de 9,23 anos enquanto que o dos jovens sem saneamento básico é de 5,23 anos.

Segundo relatório da Ouvidoria Geral da Defensoria Pública sobre a falta de abastecimento em bairros, favelas e cidades do estado do Rio de Janeiro em 2020, no início da pandemia: "A Rocinha figura, nesta primeira parcial de da dados, como a segunda localidade com o maior número de denuncias de problemas de abastecimentos. Em 27 relatos, a região da Vila Verde foi a mais mencionada, mas também foram citadas a Rua 2, Rua 3, Rua 4 Cachopada e Casa da Paz. Os relatos da Rocinha falam de famílias sem água em casa por até mais de uma semana[9].

Abastecimento de água inadequado (ROCINHA 1: Cachopa – Cachopinha – Dionéia / ROCINHA 2: Roupa Suja – Rua 2 – Boiadeiro):

Apesar dos dados apresentados acima, encontramos em nosso levantamento de dados que entram em contradição com a informação com o que consta no relatório da Ouvidoria Geral da Defensoria Pública. Referente ao abastecimento inadequado de água nas duas zonas da Rocinha, encontramos os seguintes dados:

Rocinha 1: 0% de abastecimento inadequado.

Rocinha 2: 0,32% de abastecimento inadequado.

A construção de um projeto social e de educação popular que planeja suas ações na perspectiva dos direitos humanos passa, portanto, pela compreensão de que questões como o saneamento básico compõem algumas camadas do desenvolvimento estudantil e podem ser determinantes para o desempenho na trajetória educacional de nossos estudantes.