Violência urbana, Segurança Pública e Favelas - O Caso do Rio de Janeiro Atual (resenha): mudanças entre as edições

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
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Edição das 16h08min de 9 de setembro de 2021

Autora: Maria Carolina Loss Leite.

Referência

MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. “Violência urbana, segurança pública e favelas: o caso do Rio de Janeiro atual”. Cadernos CRH, Salvador, 23, 59:283-300, 2010.

Breve contextualização

O autor, Luiz Antonio Machado da Silva, propôs neste texto discutir sobre como se produz uma linguagem sobre a violência urbana por uma análise empírica e quais seus impactos. Através de duas abordagens, o texto, ainda, pretende conservar particularidades como forma de demonstrar a importância dos conhecimentos locais, em especial no Rio de Janeiro, onde o estudo foi feito. São elas: a) as relações entre a violência urbana, as rotinas e a organização das relações sociais na cidade e b) o impacto de uma mudança dentro do debate sobre as políticas voltadas para a ordem pública no que diz respeito às atuais maneiras de criminalização e segregação territorial da pobreza, abordando o estatuto das favelas como dispositivo exemplar.

Além de ser o criador do conceito- polêmica (conforme ele mesmo se referia) de “sociabilidade violenta”, Machado da Silva foi – e ainda é - o responsável por diversas obras no campo da Sociologia brasileira, sendo, em 2016, agraciado com o “Prêmio de Excelência Acadêmica em Sociologia Antonio Flavio Pierucci”, concedido pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS - àqueles que se destacam em sua produção intelectual. Sua última atuação foi no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP - UERJ), já estando aposentado pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS - UFRJ).  Graduado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) em Sociologia no ano de 1964, o qual é, ainda, considerado como um ano fatídico para nosso momento político e civil, cujas sequelas se refletem até hoje, em especial na violência citadina. Além disso, foi membro do INCT/Observatório das Metrópoles, do Núcleo de Estudos sobre Cidadania e Violência (NECVU - IFCS/UFRJ), e líder do Coletivo de Estudos sobre Violência e Sociabilidade (CEVIS). Foi, também, bolsista de produtividade do CNPq.

Machado nos deixou em setembro de 2020, mas sua competência profissional jamais será esquecida, muito menos seu carisma e respeito com aqueles que o procuravam para apreender um pouco de seu extenso conhecimento.

Principais argumentos

De acordo com Machado da Silva, o texto “Violência urbana”, segurança pública e favelas: o caso do Rio de Janeiro atual é oriundo de muitos anos de trabalhos em favelas cariocas e de uma pesquisa que coordenou em 2008. Segundo ele, a ideia foi fazer uma contraposição a um texto escrito por Luiz Eduardo Soares a um jornal em 2009. Logo, seu interesse não era analisar as organizações policialescas, mas trazer à tona as implicações da expansão da criminalidade violenta sobre a sociabilidade urbana, comentando sobre as polícias, mas não sendo elas seu foco de estudo. Por isso, Machado da Silva acaba se usando do termo “refundação” da sociedade, e não apenas da polícia, justamente para provocar o outro autor. O fato de analisar o Rio de Janeiro é explicado pelo autor como um lugar “bom para pensar”, se referindo aos estudos de Clifford Geertz.

Para Machado da Silva, a violência em ascensão se transformou em um dos principais problemas da agenda pública, passando a ser construído a partir da identificação de ameaças às integridades pessoal e patrimonial, dominando as preocupações de amplas camadas da população carioca. Logo, seria natural que as atenções estivessem voltadas ao aparato policialesco, dando ênfase ao controle social por elas praticadas como forma de repreensão ao crime violento.

Sua ideia, então, foi propor a realizar uma descrição crítica desse modo de construção coletiva do problema da expansão do crime violento nas grandes cidades, usando o Rio de Janeiro como base do estudo. 

Para o pesquisador, um dos mais perversos efeitos desse enquadramento é a criminalização das populações moradoras nos chamados “territórios da pobreza”, os quais são representados pelas favelas, sendo, de forma irônica, até hoje, sendo chamados de “comunidades” pelos agentes policiais, pela população carioca e pelos próprios moradores. 

Para Machado da Silva, a expansão da violência urbana pode estar ligada diretamente a uma economia internacional de drogas, particularmente à cocaína, que veio a se juntar à secular cadeia mais modesta, porém produtiva, da maconha.

Para ele, uma segregação espacial histórica, a ponto de levar a uma espécie de ecologia da desigualdade social, favoreceu que as favelas, bem como outros locais periféricos, fossem um dos canais concentrado dessa ponta do tráfico internacional, relacionada ao comércio a retalho para o consumo final, levando a uma redefinição desses territórios junto à população e afetando de maneira profunda o seu lugar na organização urbana.

Neste texto, a ideia do autor seria explorar uma relação empírica entre as favelas e o consumo final de drogas ilícitas. Após uma introdução sobre o assunto, o autor faz um breve resumo sobre o enquadramento analítico do problema, bem como alguns comentários sobre o seu desenvolvimento histórico, especialmente no caso do Rio de Janeiro. Em seguida, sugere uma hipótese sobre o papel da organização institucional da atividade repressiva das polícias e conclui fazendo uma discussão sobre a relação entre as favelas e a violência, trazendo algumas ideias, longe de serem conclusivas, já que para ele, para tais questões simplesmente não haveria conclusões definitivas.

Ao nos questionar sobre o que discute a violência urbana, Machado da Silva nos leva a uma hipótese: ela estaria associada ao uso de meios violentos com a noção leiga de crime e o quanto essa combinação tende a ameaçar de forma permanente a integridade física e patrimonial das pessoas. Todavia, o autor ressalta que não se trata de apenas um sinônimo de crime violento, de simples coleção de práticas desviantes, referidas à ordem dominante. Sua hipótese parte de que a linguagem da violência urbana problematiza uma ordem social específica ou reconhece um padrão de sociabilidade que autor conceituou como “sociabilidade violenta”, sendo a responsável pela violência urbana. Logo, existiria uma relação indissociável entre e “sociabilidade violenta” e violência urbana.
Para o autor, ao menos no Rio de Janeiro, os “portadores” dessa “sociabilidade violenta” seriam, geralmente, os traficantes responsáveis pelo funcionamento das “bocas” tendencialmente localizadas nos “territórios da pobreza”. 

No que diz respeito ao debate realizado sobre o tema, o autor acredita que a ameaça e a desconfiança das “classes perigosas”, concentrava a atenção sobre as alterações da reprodução da dominação organizada pelas instituições estatais de regulação do conflito social, as quais previam a possibilidade de uma revolução. Entretanto, para ele, a partir desse debate que produz a violência urbana, o foco para as interações interpessoais é reduzido. 

Para Machado da Silva, as “classes perigosas” ressurgem na forma do “vizinho diferente”, com o perigo e a desconfiança envolvidos na relação com esse “outro”, definidos na ameaça à integridade física e patrimonial de alguém. Já, as camadas mais abastadas, que possuem mais recursos - tanto materiais quanto simbólicos - para se auto isolar, vivendo em regiões física e socialmente mais afastadas dos “portadores” da “sociabilidade violenta são enquadradas naquilo que ficou conhecido como a “sociabilidade fortaleza”, sugerido por Luis Fridman no livro sobre os condomínios em São Paulo, sendo uma possível resposta reativa, uma das variantes possíveis da gramática da violência urbana.

Para Machado da Silva, os processos que produzem tais transformações não são homogêneos e possuem particularidades locais que devem ser levadas em conta, uma vez que afetam diferentes repertórios disponíveis no debate público no que diz respeito às formas de controle social, particularmente, em relação à natureza das atividades policiais.

Apreciação crítica

Falar de sociabilidade violenta no contexto atual pode parecer anacrônico, haja vista que Machado da Silva criou o conceito em 2004 para explicar uma realidade social daquela época. Apesar de sua partida, recente, ainda o temos como um grande protagonista no cenário da Sociologia brasileira no que se refere aos estudos sobre cidades e conflitos urbanos, sendo citado muitas vezes por conta desse conceito, o qual por diversas vezes foi chamado para falar sobre.

Conforme o pesquisador, o conceito de sociabilidade violenta possui sua origem naquilo que ele chamou de violência urbana. Seus estudos se basearam em Karl Marx e não em Simmel, ao contrário do que muitos pensam. Para ele, Marx apresentou um conceito de sociabilidade voltado para a ideia de oposição de classes em que o conflito organizaria a sociabilidade. Por isso, Machado da Silva achou interessante usá-lo para criar a sua sociabilidade violenta. Ainda, acreditava que Marx demonstrava melhor como a sociedade funcionava, alegando que o padrão de sociabilidade sempre foi violento até se encontrar com um tipo de linguagem que Machado da Silva chamou de direitos humanos. 

E isso coincidiria, aproximadamente, com a criação do Estado de Bem-Estar social, onde o que aparecia em disputa de uma regulação seria a segurança das pessoas, de forma bem ampla. Através da organização desse Estado, surgiram as instituições para “organizar” a violência e assim, mediar os conflitos sociais através da tutela estatal, juntamente com a criação de instituições legais. Para Machado da Silva, o Estado se legitimaria por ele mesmo, sendo um sistema de instituições que reproduziria a dominação e a exploração capitalista de uma forma aceitável pelas partes envolvidas, sendo uma espécie de sistema de organização, o qual produziria uma alteridade conflitiva, porém menos violenta devido a uma mediação. 

Com a passagem da linguagem dos direitos humanos para uma outra, que passou a englobar os indivíduos com direitos de uma forma bastante abrangente, talvez nessa nova “virada de chave”, tenha havido uma mudança no que se refere à noção de violência. E para Machado da Silva, é aqui que apareceria a sociabilidade violenta. 

Ela seria uma terceira mudança social, uma nova organização de vida, onde existiriam, inclusive, os portadores [1] dessa sociabilidade, criando, uma nova forma social de vida. E neste contexto, não haveria lutas, mas uma convivência de condutas entre os dominados e os dominantes de uma força física. Mas, não apenas isso: esta força seria a responsável por uma coordenação de ações no cotidiano dos envolvidos. Para Machado da Silva, nessa violência urbana existiria um ator responsável pela sociabilidade violenta: o bicho- louco.  Este agiria sem pudores ou fora dos costumes sociais, fazendo suas próprias regras e sem temer as consequências. Porém, com a racionalização do crime, entraram novas moralidades, alterando os tipos deste bicho- louco, onde passaram a atuar como novos atores sociais e reordenando o ciclo social. E no texto “Violência urbana”, Segurança Pública e favelas – o caso do Rio de Janeiro atual, o autor personaliza este bicho- louco na figura do “dono da boca”, ou seja, os traficantes cariocas.

Para o pesquisador, ainda, a violência urbana é tida como o centro de uma gramática que produz uma compreensão prático-moral da vida cotidiana nas grandes cidades, em especial no Rio de Janeiro. Para ele, não é necessário definir a expressão, porque ela faz referência ao sentido das atividades e ao debate coletivo: ela articula um complexo de práticas que constituem boa parte do conflito social nas cidades brasileiras, sendo inegável seu caráter factual e inadequado apresenta-la apenas como uma simples “paranoia”, ficção produzida pela mídia, como aconteceu já em parte da literatura.

No que diz respeito à tensa relação entre os moradores de favelas, a sociabilidade violenta e a polícia, é pelo discurso do medo que tais grupos dialogam, em que pessoas oriundas principalmente das favelas, são tidas como moralmente degradadas, sendo sempre vistas como “o outro”. Ao longo dos anos, estes locais sempre foram palcos das mais diversas disputas políticas – e por que não, econômicas. Com o intuito de instaurar a ordem, o lugar das favelas sempre foi questionado, tanto físico quanto socialmente falando. Palavras como remoção ou erradicação desses locais são aprendidas desde cedo pelos moradores que passam há tempos por estas disputas sem serem ouvidos, sendo apenas objetos de disputas unilaterais. 

Não basta apenas analisar contextos ecológicos ao se referir a tais pessoas. As mesmas possuem histórias e trajetórias vividas em seus locais de moradia e até agora nenhuma política pública de fato ousou em melhorar a qualidade de vida para que as próximas gerações se sintam pertencentes ao seus locais de origem sem serem taxados de “trabalhador”, “cidadão de bem” ou de “bandidos”, conceitos estes ligados a uma marginalização de pessoas que são colocadas como não merecedoras de estarem ao centro dos debates públicos. Sendo assim, jamais iremos avançar na melhoria de uma convivência entre as diferentes populações cariocas, estando sempre à sombra de uma violência urbana e de uma sociabilidade violenta – muitas vezes fabricadas - com mudanças apenas de atores à medida que o tempo for passando.

Por fim, a vasta experiência em Sociologia, especialmente em Sociologia Urbana e Sociologia do Trabalho de Machado da Silva, onde os temas como favela, sociabilidade, violência, cidadania e informalidade serviram de referência a diversos estudos, no traz luz, ainda hoje, em meio às constantes problemáticas levantadas nas áreas em questão, em especial nos momentos em que a brutalidade policial toma conta dos noticiários seguidamente.

Outros Verbetes e Referências relacionadas

Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro (resenha) CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2000.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1989.

MISSE, Michel; WERNECK, Alexandre, ZALUAR, Alba; LEITE, Márcia P.; VIEIRA, Neiva; FELTRAN, Gabriel. Uma vida e uma obra dedicada às favelas e às ciências sociais: Entrevista comemorativa de 70 anos de Luiz Antônio Machado da Silva. DILEMAS, Vol. 4, nº 4 - OUT/NOV/DEZ 2011 - pp. 663-698. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7273. Acesso em: 19 jun. 2020.

MISSE, Michel. “Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro”. Civitas, 8:371-385, 2008.

SOARES, Luiz Eduardo. Refundar as polícias. Le Monde Diplomatique Brasil. São Paulo: 2009. p.6-7.  

  1. E aqui Machado da Silva faz referência direta a Max Weber e aos portadores da ética do capitalismo.