Vinte anos de PCC em São Paulo: o espaço entre governo e crime (artigo)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Por Gabriel de Santis Feltran[1]

Publicado no Le Monde Diplomatique, em fevereiro de 2013

 

Em São Paulo não é apenas o governo que produz “políticas de segurança”. Há vinte anos, o mundo do crime também reivindica para si o papel de garantidor da ordem e operador da justiça em diferentes situações, grupos e territórios das periferias. Tenho estudado essa dinâmica em pesquisa de campo e em diálogo estreito com uma rede de pesquisadores. Apresento aqui uma interpretação das relações entre as políticas estatais e as políticas do crime, que, coexistindo em São Paulo, conferem os limites atuais da ordem urbana. Para tanto, conto uma história telegráfica dos vinte anos de Primeiro Comando da Capital (PCC).

O PCC teve origem em 1993, dentro de uma cadeia, um ano depois do Massacre do Carandiru. Reivindicava reação a qualquer opressão do sistema contra os presos,mas tambémdo preso contra o preso.Legitimou sua autoridade no cárcere por aplicar políticas expressas de interdição do estupro, do homicídio considerado injusto e, posteriormente, do crack dentro das prisões sob seu regime. Firmou-se como interlocutor entre os gestores e funcionários dos presídios, porque a disciplina estrita que introduzia nas “suas” unidades prisionais lhes era funcional. Durante os anos 1990, a guerra sangrenta contra grupos rivais e desrespeito ao procederassociou-se ao ideal de “paz entre os ladrões” do Partido. Quanto mais o PCC se expandia, mais o governo investia na ampliação do sistema que o nutria: metas crescentes de encarceramento, construção de dezenas de novas unidades e interiorização das prisões. A reforma dos anos 1990 quadruplicou a população carcerária paulista na década seguinte, impulsionada pela equivalência do tráfico de drogas a crime hediondo, que jogou dezenas de milhares de jovens nas cadeias. As prisões passaram a ser chamadas de “faculdades”. O PCC construiu sua hegemonia no crime.

Em 2001, o Comando mostrava força promovendo uma “megarrebelião”, simultânea em mais de vinte presídios. As políticas estatais reagiram, radicalizando a lógica da punição: criou-se o Regime Disciplinar Diferenciado. A imprensa deixou de utilizar a sigla PCC nos noticiários; o que os olhos não leem, a política não sentiria. Mas, entre 2001 e 2006, a facção foi cada vez mais comentada nas periferias do estado. Negociava-se ativamente, em cada “quebrada”, a presença local dos “irmãos”, integrantes da facção, que zelariam ali por uma justiça específica, baseada em debates e deliberações rápidas, exemplares. O PCC tornava-se instância de poder instituinte nos bairros pobres; os moradores admitiram, temeram, consentiram, aprovaram. O tráfico de drogas foi instado a desarmar seus vendedores no varejo, o preço da droga foi congelado para evitar concorrência. Não se podia mais matar, por ali, sem o aval do Partido; as vinganças estavam interditadas, a bandeira branca, hasteada. “A fórmula mágica da paz”, cantada pelo rap. Políticas do crime.

Em maio de 2006, as novas dimensões do Comandoforam conhecidas. Ataques coordenados em todas as periferias de São Paulo somaram-se a rebeliões em mais de oitenta prisões. Dezenas de policiais foram assassinados numa só noite. A vingança oficial aos “ataques” foi exemplar: 493 homicídios cometidos por policiais nas periferias, em uma semana. Mais quinhentos outros assassinatos nas três semanas seguintes. Em vez de um descalabro, esse extermínio foi acolhido publicamente como seu contrário: a retomada do Estado democrático de direito e da ordem pública em São Paulo.

De 2006 a 2011, na esteira dessa nova configuração de forças, a tensão entre PCC e polícias foi latente. A trégua nos enfrentamentos violentos foi baseada na significativa inflação dos “acertos” entre policiais e ladrões. Uma geração de trabalhadores da droga viveu a adolescência sem contabilizar colegas mortos, como fez a anterior. As taxas de homicídio caíram, agora, ainda mais intensamente. Nas periferias de São Paulo, em 2011 os homicídios de jovens foram cerca de um décimo das taxas de 2000. Os gestores da segurança estatal celebraram o sucesso de suas políticas, e as mães da periferia agradeceram ao PCC. Não importava se o “crime” estivesse cada vez mais infiltrado na sociabilidade dos bairros pobres nem que latrocínios crescessem. A taxa de homicídios seria um indicador unívoco de sucesso do governo. Os argumentos de que o PCC atuava nessa redução demoraram a ser escutados publicamente, e a política estatal seguiu intocada: encarceramento maciço, repressão ostensiva, criminalização do pequeno trabalhador da droga, militarização da gestão pública. O encarceramento foi mesmo pensado como desenvolvimento (das pequenas cidades que recebem presídios, dos grandes empresários que não pagam pela mão de obra dos presos).

Em junho de 2012, entretanto, por uma série de fatores – acúmulo de “acertos” descumpridos, extorsão abusiva, extermínio de “irmãos”, possível deslegitimação do PCC em setores criminais – a latência terminou. Execuções sumárias passaram a ser rotina nos noticiários. A imprensa voltou a falar do PCC, da “guerra” com a polícia. A coexistência de regimes de políticas de controle social – estatais e do crime – se mostrou como nunca antes. A especificidade de São Paulo nos temas que, de modo muito reducionista, se consideram exclusivos da “segurança pública”, igualmente: só em São Paulo há uma política de encarceramento tão agressiva; só no estado há uma única facção hegemônica na regulação tanto de condutas criminais quanto dos preços nos mercados ilegais; só em São Paulo isso redundou na redução de mais de 70% dos homicídios; só em São Paulo a “guerra” entre crime governo pode ter a magnitude vista no segundo semestre de 2012.

Importa notar que, analiticamente, e ao contrário do que pode parecer à primeira vista, governocrimenão produzem políticas necessariamente opostas. Construiu-se, mais rigorosamente, um repertório de regimes normativos, legitimados situacionalmente, que, como nos ensinou Machado da Silva, coexistem em tensão nesses cenários. Se eles promovem muita insegurança, funcionam muitas vezes de modo complementar. Há vinte anos o “crime” funcionaliza as políticas estatais para se fortalecer: o encarceramento maciço e a difusão das prisões pelo interior, por exemplo, favoreceram muito a expansão do PCC. O contrário também é verdadeiro: a queda das taxas de homicídio, promovidas pela intervenção do “crime” na regulação de conflitos nas periferias, é muito funcional aos administradores da segurança pública. É essa funcionalidade que fortalece ambos os regimes de “segurança” e, portanto, perpetua o crime, quando se pensa que a punição dos pobres e a militarização das políticas sociais “defenderiam a sociedade”.

  1. *Gabriel de Santis Feltran é Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM). Coordenador do NaMargem – Núcleo de Pesquisas Urbanas.