Violência, Criminalidade, Segurança Pública e Justiça Criminal no Brasil: Uma Bibliografia (resenha)

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Revisão de 09h54min de 24 de agosto de 2021 por Gabriel (discussão | contribs)

Autora: Giovanna Monteiro.

= Referência =

KANT DE LIMA, Roberto; MISSE, Michel; MIRANDA, Ana Paula Mendes. Violência, Criminalidade, Segurança Pública e Justiça Criminal no Brasil: Uma Bibliografia. BIB - Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, n.° 50, 2.° semestre de 2000, pp. 45-123

Link para o texto: https://app.uff.br/riuff/handle/1/10294

== Breve contextualização do texto e de seus autores ==

O texto "Violência, Criminalidade, Segurança Pública e Justiça Criminal no Brasil: Uma Bibliografia" de Roberto Kant de Lima, Michel Misse e Ana Paula Mendes de Miranda tem como objetivo estabelecer o arcabouço bibliográfico dos estudos de Sociologia Urbana e da Violência no Brasil até o ano de 2000. De acordo com os autores, nos anos 2000 já existe um campo disciplinar relativamente consolidado, sendo necessário fazer um balanço do que tinha sido produzido até ali. Para pensar o conteúdo do artigo em si, também é importante contextualizar os autores dentro da Academia brasileira.

Roberto Kant de Lima é doutor em Antropologia pela Universidade de Harvard e membro titular da Academia Brasileira de Ciências, além de coordenar o Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC). Seus estudos são voltados principalmente para a Antropologia do direito e da política, administração de conflitos e produção de verdade, sendo pioneiro nos estudos etnográficos sobre a polícia e o sistema judiciário. O InEAC, junto com o NEV (Núcleo de Estudos da Violência) e o NECVU (Núcleo de Estudos em Cidadania, Conflito e Violência Urbana) são os principais centros de estudo sobre violência urbana no Brasil, tendo vital importância na consolidação dessa linha de pesquisa e com pesquisadores que são centrais nessa revisão bibliográfica. 

Michel Misse, diretor do NECVU hoje, é doutor em Sociologia pelo IUPERJ sob orientação de Luiz Antônio Machado, um dos principais nomes da Sociologia Urbana. Misse possui estudos na área de criminalidade, drogas, comportamento desviante e violência urbana, com trabalho pioneiro sobre menores infratores. 

Já Ana Paula Mendes Miranda é doutora em Antropologia Social pela USP e pesquisadora do InEAC, com trabalhos voltados para políticas públicas, crimes, conflitos, percepção da violência e manifestação de intolerância religiosa. 

== Resumo dos principais argumentos do texto ==

Os autores são parte constitutiva do processo de estabelecimento dos estudos de Sociologia da Violência Urbana e pretendem com esse artigo sistematizá-los. Com esse objetivo, o trabalho tem como principal fonte o Diretório de Grupos de Pesquisa da CNPq a partir do qual analisaram os autores mais citados nas resenhas, os mais citados dentre esses selecionados, indicações de bibliografias, teses e dissertações por esses selecionados, a partir da década de 70. Os trabalhos foram divididos em subáreas, sendo excluídos os não-acadêmicos e que não faziam parte das ciências sociais. Algumas considerações importantes são que dos 450 pesquisadores registrados na CNPq na área, ⅔ são das humanidades e a maior parte está em grupos de pesquisa da região Sudeste - mesmo com a nacionalização da temática a partir de 1995. 

Durante a primeira metade dos anos 70, as pesquisas são voltadas para jovens infratores, comportamento desviante, ecologia do crime e a polícia de SP, com os trabalhos de Misse, Fernandes, Velho e Coelho. Mas somente em 80 é possível perceber uma consolidação nos estudos com a temática entrando na ANPOCS e na SBPC. O recorte em sub-tópicos do trabalho separa os estudos em Delinquência e Criminalidade violenta, Polícia e Sistema de Justiça Criminal, Políticas públicas de Segurança e Violência Urbana. 

Os estudos sobre delinquência e criminalidade violenta pretendem pensar as diferentes maneiras a partir das quais seria possível classificar os transgressores. Em um primeiro momento, os estudos são voltados para delinquência infanto-juvenil, ainda usando o termo “menor infrator”, que só vem a ser questionado a partir da década de 80. Com a mudança nos padrões de criminalidade, os estudos incorporam de forma mais sistemática o crime organizado como objeto, interligando os ambientes de pobreza urbana com a construção dos personagens sociais que estão vinculados ao crime. No final da década de 70, há uma mudança no padrão do próprio crime, e consequentemente dos estudos sobre este, com a maior organização social e o aumento da violência, muito relacionado à expansão do consumo de cocaína e dos novos armamentos. 

Os modos de interpretar essa mudança também são tratados no texto. Por um lado, alguns autores interpretaram essa mudança a partir da especificidade do objeto, pensando as escolhas individuais e a forma como a impunidade influenciava a questão. Por outro, interpretavam como uma dissolução do próprio objeto, a partir das formas como o poder era operado dentro da pobreza urbana e da profunda desigualdade social. A partir disso, ainda, os estudos sobre violência urbana se interseccionam com outros campos de estudo, como de raça e gênero, para poder analisar essas mudanças. 

O nicho mais polêmico de estudos sobre a temática está no crime organizado e o tráfico de drogas, que busca pensar uma forma de economia política do tráfico, ora percebido como quadrilha, ora como empresa. Aqui, os autores buscavam também analisar qual era a relação dos moradores com o tráfico e a produção de violência pela cidade envolvendo os mais diversos setores. As interpretação nesse ponto estavam muito divididas entre o debate sobre a individualização da violência e o reconhecimento das desigualdades que estruturam a sociedade brasileira, muito pensado a partir do debate sociológico de agência-estrutura. 

Percebendo a centralidade do problema da polícia, os estudos sobre Polícia e Sistema de Justiça Criminal tem a ditadura como ponto de inflexão nas interpretações. Anteriormente, o nosso sistema judicial era analisado como um sistema hierárquico, próximo do modelo mediterrâneo, quando a república era pensada de forma liberal e baseada no modelo francês. Assim, analisavam as agressões e os excessos policiais como uma ruptura e um desvio ao caráter normativo da instituição. No entanto, com a redemocratização e a necessidade de repensar o sistema jurídico, também mudou a chave de análise. A polícia passa a ser analisada a partir da sua adesão a uma nova forma de resolução de conflitos, baseada em uma tradição inquisitorial e de presunção de culpa ao invés de inocência. O sistema penitenciário também passa a ser analisado a partir de um recorte de classe, em que a população mais rica tinha seus casos julgados rapidamente, celas especiais e seus crimes relativizados pela sociedade, a população mais pobre era condenada mesmo antes do julgamento e a privação de liberdade era considerada pouco, havendo incentivo a torturas.

As Políticas Públicas de Segurança também têm a ditadura como um ponto importante de inflexão da análise. Durante a ditadura, as políticas públicas na área de segurança eram pensadas a partir do “inimigo interno”, principalmente voltado para os partidos comunistas e sua militância. Na década de 70, principalmente no Rio de Janeiro, aumenta a percepção sobre a participação dos órgãos de segurança no aumento da violência juntamente com a opinião pública favorável a pena de morte. Somente com o fim da ditadura os estudos de violência urbana passam a ser pensado a partir do Estado com a criminalidade sendo central no debate, assim como as organizações policiais passam a ser estudadas como detentoras de uma política própria. Com a Constituição de 1988 há uma modificação da ideia de segurança pública, envolvendo conceitos de Direitos Humanos e de coletividade. Os estudos sobre políticas públicas também passam a se relacionar profundamente com as próprias políticas, havendo um intercâmbio grande entre Estado e Academia nessa área até os dias atuais. 

Por fim, os autores analisam os estudos sobre violência urbana, mas principalmente aqueles que observam a construção de imagens, práticas e discursos. Inicialmente, apontam que uma série de estudos colocam a mídia como central para a construção do Outro violento e também como responsável pela exaltação em certos momentos e marginalização em outros da cultura das favelas. Ressaltam também a importância dos estudos sobre o cinema novo de Glauber Rocha, que quebra a imagem do Brasil cordial e miscigenado que era vendida pelo mito da democracia racial de Gilberto Freyre.

Apreciação crítica

O texto é central para compreender o caminho que os estudos sobre violência urbana percorrem em conjunto com as mudanças da sociedade brasileira e tendo a ditadura e o processo de redemocratização como central no debate. A metodologia escolhida ajuda a encontrar os autores centrais para a área, mas também facilita as referências nichadas em alguns autores/grupos de pesquisa/programas de pós-graduação, deixando de fora trabalhos que sigam outras linhas de atuação e de pensamento. O foco da violência urbana para esses autores é o Estado e os promotores da violência, sejam eles criminosos organizados ou não, o que retira também a análise daqueles que sofrem os impactos da violência a partir da militarização dos espaços.     

== Links para outros trabalhos relacionados ==