Violências de gênero em contextos militarizados

Por equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco
Trabalho realizado a partir de uma parceria entre o programa da FASE no Rio de Janeiro, CIDADES (Núcleo de Pesquisas Urbanas da UERJ) e o Núcleo de Estudos de Gênero PAGU/UNICAMP. 
Autoria: Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco com autorização das autoras do livro; Autores da análise complementar: Gabriel Canedo e Laryssa de Moura 
Capa - Violência de Gênero.jpg

Sobre[editar | editar código-fonte]

A publicação é resultado do trabalho coletivo de moradoras dos conjuntos de favelas da Maré e de Manguinhos, educadoras e comunicadoras populares, militantes, pesquisadoras e integrantes de coletivas políticas diversas, que se reuniram entre 2016 e 2017 para discutir diferentes impactos da violência de estado. A agenda de atividades e a publicação foram desenvolvidas a partir de uma parceria entre o programa da FASE no Rio de Janeiro, CIDADES (Núcleo de Pesquisas Urbanas da UERJ) e o Núcleo de Estudos de Gênero PAGU/UNICAMP. 

Uma análise complementar[editar | editar código-fonte]

O livro "Violências de Gênero em Contextos Militarizados: Uma Cartografia Escrita por Mulheres" faz uma análise complexa das chaves Violência, Gênero e Militarização. Pretende-se com esse verbete, pôr em destaque algumas questões que parecem centrais nesse escrito, como a caracterização dupla da favela, o modo como a pacificação à infecta, o papel dos estereótipos, e por fim, discutir a metodologia de estudo apresentada no referido livro. Busca-se também, para além dessa obra, conectar as questões mencionadas com outros conceitos e autores. A intenção é convidar o leitor a não apenas ler o livro, mas se inserir na discussão abrangendo outras conceituações. Dito isso, a cartografia abre sua análise teórica caracterizando a favela como um lugar duplo, de muita felicidade e folia mas também marginalizado e violentado, passando por uma análise histórica da categoria, que alegam ter surgido nos arredores dos espaços de trabalho de maneira autônoma, ou seja, os trabalhadores buscando soluções para seus direitos negligenciados, como a moradia. Isso porque o Estado precisaria de uma mão de obra barata para essa produção. Dessa autonomia surge um mito propagado pelo Estado, que consiste na responsabilização dos favelados, em que se vende a falsa ideia de que os problemas das favelas são criados pelos próprios moradores, e, assim sendo, os mesmos têm que dar conta de resolvê-los.

Nesse sentido, o Estado se isenta de ofertar políticas públicas de qualidade que diminuam ou cessem com as grandes problemáticas enfrentadas nesse contexto, se desresponsabilizando por essa parte da sociedade. Esse mesmo Estado aparece de outras maneiras, formas essas arbitrárias e autoritárias, com uma política que visa o extermínio da população favelada. Sob essa ótica, no texto Educação e Favela, o autor Victor Valla vai discorrer sobre como surgiram as favelas no Rio de Janeiro, e fundamentando a questão da falta de apoio institucional, e, por conseguinte, as poucas ou quase nulas políticas públicas eficazes, o professor e pesquisador evidencia que:

" Percebe-se que o problema da habitação popular é sempre visto como algo estranho à sociedade, um fenômeno canceroso que precisa ser erradicado. Assim, as soluções adotadas pressupõem a culpa dos moradores de favelas, que inicialmente devem ser coagidos, e, com a crescente complexidade do problema, reeducados. As soluções não incluem a participação dos moradores. Afinal, eles já haviam participado, uma vez que foram eles que “criaram” o próprio problema. Daí, a necessidade de soluções autoritárias (VALLA, p. 43, 1986). "


Com isso, ainda que o texto escrito por Valla date de 1986, a lógica segue sendo a mesma. Da mesma forma, na cartografia, as mulheres vítimas de violência de gênero nesse contexto militarizado, expõem com seus relatos, que elas frequentemente não possuem acessos de serviços de apoio adequados, como centros de atendimento psicológico, de segurança e justiça. As instituições públicas, se presentes, não concedem proteção para o enfrentamento da violência de gênero. Ao contrário, muitas vezes, a instituição existente é a que também violenta, como o exemplo da Polícia Militar, que abusa do poder e se sente resguardada para o cometimento de crimes.

Com esses dois agentes em jogo, trabalham a articulação entre eles, indo além do Valla, argumentando que a falta de qualidade do serviço público na favela (desresponsabilização) e a violência do Estado são duas facetas da mesma moeda que busca minar o favelizado em corpo e alma, adoecer a psique e o físico, com golpes letais e não letais, violência e terror em um processo profundamente racializado. Essa dicotomia “violência e terror” é reflexo direto de “golpes letais e não letais”, tendo em vista que as ocupações de território pelas forças armadas (em sentido mais amplo, incluindo a PM e as UPPs) se faz ora com práticas de intimidação, ora com técnicas de assassinato, e ambas tem papel constitutivo para a instauração do terror – revistas constantes, invasão e assédio –, por mais que não necessariamente “mate", constrói feridas que o criam. As duas práticas, advindas da lógica militarizada, através da "pacificação" infectam a favela.

O texto chama atenção também a semiótica do evento, já que esses elementos – farda, fuzil e etc – atuam como símbolos aqui contrapostos aquele espaço da favela que os militares encaram como vazio de civilidade, assim, os usam como modo de tentar internalizar naquele povo que veem como animais, valores morais e éticos, ainda que façam isso de maneira extremamente violenta e com atuação coercitiva. No que diz respeito a essa internalização de estereótipos, retorna-se ao texto de Victor Valla, no qual é possível notar outro aspecto relevante para o que se pretende argumentar aqui. Embora o foco do texto do autor seja evidenciar pontos sobre a transformação da cidade do Rio de Janeiro, desde os cortiços até as favelas, ao fazer isso, ele aborda questões do processo de fluxo migratório do campo para a cidade, esse processo que faz com que as cidades formem um grande “exército industrial de reserva, com mão de obra farta e barata (VALLA, p. 40, 1986)”, como destacado pelo próprio autor. Nesse sentido, é possível refletir sobre como essa cisão entre campo e cidade, em termos de transformações urbanas, sociais e econômicas, foi capaz de impactar diretamente as populações marginalizadas, como os trabalhadores que habitam as favelas. O texto explora, então, de que maneiras a ampliação da cidade do Rio, as mudanças urbanas e a elite carioca buscavam reprovar e eliminar as formas populares de se viver. Em síntese, com essa cisão, nota-se também o modo como o sujeito favelizado passa a ser representado no imaginário social e, por consequência, como é tratado, com a imagem da favela enquanto “roça”, tendo em vista a população oriunda do campo e dos interiores do Brasil, e seus moradores, portanto, sendo vistos como animais a serem civilizados.

Além disso, cabe pensar aqui também, apesar de ficar apenas subjacente ao texto, uma discussão sobre a produção de território. Quando o texto traz esse caráter duplo da favela ele desvela não um, mas dois territórios, um produzido pelos seus moradores e um produzido pelo Estado, partindo da concepção de território de Claude Raffestin em Por uma Geografia do Poder (p. 143 -163, 1980), como a relação do sujeito com o espaço, pode se dizer que cada um desses agentes produz um território, o que explica essa aparente “contradição”, já que são geradas por sujeitos diferentes, e são as relações de poder que definem qual território daquele espaço, ora violento, quando sobem as armas, ora de festa, quando descem as famílias. É justamente a relação entre os corpos e os espaços que dá sentido a eles, o que torna eles cenários e o que torna eles territórios. Um mesmo espaço, com ou sem um PM é um território completamente diferente, com ou sem som de tiro, com ou sem pessoas negras, com maioria mulher ou homem. É nessa relação espaço-corpo que nasce o território, e por isso é fundamental entender tanto os agentes, como a mulher, o militar, quanto os espaços, o beco, o escuro, para ver o sentido daquele lugar.

Por fim, discutindo Metodologia, como as autoras destacam, o Museu da Maré é um dos principais responsáveis na pesquisa que daria origem a uma análise histórica da Maré e Manguinhos. Esse tipo de relação surge graças ao conceito-prática de Museologia social, que significa entender o museu como um espaço de disputa e instrumento na formação da realidade e senso comum, saindo da ideia de que cristaliza a história ou que é um "templo de musas", para a percepção de que cria história, como uma "casa" que se altera a seus moradores, afinal é nessa perspectiva que surge o Museu da Maré. Um museu de bairro que tenta se integrar à região, tendo como principais parceiras as escolas públicas do entorno, e se dividindo em doze partes (como os doze meses) reservando uma parte a falar do futuro, ou seja, reconhecendo o papel do museu nessa discussão. Vale dizer também que nesses doze tempos que reconhecem a favela como um ambiente multifacetado, fica claro o que o texto quer dizer com o duplo caráter da favela, com tempos reservados tanto ao lazer quanto a violência. Sem essa perspectiva que integra museu, pesquisa e comunidade a cartografia não poderia se apresentar.

Além do Museu, explicitam o modo como o trabalho foi articulado (através de sucessivos encontros com realização de atividades e perguntas, resultando em uma atividade de escrita de contos), começa falando que escolheram a cartografia social como principal pois é um método que permite horizontalidade na construção do conhecimento, contam também que a oficina serviu para dar vazão a alguns sentimentos enclausurados das participantes e elaborar conceitos e sentimentos como feminismo e resistência. Durante a oficina, algumas palavras surgiram como centrais à análise, estas são categorias espaciais, locais onde ocorrem a violência, e não são exclusividade da Maré e Manguinhos, podem estar em qualquer favela, e por isso, elas puderam se reconhecer nas falas umas das outras, e construir um senso comum sobre esses locais, tais como a rua, a esquina, o beco, a praça e até o escuro. Essas categorias espaciais são locais inalienáveis do processo de violência, afinal, toda violência ocorre em um lugar, e não deve ser à toa que esses surgiram.

Assim exposto o livro “Violências de Gênero em Contextos Militarizados: Uma Cartografia Escrita por Mulheres”, reitera-se que esse verbete não reduz a sua experiência de leitura, dado que o livro conta ainda com uma parte lírica na qual as participantes do estudo põem em forma de arte suas dores e vivências. Trata-se de um conteúdo único e emocionante que se faz indispensável, e, com isso, espera-se apenas que as discussões aqui apresentadas sirvam de bagagem que facilite o processo de inserção em um debate que mobiliza categorias chaves a análise da realidade das favelas cariocas.

Esta análise complementar é resultado de pesquisa realizada na disciplina extensionista da Faculdade de Educação da UFF, Educação Popular nas Favelas e Periferias (2024-1), ministrada pelo professor Reginaldo Scheuermann Costa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

MARTINS, Anne Carolina. et al. Violências de Gênero em Contextos Militarizados: Uma Cartografia Escrita por Mulheres. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Rachel Gepp, 2020.

RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática, 1980.

SILVA, Cláudia; VIEIRA, Antônio. O Museu da Maré no Contexto da Museologia Social. [S.I.: s.n.].

VALLA, Victor Vicent. Educação e Favela. Petrópolis: Editora Vozes Limitada, Novembro de 1986.

Acesse a publicação[editar | editar código-fonte]